Tag: Psicologia

  • Esquerda e direita: quem é mais feliz? E por quê?

    (Capa: à esquerda, foto por Caco Argemi CPERS/Sindicato, usada sob CC BY 2.0; à direita, foto por Larrion Nascimento)

    Texto por Davi Carvalho

     

    Ao ler o título deste texto, seja você de esquerda ou de direita, é possível que tenha elaborado mentalmente uma resposta às perguntas ali levantadas e, então, iniciou a leitura em busca de possível confirmação de sua hipótese. Aí vai uma resposta curta: conservadores são mais felizes do que as pessoas de esquerda. Essa afirmação confirma ou não o que pressupunha? Seja como for, entender – de um ponto de vista científico – a extensão e o porquê dessa diferença pode mudar sua visão sobre o quão feliz você pode ser. 

     O que diz a ciência?

    A grande maioria das pesquisas indicam que conservadores são realmente mais felizes, na média, do que as pessoas mais à esquerda no espectro político-ideológico. Um estudo do Pew Research Center (PRC), nos EUA, apontou que 45% das pessoas de direita (republicanos) contra apenas 30% das de esquerda (democratas) consideram-se “muito felizes”. [1]  Apesar de esses dados serem de uma pesquisa com mais de uma década, o aspecto mais interessante dos levantamentos feitos pelo PRC é a constância nos resultados sobre felicidade: desde 1972, os conservadores consistentemente aparecem como mais felizes do que os progressistas. 

    Esquerda e direita: quem é mais feliz?
    Afinal, quem é mais feliz? (Fonte: Pixabay)

    Outro estudo, de 2014, feito por pesquisadores da Universidade de Nova Jersey, EUA, apoiado em uma gigantesca base de dados (mais de 1 milhão de indivíduos oriundos de 16 países europeus), também apontou que as pessoas de direita são mais felizes do que as de esquerda [2].  Por fim, em um terceiro estudo, envolvendo 15 países europeus, além dos EUA, pesquisadores da Universidade do Sul da Califórnia e da Universidade de Utah descobriram que conservadores veem maior significado na vida do que progressistas [3]. Um ponto curioso dessa pesquisa é que, entre as pessoas de direita, aquelas mais conservadoras nos costumes (contra o casamento gay e o aborto, por exemplo) foram as que mais acentuadamente reportaram ver a vida com grande significado. 

    Tais pesquisas levantam uma questão ainda mais importante: afinal, por que as pessoas de direita são mais felizes? A literatura científica a respeito do assunto aponta três grupos de fatores que influenciam nisso:  1) aspectos demográficos – tais como casamento e religiosidade; 2) diferenças ideológicas ou comportamentais – como o grau de crença na meritocracia; 3) e, por fim, até mesmo a ideologia predominante do governo do país em que essas pessoas vivem. Quanto a este último fator, principalmente se não está contente com o governo atual de seu país, dificilmente você duvidaria do impacto disso em sua felicidade, não é mesmo? Vejamos, então, o que a ciência diz sobre a relevância de cada um desses fatores para o nosso bem-estar. 

    1)  Fatores demográficos:

    As pessoas de orientação política de direita casam-se mais [4], têm mais filhos [5] e são mais religiosas [6], quando comparadas às de esquerda. Ocorre que esses fatores todos se relacionam com a felicidade. Um estudo dos sociólogos Steven Stack and Ross Eshleman, da Wayne State University, encontrou que, em 16 de 17 países industrializados pesquisados, o casamento estava positivamente associado a um maior grau de felicidade [7]. E os conservadores não só se casam mais como, em comparação com esquerdistas casados, há maior probabilidade de se afirmarem “muito felizes” no casamento [8]. 

    Uma família feliz. Quais seriam as causas? [Fonte: Pixabay]

    Quanto à crença religiosa, segundo o célebre psicólogo social Jonathan Haidt, pessoas que comungam da mesma fé costumam compor comunidades de apoio social mútuo, o que as torna menos isoladas [9]. Além disso, sistemas religiosos oferecem explicações sobre algumas das questões mais profundas que afligem os seres humanos, como sobre a finitude e o que ocorre após a morte [10]. A crença em tais narrativas pode aplacar a angústia existencial, o que tem o potencial de proporcionar maior nível de felicidade aos religiosos.

    Quando tais fatores demográficos são considerados em conjunto, a diferença dos níveis de felicidade entre pessoas de ideologias políticas opostas pode ser muito expressiva. Segundo o cientista social Arthur Brooks, da Universidade de Harvard, 52% dos conservadores casados, religiosos e com filhos se afirmam muito felizes, contra apenas 14% das pessoas de esquerda solteiras, sem religião e sem filhos [11]. Esses fatores, porém, não explicam tudo. As próprias características ideológicas dos indivíduos também contam (e muito).

     2) Características ideológicas e comportamentais:

    Segundo pesquisas do proeminente psicólogo social John Jost, da Universidade de Nova York, o conservadorismo político é uma ideologia que justifica o sistema social, isto é, seus portadores endossam e defendem o status quo, a realidade social, política e econômica como ela é [12]. Conservadores, além de aceitarem as desigualdades sociais, também as enxergam como causadas por mecanismos que consideram justos e legítimos. Assim, Jost argumenta que essa ideologia política acaba tendo uma função paliativa, ou seja, como pessoas de direita tendem a justificar a realidade social, é menor a possibilidade de  sofrerem em relação aos problemas sociais, como a desigualdade, o que as tornaria mais felizes do que as de esquerda [13].

    Para testar essa hipótese, John Jost e a psicóloga social Jaime Napier realizaram três estudos baseados em surveys [14]. Como resultado desses estudos, amparados em dados de dez países, encontraram que, em comparação com pessoas de esquerda, o maior bem-estar subjetivo de conservadores está de fato relacionado à sua capacidade de racionalizar a desigualdade. Por “racionalização”, conceito bastante conhecido na psicologia social, entenda-se que as pessoas criam narrativas e explicações próprias para as coisas – explicações essas frequentemente bem distantes da realidade – para que se sintam confortáveis com suas crenças e formas de ver o mundo. Um exemplo disso pode ser observado quando uma pessoa conservadora considera que a pobreza seja resultado de apatia, de uma suposta indolência das pessoas: se são pobres, é porque não se esforçaram o suficiente. Eis aí uma típica e clara racionalização de um fenômeno social complexo.

    Não à toa, com base nos estudos mencionados, Napier afirma que a crença na meritocracia – a ideia segundo a qual o trabalho duro leva necessariamente ao sucesso na vida – é o principal fator para se predizer quem é mais feliz. Quanto mais se crê na meritocracia, mais feliz é o indivíduo. E os conservadores são os maiores defensores dessa crença.

    Esquerda e direita – nível de bem-estar em queda

    Em um dos três estudos referidos, Jost e Napier encontraram também que o nível de bem-estar subjetivo geral diminuiu significativamente, nos EUA, entre as décadas de 1970 e 2000. E essa queda geral da felicidade acompanhou um aumento expressivo da desigualdade naquele país. Curiosamente, ao mesmo tempo que a felicidade da população como um todo declinou ao longo do período relatado, aumentou a diferença do nível de felicidade entre os lados ideológicos: as pessoas de direita também foram afetadas e tiveram queda no nível de felicidade, mas em proporção bem menor do que as de esquerda. Observe o gráfico:  

    (Relação entre orientação política e felicidade declarada como função do índice de Gini – 1974 a 2004 – Extraído de JOST & NAPIER, 2008)

    Jost e Napier supõem que isso ocorra porque os conservadores possuem, em sua visão de mundo, um “amortecedor” ideológico contra os efeitos deletérios da desigualdade econômica no bem-estar das pessoas. Assim, conforme a desigualdade cresce, isso afeta negativamente a todos, mas atinge mais acentuadamente a esquerda, que, em vez de justificar a realidade social e suas mazelas sociais, a elas se opõe. 

    Contudo, tais características ideológicas das pessoas aparentemente também não explicam, por si só, sua diferença nos níveis de felicidade. O contexto político e social em que vivem também pesa nessa equação.

    3) Diferenças no tipo de governo

    Para cada minuto que você sente raiva, perde sessenta segundos de felicidade. – Ralph Waldo Emerson

    Se, por acaso, você se opõe firmemente ao governo atual de seu país, suas chances de ser bastante feliz diminuem. Difícil discordar dessa afirmação, não acha? Se os valores que permeiam os governantes no poder são opostos aos seus, isso tem grande potencial para reduzir seu bem-estar.  É nesse sentido que apontam alguns estudos.

    Em um extenso estudo que envolveu 98 países (incluindo o Brasil), economistas da Universidade de Heidelberg, Alemanha, investigaram a relação entre felicidade individual e ideologia de um governo. Esta última foi aferida a partir da orientação político-ideológica do chefe do Executivo, no caso de sistemas presidencialistas, e a partir da ideologia do maior partido no governo, nos países de regimes parlamentaristas. Como resultado geral da pesquisa, encontraram que as pessoas de direita são, de fato, mais felizes em média; já as pessoas de esquerda têm maior probabilidade de se declararem satisfeitas com a vida quando vivem sob governos de esquerda [15]. 

    Esquerda e direita
    A ideologia política do governo de onde vivemos também impacta nossa felicidade

    Em outro estudo bastante extenso, similar ao dos economistas alemães, psicólogas sociais da Universidade de Colônia também analisaram a questão. Com base em dados extraídos ao longo de 40 anos, de mais de 270 mil indivíduos, oriundos de 92 países (Brasil incluído), as pesquisadoras questionaram a universalidade da diferença de níveis de felicidade entre esquerda e direita. Segundo elas, seus dados mostram que, em comparação com progressistas, conservadores se declaravam mais felizes e mais satisfeitos com suas vidas à medida que a ideologia política conservadora prevalecia no contexto sociocultural do país em que viviam. Nesse estudo, as pessoas de direita se afirmaram mais felizes em 65% dos países e épocas analisados. Em parte das análises, não houve diferença significativa entre os lados ideológicos. Por fim, as pessoas de esquerda se afirmaram mais felizes em 5 dos 92 países estudados [16].

    E a sua felicidade e bem-estar? Como andam?

    E a felicidade, ainda que tardia, deve ser conquistada. – Sérgio Vaz

    Fato já bem documentado na literatura científica, o grau de felicidade que sentimos se relaciona com a nossa orientação político-ideológica. Ocorre que essa última é provavelmente imutável por vontade própria. Em verdade, as pessoas que têm lado definido no espectro ideológico costumam mesmo exibir até certo orgulho de sua posição. É possível, porém, dar sua contribuição para que seu entorno mude a favor de sua visão de mundo. Em regimes democráticos, isso não só é possível, como também é absolutamente legítimo.

    A luta política pode ser travada de mil maneiras na democracia. Quando você participa de manifestações democráticas de rua ou compartilha um post de cunho político e se posiciona, discutindo e debatendo temas, está influenciando as pessoas ao seu redor em algum grau. Sua meta maior pode mesmo ser a de dar sua contribuição para eleger um governo alinhado com seus valores. Nada mais legítimo. Afinal, sua felicidade e bem-estar podem disso depender. 

    Referências

    1. (2016) Are We Happy Yet? – Pew Research Center. Acesso em: 10 Out. 2021.

    2. Okulicz-Kozaryn, A., Holmes IV, O., & Avery, D. R.  (2014).  The Subjective well-being political paradox:  Happy welfare states and unhappy liberals.  Journal of Applied Psychology, 99(6), 1300-1308.

    3. Newman, D. B., Schwarz, N., Graham, J., & Stone, A. A. (2019). Conservatives report greater meaning in life than liberals. Social Psychological and Personality Science, 10(4), 494-503

    4. Wilcox, W. Bradford. & Wang, Wendy. (2019) Conservatives: Happier at Home, Worried for the Nation. Institute for Family Studies – IFS. Acesso em: 11 Out. 2021. {link}

    5. Stone, Lyman. (2020) The Conservative Fertility Advantage. Institute for Family Studies – IFS. Acesso em: 11 Out. 2021. {link}

    6. (2014) Religious Landscape Study – Religious composition of conservatives, Pew Research Center. Acesso em: 15 Out. 2021. {link}

    7. Stack, Steven. & Eshleman, Ross (1998) Marital Status and Happiness: A 17-Nation Study. Journal of Marriage and the Family, 60, 527-536.

    8.  Wilcox, W. Bradford & Wolfinger, Nicholas H. (2015) Red Families vs. Blue Families: Which Are Happier? Institute for Family Studies – IFS. Acesso em 17 Out. 2021. {link}

    9. Haidt, J. (2006). The happiness hypothesis. New York: Basic Books.

    10. Myers, David G. 2000. The Funds, Friends, and Faith of Happy People. American Psychologist 55:56–67.

    11. Brooks, Arthur C. (2012) Why Conservatives Are Happier Than Liberals. The New York Times. Acesso em 17 Out. 2021. {link

    12. Jost, J.T., Nosek, B.A., & Gosling, S.D. (2008). Ideology: Its resurgence in social, personality, and political psychology. Perspectives on Psychological Science, 3, 126–136.

    13. Jost, J.T., & Hunyady, O. (2002). The psychology of system justification and the palliative function of ideology. European Review of Social Psychology, 13, 111–153.

    14. Napier, Jaime L.  & Jost, John T. ( 20008) Why Are Conservatives Happier than Liberals? Psychological Science – Vol. 19, No. 6, 565-572

    15. Dreher, Axel & Öhler, Hannes. (2011) Does government ideology affect personal happiness? A test. Economic Letters. (2):161–5. 

    16. Stavrova, Olga. & Luhmann, Maike. (2016) Are conservatives happier than liberals? Not always and not everywhere. Journal of Research in Personality. 63:29–35. 

     

    Agradecimentos

    Este texto contou com a sempre excelente revisão de Caroline Frere e Eduardo J. V., aos quais sou muito grato. Sem a decisiva contribuição do amigo Daniel Nunes, que trouxe referências, ideias e insights, o texto também não seria o mesmo. Gracias!

     

  • “Quando fecho a porta da minha casa, me sinto mal acompanhado”: impactos da pandemia e do isolamento social na saúde mental

    Texto produzido por Débora Bicudo de Faria Schützer* e Lia Keuchguerian Silveira Campos**

    A necessidade de isolamento social a fim de controlar a transmissão da COVID-19, preconizada pela OMS traz impactos significativos à saúde mental da população em todo o mundo (1). O isolamento é a única ferramenta possível na atualidade para controlar a nova doença, entretanto, sabe-se que ele pode aumentar a incidência de crises psicológicas (2). No Brasil, temos enfrentado um cenário de contradições e de conflitos políticos que acentuam os efeitos psicossociais negativos dessa condição (3). Dessa forma, angustiados e isolados, temos que nos haver com nossos conteúdos psíquicos e questões psicológicas preexistentes.

    Em curto período de tempo, as rotinas foram alteradas. Não podemos ir ao local de trabalho ou de estudo, não temos mais confraternizações com os amigos e até os que estão padecendo da doença encontram-se isolados da família. Essa nova realidade, apesar de sabermos que é momentânea, nos traz muitas incertezas e inseguranças. A sensação atual, como disse Minerbo (4), é a de que “estamos sem chão”. O trabalho mental de que perdemos algo da nossa vida que nos parecia tão seguro e conhecido nos coloca em um terreno psíquico árido, de luto, de ansiedade e de medo.

    Sabemos que o impacto emocional diante do potencial de contaminação pelo vírus, com seu consequente aumento da mortalidade, juntamente com o isolamento social, causa ansiedade em todos os seres humanos, independentemente da idade e de pertencer ou não a um grupo de risco. Entretanto, estudos indicam que sobretudo pessoas com algum comprometimento em saúde mental, idosos, profissionais de saúde e acometidos pela COVID-19 merecem mais atenção nesse momento (5,6).

    Pacientes com confirmação do diagnóstico de COVID-19, assim como os com suspeita, experienciam além dos sintomas físicos que já aumentam a ansiedade também o medo da morte, a culpa devido ao potencial de contágio e sofrem pelo estigma frente a sua família e seus amigos. A quarentena provoca sentimento de vazio, de solidão e até de mesmo raiva (2).

    Importante salientarmos o fato de que este momento de privações diversas no qual estamos envolvidos pode potencializar questões emocionais preexistentes e assim temos a experiência de estarmos “mal acompanhados com nós mesmos” em relação aos nossos recursos internos para lidar com essas questões. Todos somos colocados à prova de nossas capacidades mentais no que se refere à resiliência, à criatividade e à capacidade de lidar com frustração e perdas. Sem contar com o medo da morte ao qual somos expostos quando estamos falando de uma condição de saúde pouco conhecida, uma doença sem vacina, sem remédio e que vem sobrecarregando sistemas de saúde no mundo todo.

    Dessa forma, é preciso estabelecer redes de apoio e diversas maneiras de manter conexão com outras pessoas por meio das mídias eletrônicas. Embora, essas mídias também devam ser utilizadas com cautela já que podem representar uma grande fonte de informações falsas que aumentam o estresse, além das atualizações constantes em relação a número de mortos e de contaminados (6).

    Toda essa angústia à qual estamos sendo expostos gera a necessidade de um rearranjo que exige de nós um trabalho mental exaustivo, que afeta nosso cotidiano de diversas maneiras, inclusive influenciando na qualidade de vida. Assim como o corpo aciona seu sistema de defesa diante de uma ameaça, a mente também tenta se defender frente a uma nova situação. Nesse momento, utilizamos mecanismos de defesas variados, que dependem das nossas condições emocionais preexistentes e se tornam evidentes no modo como nos comportamos. Resultados de investigações em epidemias anteriores (5) demonstraram que os comportamentos relacionados à ansiedade desempenham um papel importante já no curso de uma epidemia, pois comportamentos inadequados devido ao aumento do estresse e da ansiedade psicológicos prejudicam a implementação de estratégias e de medidas de tratamento além de contribuírem para uma maior disseminação da pandemia.

    Percebemos que o mecanismo de defesa mais prejudicial à sociedade vem sendo a negação da realidade. Entende-se que a apreensão da realidade está ligada à compreensão dos mecanismos que organizam a lógica social vigente para valorização da saúde e da vida, como por exemplo o que é comprovado cientificamente e o consenso das principais autoridades de saúde. O indivíduo que nega essa realidade não coloca em risco apenas a sua própria saúde, mas a da população em geral. Resistente em cumprir com a necessidade de quarentena, acaba por expor também seu círculo social mais íntimo. A negação está ligada a um pensamento mágico e a uma incapacidade de esperar e de tolerar frustração.

    Essa questão também foi abordada por Kübler-Ross (7), quando a autora incluiu a Negação como o primeiro estágio vivenciado pelos seres humanos em um processo de luto, seguido pelos períodos de Raiva, Negociação, Depressão e Aceitação. Recentemente Weiss (8) publicou um artigo sobre a importância dessas fases de luto para compreendermos nossas emoções durante a pandemia. O autor considera que a Negação no momento atual pode ser expressa por meio de enunciados como “Essa coisa toda é tão exagerada. Que circo da mídia. As pessoas contraem a gripe todos os anos e quase ninguém morre. Eu não sou do grupo de risco então ficarei bem”. Para o autor, na fase da Raiva podem surgir questionamentos como “Isso é tudo culpa da China. Se eles tivessem colocado em quarentena mais cedo, não estaríamos tendo esse problema”. Durante a fase de Negociação, Weiss sugere que o indivíduo pode pensar “não haver problema em passar tempo com outras pessoas, desde que elas lavem as mãos antes de me verem”. Na fase da Depressão, a pessoa poderia ter pensamentos como “Não posso trabalhar, não posso ganhar dinheiro. Em breve, estarei sem dinheiro e sem teto. Essa epidemia é o novo normal. Eu posso dizer adeus às minhas esperanças e sonhos. Eu sou de alto risco e provavelmente vou morrer”. Já na fase de Aceitação podem aparecer ideias como “Não consigo controlar a pandemia, mas posso fazer minha parte isolando-me em casa, lavando as mãos e mantendo-me positivo. O fato de não poder sair de casa não significa que minha vida tenha que parar. Posso trabalhar em casa e ainda posso me conectar com meus amigos e familiares via telefone e internet”. É importante alertar que essas fases são fluídas e não ocorrem necessariamente nessa ordem.

    Em relação às crianças (9), os reflexos do isolamento apresentam traços delicados com o prolongamento do fechamento das escolas e com o confinamento em casa que pode trazer efeitos negativos para saúde física e mental, assim como identificamos nos adultos. Com redução da atividade física, aumento da exposição a telas, padrões irregulares de sono e mudanças na sua rotina alimentar, o resultado é de ganho de peso, aumento da ansiedade e até mesmo de comportamentos agressivos. Além disso, tendo elas sido privadas do contato social com outras crianças, assim como do contato direto com professores, e estando expostas à educação a distância sem fundamentação teórica suficiente para embasamento pedagógico das escolas brasileiras, vemos acentuar quadros de ansiedade, de déficit de atenção, de hiperatividade, além de fobias e de quadros psicossomáticos.

    Em relação aos adolescentes e jovens, a atenção e o cuidado também se tornam importantes. Essa população está em plena fase de socialização e de construção da identidade com relativa independência dos pais e estão se vendo obrigados a ficar confinados, em alguns casos, justamente com eles (10). Diante disso, muitos conflitos internos também podem surgir, é preciso ouvi-los, respeitar sua individualidade e compreender com sinceridade que não é fácil para eles também. É muito importante manter a preocupação de não os sobrecarregar com demandas escolares e de “produtividade”, desconsiderando que estão enfrentando medos em relação a serem infectados ou a perderem pessoas queridas, além de estarem frustrados em relação às privações de contato social, com pouco espaço em casa e até mesmo preocupados com perdas financeiras que possam haver nesse quadro socioeconômico resultante da quarentena (9).

    Entendemos que a educação a distância pode ser uma ferramenta interessante para o enfrentamento da situação atual, mantendo o vínculo com a instituição educacional e com o conhecimento. Destacamos, no entanto, que há a necessidade de uma adequação ao contexto histórico, social e econômico em que estamos vivendo, considerando que o excesso pode resultar em sobrecarga emocional e ser prejudicial, causando um efeito contrário no processo de aprendizagem.

    De qualquer forma, estamos todos sendo confrontados pela pandemia do coronavírus. É um chumbo grande sobretudo em relação à saúde mental. Além do isolamento e da sensação de solidão, ainda somos obrigados a lidar com o medo e a constante reflexão sobre a própria saúde, a saúde da família e dos amigos. Minerbo (4) nos alerta que estamos vivendo um momento de incerteza que nos desafia a dar o próximo passo “no vazio”.

    Claro que a ciência e os pactos sociais nos colocam também em um outro patamar de possibilidades e de direcionamento. Mas isso nem sempre parece alcançar a todos e uma questão importante nesse processo está ligada à saúde mental: “quanto posso me colocar no lugar do outro, me solidarizar? ” Dessa forma, entendemos que o momento também pede que possamos tirar proveito de um mal negócio, e transformarmos algumas atitudes para contribuirmos com um melhor desfecho para essa pandemia. Há a importância de se poder fazer parte desse pacto social e de se responsabilizar pela situação da disseminação dessa doença, assim como de controlar de certa maneira os impactos que o difícil, mas necessário, isolamento social nos impõe.

    Nesse cenário muitas vezes é importante reconhecer o momento de procurar uma ajuda profissional para si mesmo ou para algum conhecido. Vimos aqui a importância da psicoterapia, que nesse enquadre está sendo até mais acessível diante da possibilidade de teleatendimento. Além disso, é oportuno investir nas relações, nas trocas afetivas, na comunicação aberta com as pessoas ao nosso redor, amigos, familiares, idosos, pessoas que moram sozinhas. O momento é de envolver-se com as necessidades emocionais, num esforço para aceitar diferenças e conhecer a própria individualidade e a do outro, abrindo um espaço para relacionamentos genuínos que só serão possíveis se estivermos bem com nós mesmos e com a sensação de que, ao fecharmos a porta de casa, possamos encontrar acolhimento interno durante essa experiência de vida tão difícil à qual fomos submetidos.

    Para Saber mais
    1. World Health Organization. Mental health and COVID-19, 2020. http:// www.euro.who.int/en/health-topics/health-emergencies/coronaviruscovid-19/novel-coronavirus-2019-ncov-technical-guidance/ coronavirus-disease-covid-19-outbreak-technical-guidance-europe/ mental-health-and-covid-19
    2. Xiang, Y.T., Yang, Y., Li, W., Zhang, L., Zhang, Q., Cheung, T., Ng, C. (2020). Timely mental health care for the 2019 novel corona vírus outbreak is urgently needed. Lancet. Psychiatry 7, 228–229. https://doi.org/ 10.1016/S2215-0366(20)30046-8.
    3. Editorial Lancet (2020), Covid-19 in Brazil: “So what?” Lancet 395(10235):1461. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31095-3
    4. Minerbo, Marion. Isolamento para você qual e a pior parte 2020. Disponível em: https://loucurascotidianas.wordpress.com/2020/04/17/isolamento-para-voce-qual-e-a-pior-parte/
    5. Hahad, O., Gilan, D. A., Daiber, A., & Münzel, T. (2020). Bevölkerungsbezogene psychische Gesundheit als Schlüsselfaktor im Umgang mit COVID-19. Das Gesundheitswesen. doi:10.1055/a-1160-5770
    6. Sood S. (2020). Psychological effects of the Coronavirus disease-2019 pandemic. RHiME 7:23-6.
    7. Kübler-Ross, E., & Kessler, D. (2005). On grief and grieving: Finding the meaning of grief through the five stages of loss. New York; Toronto: Scribner.
    8. Weiss, R. (2020). COVID-19 and the Grief Process. What happens to our differences when our experience is shared? https://www.psychologytoday.com/us/blog/love-and-sex-in-the-digital-age/202003/covid-19-and-the-grief-process
    9. Wang, G., Zhang, Y., Zhao, J., Zhang, J., Jiang, F. (2020) Mitigate the effects of home confinement on children during the COVID-19 outbreak. Lancet 21;395(10228):945-947. https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)30547-X
    10. Preto, M. O. Os Adolescentes na Pandemia. In: http://www.fepal.org/os-adolescentes-na-pandemia/


    logo_

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • A figura do herói e as narrativas na política

    Lucifer Rising - Uma releitura do Yin Yang por Kirsi Salonen.Está difícil evitar o tema política nesses tempos. Muitos escândalos vindo à tona, eleições presidenciais batendo à porta, participação ativa das mídias tradicional e independente, constante uso de narrativas míticas clássicas pela comunicação política, crise de descontentamento e total perda de credibilidade dos três poderes, enorme polarização da população e uma (aparente) polarização dos políticos. É evidente que o assunto não vai ser esgotado aqui. E não pretendo citar nenhum caso em particular. O objetivo desse post é apenas abordar um pouco sobre a construção da figura de um herói e a presença desse tipo de narrativa heroica no contexto político.

plugins premium WordPress