Tag: Resistência

  • Por que antibiótico não cura virose?

    Antibiótico não serve para tratar virose. Você já deve ter ouvido alguém falar isso. Mas se você não sabe por que isso acontece, hoje você vai entender.

    Mas para isso precisamos introduzir alguns conceitos… falar sobre os diferentes antimicrobianos – afinal, você sabe por que falamos tanto sobre antibióticos, mas quase não ouvimos falar nos antifúngicos ou nos antivirais?

    Então vem com a gente para termos uma visão bem ampla sobre esses medicamentos!

    Esse post é a unificação de 3 fios que fiz no twitter e que chamei de “O fio dos agentes antimicrobianos”. Eles podem ser acessados clicando AQUI.
    Também já comentamos aqui no blog sobre o uso de Azitromicina para o tratamento de Covid; e como o uso de antibióticos na covid pode contribuir para acelerar a epidemia das bactérias multirresistentes (parte 1 e parte 2).

    Os micróbios são muito diversos… e o que a gente chama de micróbio (ou de microrganismo) varia um pouquinho de acordo com que está falando. Aqui, neste post, a gente está considerando apenas os vírus, os fungos e as bactérias.

    Na figura abaixo temos um comparativo de tamanho entre esses micróbios…

    O círculo azul no fundo representa uma célula de levedura. Levedura é um fungo unicelular eucarioto (a gente vai falar sobre isso ali embaixo) e possui um tamanho relativamente grande. Depois, seguindo a ordem de tamanho, temos as células bacterianas (temos quatro no desenho, uma esférica cinza e três mais alongadas marrons – uma maior e duas menores). Veja que as bactérias variam no tamanho e na forma! Em seguida, temos os vírus, que são ainda menores. Eles estão indicados pelos números de 1 a 9 na figura. E o pontinho indicado pelo número 10 é uma molécula de hemoglobina, uma proteína que é encontrada nas células vermelhas do nosso sangue, e é responsável por transportar o oxigênio no nosso sangue.

    Apresentados os microrganimos, temos que introduzir um outro conceito muito importante.

    Quando falamos de agentes antimicrobianos (ou anti-infecciosos) esperamos que eles tenham uma característica que chamamos de TOXICIDADE SELETIVA. Isso significa que o fármaco deve ser tóxico para o microrganismo, mas deve causar o mínimo de dados ao hospedeiro (no caso, a gente mesmo!).

    Para isso, temos que buscar medicamentos que atinjam alvos importantes dos microrganismos mas que sejam diferentes dos presentes no hospedeiro. É aí que está o pulo do gato – e que explica não só a dificuldade em desenvolver novos fármacos, mas também os efeitos colaterais causados por esses medicamentos.

    Além disso, é a seleção desses alvos que faz com que os agentes antimicrobianos tenham um espectro ação amplo ou curto. Um espectro de ação amplo significa que o antimicrobiano atinge uma grande variedade de microrganismos, enquanto um espectro de ação curto, nos indica que esse antimicrobiano tem um uso mais restrito, apenas para alguns tipos de microrganismos. É isso que esta figura aqui embaixo nos mostra.

    Feitas essas considerações, vamos começar a falar dos agentes antimicrobianos mais famosos! São eles: os ANTIBIÓTICOS ou ANTIBACTERIANOS

    Quando falamos em células bacterianas, achar esses alvos é relativamente mais simples, sabe por quê? Olha a estrutura geral de uma célula bacteriana (procariótica) e de uma célula humana (eucarótica). Elas são muito diferentes (tanto no tamanho quanto nas estruturas)! – Ah! Você lembra da primeira figura? Os fungos são eucariotos assim como nós!

    De forma bem resumida podemos dizer que os eucariotos (células animais, vegetais e de fungos e protozoários) possuem o DNA “guardado” numa região específica chamada núcleo e que é delimitada por uma membrana e, também, tem diversas organelas complexas também membranosas. Os procariotos (bactérias) possuem o DNA disperso no citoplasma da célula.

    Com essas diferenças, a diversidade de alvos para os antibacterianos é bem extensa. Podemos dividi-los em grandes grupos de acordo com o alvo e seu nodo de ação. Como podemos ver nessa figura, os mecanismos de ação podem ser:

    • 1. Inibição da formação da parede celular bacteriana
    • 2. Inibição da fabricação de proteínas
    • 3. Inibição da multiplicação do DNA (replicação) e da formação de RNA (transcrição)
    • 4. Danos à membrana plasmática
    • 5. Inibição de reações de vias metabólicas específicas

    Apesar de vários desses processos acontecerem tanto nas células humanas quanto nas bacterianas, existem diferenças significativas entre eles. E são essas diferenças que serão usadas como alvo para os antibióticos.  E a diversidade deles é bem grande!!!

    Alguns desses medicamentos tem alta toxidade e causam danos, por exemplo, no fígado ou nos rins… esses efeitos colaterais são decorrentes, principalmente, da inibição da síntese de proteínas nas mitocôndrias das células humanas. Mitocôndrias são organelas responsáveis por gerarem energia e disponibilizá-la para que as células executem suas funções. Esses efeitos ocorrem devido ao fato de as mitocôndrias terem estruturas muito parecidas com as bactérias e, assim, elas podem acabar sendo alvos indiretos desses medicamentos.

    A resistência a antibacterianos vem se agravando e as estimativas indicam de 700 mil pessoas morrem por ano por complicações causadas por bactérias resistentes. Para 2050, esse número deve subir para 10 milhões!

    O uso indiscriminado de antimicrobianos ou seu uso incorreto tem contribuído muito para que isso aconteça… e ainda vamos ver os efeitos do uso de antibióticos no tratamento da COVID.

    “Ah, mas eu compro antibiótico na farmácia perto da minha casa.”

    Não compre, não é de bom tom, é perigoso e é ilegal! Sim, a Anvisa proibiu a venda de antibióticos sem receita desde o final de 2010.

    Agora chegou a vez de falarmos dos ANTIFÚNGICOS. Quando comparamos a diversidade entre esses medicamentos e antibióticos, vemos que há uma diversidade muito menor de fármacos para o tratamento de infecções fúngicas.

    Isso acontece porque, como já falamos, a célula fúngica é eucariótica, assim como a nossa. E, por isso, nossas células e as dos fungos compartilham muitas semelhanças genéticas, estruturais (em proteínas, por exemplo) e em processos celulares e moleculares.

    Então é muito mais difícil achar um fármaco que tenha ação sobre um fungo, mas que não afete as nossas células. Por isso, muitos antifúngicos têm limitações, como: efeitos colaterais, espectro reduzido e baixa penetração em alguns tecidos.

    Nos últimos anos, a terapia antifúngica tem sido reformulada e novos agentes menos tóxicos têm sido desenvolvidos. E a toxicidade implica inclusive na forma de administração: uso tópico (para os mais tóxicos) ou sistêmico (toxicidade seletiva).

    Além disso tudo, também temos que nos preocupar com o desenvolvimento de resistência aos antifúngicos. Candida auris, por exemplo, é um patógeno fúngico de grande importância hospitalar, que é de difícil identificação e, para piorar, é resistente a diferentes classes de antifúngicos! Já falei sobre isso aqui no blog!

    Assim, dentre os alvos para os quais direcionamos a busca de antifúngicos estão:

    • Síntese de proteínas
    • Síntese de ácidos nucleicos
    • Parede celular
    • Membrana celular (inibição da síntese ou dano direto)
    • Inibição da divisão celular

    Dois alvos interessantes quando falamos de fungos são a parede celular (porque nossas células não a possuem) e a membrana celular (que apesar de também termos, na nossa há a presença do colesterol como principal esterol, enquanto nos fungos observa-se maior presença do ergosterol).

    Acho que deu pra entender um pouquinho do motivo de a diversidade dos antifúngicos não ser muito grande…

    Agora vamos falar sobre os antivirais…

    Para falarmos sobre os ANTIVIRAIS precisamos antes falar um pouquinho sobre os vírus… Sabe por quê?

    Os vírus possuem uma estrutura muito diferente dos fungos, das bactérias, e de nós! Pra início de conversa, nem células eles têm (e, por isso mesmos, eles nem são considerados como seres vivos por muitos pesquisadores)! Eles consistem basicamente em material genético (DNA ou RNA) dentro de uma cápsula de proteína (e às vezes um envoltório de gordura).

    Mas é importante entendermos que, justamente por não possuírem células, para se multiplicarem os vírus utilizam da estrutura da célula do seu hospedeiroque pode ser uma bactéria, um fungo, ou uma célula humana!

    Em outras palavras:

    A toxicidade seletiva é muito difícil pois os mecanismos utilizados para a replicação do vírus são os mecanismos básicos de sobrevivência das células hospedeiras – assim, a chance de o fármaco atingir uma função vital da célula é bem grande!

    Por isso temos poucos antivirais e todos com espectro de ação bem restrito. A consequência é que poucas são as doenças tratáveis com esses agentes: Herpes, Catapora, Citomegalovirus, HIV, Gripe, Vírus respiratório sincicial, Hepatite B e C, Adenovirus, Papilomavirus.

    Os antivirais têm, geralmente, como alvo as enzimas codificadas pelos vírus e que são importantes para sua multiplicação ou que atuam na ativação da resposta imune do hospedeiro.

    Possíveis alvos para ação dos antivirais:

    • Inibição da ligação ou da penetração do vírus na célula hospedeira
    • Inibição da liberação, replicação ou síntese de material genético
    • Inibição da transcrição reversa do RNA (etapa importante do ciclo do HIV)
    • Inibição da síntese de proteínas
    • Inibição da montagem dos novos vírus
    • Inibição da disseminação do vírus pelo hospedeiro

    A resistência aos antivirais também é um problema devido às altas taxas de mutação viral (principalmente dos vírus de RNA) e aos tratamentos de longa duração em pacientes com infecções crônicas, como os imunocomprometidos (p.ex. com HIV+).

    FINALIZANDO…  (Ou, por que antibiótico não serve para tratar virose?)

    Acho que nesse post conseguimos fazer um caminho longo, mas que deixa claro por que um antibacteriano não serve para tratar uma virose…

    Ou seja: bactérias e vírus são microrganismos com uma biologia muito diferente entre si – essas diferenças são estruturais, moleculares, bioquímicas, na forma como infectam seus hospedeiros, dentre outras tantas que falamos ali em cima… Como os medicamentos utilizados para combater esses microrganismos atingem justamente esses diferentes alvos, os antibacterianos não são eficazes contra vírus.

    Ou, de forma simples e resumida: são microrganismos diferentes e os medicamentos para combatê-los também possuem alvos muito diferentes!

    Antes de terminar, só uma palavrinha sobre resistência:

    O uso de antimicrobianos, por si só, contribui para o aumento da resistência. Seu uso indiscriminado, bem como seu uso incorreto (dosagem ou tempo diferentes do recomendado) podem contribuir para o agravamento desenvolvimento da resistência entre os microrganismos. Isso é muito sério, mas é um assunto longo e vai ficar para um próximo post!

    Nota do Editorial COVID-19

    E qual a razão deste post estar no Especial COVID-19? Sabemos que existe uma grande busca por medicamentos que curem a doença e eliminem o vírus do nosso organismo. Também sabemos que existem antibióticos que têm sido usados, que existe toda uma “ansiedade”, expectativa e espera por novidades. Neste sentido, é fundamental uma discussão que consideramos “de base” tanto do funcionamento da ciência, quanto dos motivos pelos quais não usamos medicamentos de qualquer modo, para sanar mais uma expectativa de cura, do que uma realidade estabelecida que gerará resultados.

    Este post tem esta ideia: nos mostrar alguns caminhos para compreendermos melhor o funcionamento do medicamentos! E em tempos de COVID-19, é importante estas relações bem delineadas!

    Referências:

    • Madigan et al. (2016). Microbiologia de Brock – 14 ed.
    • Murray et al. (2021). Medical Microbiology – 9 ed.
    • Riedel et al. (2019). Jawetz’s Medical Microbiology – 28 ed.
    • Tortora et al. (2017). Microbiologia – 12 ed.
    • Trabulsi & Alterthum. (2015). Microbiologia – 6ed.

    Este texto foi escrito originalmente para o blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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  • Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Esse texto é continuação do post: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    A resistência a antimicrobianos (RAM) é conhecida como um problema que não tem fronteiras e é um problema global. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a OMS, uma pandemia é caracterizada por sua disseminação e não necessariamente pela gravidade da doença. Indiscutivelmente, a RAM também pode ser considerada uma pandemia que embora seja mais insidiosa e com menos efeitos imediatos na vida cotidiana, possui impactos negativos potencialmente mais amplos. Vamos entender por que isso acontece nesse post. Vem com a gente!

    Como falamos anteriormente, o uso de antimicrobianos está aumentado pelo uso dessas drogas no tratamento e na “prevenção “ da covid-19 tanto no ambiente hospitalar quanto na comunidade. Curiosamente, a resistência das bactérias aos antimicrobianos, que é sempre uma preocupação no meio hospitalar, parece não estar recebendo a devida atenção nesse momento. É por isso que muitos cientistas da área estão tentando chamar a atenção para a importância de um potencial agravamento da pandemia global de RAM.

    As UTIs, locais onde concentram os pacientes mais graves da covid-19, são epicentros comuns para o desenvolvimento da RAM. O uso exacerbado de antimicrobianos pode, portanto ter grandes consequências em hospitais que já apresentam elevada prevalência de bactérias resistentes a múltiplas drogas, levando a um aumento de mortalidade devido ao reduzido arsenal de antibióticos para tratar as infecções ou coinfecções adquiridas. Portanto, há comprometimento também de pacientes pós-cirúrgicos, transplantados ou quimioterápicos, por exemplo. Como terminamos falando no post anterior, não estamos falando que não se deve usar antimicrobianos nem que as coinfecções devam ser subestimadas. Mas os profissionais de saúde devem considerá-las num plano integrado para limitar o fardo da morbimortalidade durante a pandemia da covid-19 e, ao mesmo tempo, evitar um possível agravamento da RAM.

    Uma medida muito disseminada de proteção contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2) é a higienização das mãos… medida excelente, funcional e simples! Porém, muitas vezes realizada com o uso de sanitizantes ou sabões antibacterianos, que contém agentes químicos que, apesar de não adicionar muita coisa em termos de proteção, podem dar gatilho para a resistência antimicrobiana. E isso acontece porque um dos mecanismos de resistência das bactérias são bombas de efluxo que literalmente jogam os antimicrobianos para fora da célula. Muitas vezes, as bombas que conferem resistência a esses sanitizantes são as mesmas daquelas necessárias para conferir a RAM.

    Esses agentes biocidas caem na rede de esgoto e chegam ao ambiente, onde acabam elevando as concentrações dessas drogas. Claro que no caminho essas drogas são diluídas, mas temos que considerar a concentração final desses agentes… Se muito elevadas, muitas bactérias vão morrer, isso pode impactar negativamente os ecossistemas e, ao mesmo tempo, evitar o desenvolvimento da RAM. Porém concentrações baixas (sub-inibitórias) podem aumentar a pressão seletiva e promover oportunidades para o surgimento e a seleção da RAM. De forma muito simplificada, concentrações sub-inibitórias dessas drogas ativam vias de respostas ao estresse que, por sua vez, aumentam a ocorrência de mutação nas bactérias. Isso está relacionado a uma maior taxa de variabilidade entre entre as células bacterianas e, portanto,  a maiores possibilidades do surgimento e seleção de indivíduos resistentes daquela população. O fenômeno da seleção sub-inibitória é muito bem estudado para antibióticos, mas pouco para biocidas. Não podemos, portanto, desconsiderar os efeitos ambientais, uma vez que níveis aumentados de antimicrobianos são liberados no ambiente aumentando os níveis de resistência em animais (selvagens e de corte), na agricultura e nos ambientes naturais.

    [atualização 27/07]: É importante ressaltar que resíduos dos antimicrobianos que tomamos são eliminados pelas fezes e pela urina, caindo na rede de esgoto e, consequentemente, no ambiente. É tudo um ciclo, uma grande bola de neve! É algo que, realmente, deve nos preocupar!

    Falamos brevemente da ocorrência da RAM em hospitais e no meio ambiente. Mas por que devemos nos preocupar tanto!?

    Nos últimos anos a RAM já é citada com a maior ameaça global à saúde pública e à economia global, mas agora está não só eclipsada pela covid-19, como também corre risco de ser agravada por essa nova pandemia. Ou seja: muitos especialistas agora temem que o esforço global para manter a RAM sob controle possa enfrentar um revés durante a pandemia

    Vamos falar com números:

    A RAM já mata cerca de 700.000 pessoas por ano. Numa estimativa grosseira, e considerando-se que a covid-19 mantenha as taxas de mortalidade pelo restante do ano, estima-se que a RAM resultará em 130.000 morte a mais neste ano. As mortes por COVID podem superar as mortes por RAM neste ano de 2020 e o uso de antimicrobianos em pacientes com COVID também pode até reduzir o aumento na mortalidade por COVID em curto prazo mas, por outro lado, a consequência é um provável aumento na mortalidade por RAM a longo prazo. Estima-se que até 2050, a mortalidade associada a RAM será aumentada para 10 milhões de mortes por ano!  Tudo indica que que a covid-19 será controlada em um tempo consideravelmente menor.

    A movimentação dos pesquisadores é para que os princípios da administração de antibióticos não sejam relaxados mesmo nesses tempos de pandemia. A necessidade do tratamento com antibiótico deve ser avaliada rapidamente e interrompida se não for necessária. Observe que não estamos advogando em favor do uso profilático (preventivo) desses medicamentos! Além disso, quem deveria informar o antibiótico de escolha é o laboratório de microbiologia e baseado no micro-organismo e no padrão de resistência observado.

    Falamos anteriormente que a OMS já se manifestou contra o uso de antibióticos durante o tratamento inicial de covid-19. Essa cautela deve-se principalmente em relação a dois pontos: 1) o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos pode contribuir para a emergência da RAM, daí a necessidade de se reduzir o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos (sim, a repetição aqui foi intencional!) e; 2) o uso de antimicrobianos no tratamento da covid-19 pode levar à população a assumir que todos os antibióticos são elegíveis para o tratamento de infecções virais.

    A ocorrência de infecções por patógenos resistentes pode ser significantemente mitigada pela administração de antimicrobianos baseada em evidência em todos os setores (agricultura e medicina veterinária e humana). Embora tenhamos tempo, a RAM não será contida sem o desenvolvimento de novas vacinas, medicamentos e testes rápidos (assim como na COVID!).

    Curiosamente, as estratégias de utilizadas para reduzir a transmissão da covid-19 (distanciamento social, lock-down, fechamento de fronteiras, lavar as mãos com água e sabão) podem, também, reduzir o espalhamento da RAM! Detalhe que a redução das viagens (fechamento de fronteiras) diminui a movimentação de genes de RAM entre países!  Seria muito interessante ver estudos que comparem dados de prevalência de infecções causadas por bactérias RAM antes e depois da pandemia de covid-19, bem como dos perfis de resistência que estão surgindo…

    Essa tabela aqui (modificada de Nieuwlaat et al., 2020) ajuda a comparar as duas pandemias:

    Finalizando:

    • A resistência a antimicrobianos é uma pandemia que já preocupa cientistas e profissionais da saúde há um tempo, tem impactos relevantes e estima-se que nos próximos anos será ainda mais preocupante.
    • Ainda não sabemos o real impacto da pandemia da covid na pandemia da RAM, mas estamos preocupados e alerta para seu provável agravamento e suas possíveis consequências.
    • É importante uma estratégia multifacetada contra os organismos RAM que envolva: a) estudos prospectivos sobre coinfecções na covid-19 para orientar o tratamento com antimicrobianos; b) monitoramento e relato transparente dos padrões de RAM nas UTIS para guiar o uso adequado de antimicrobianos; c) esforço global coordenado para estabelecer uma estrutura de governança, vigilância e relatos de RAM, tanto agora como depois da pandemia da covid-19.
    • É comum pessoas acreditarem que antibióticos podem ser utilizados para infecções virais (gripe). Usar termos como antivirais pode ajudar a entender que existem diferentes tipos de medicamentos para diferentes tipos de infecção.

    Referências:

    • Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
    • Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
    • Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
    • Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
    • Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
    • Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
    • Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
    • Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
    • Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098

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    Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Uma pandemia impulsionando outra – Parte 1: O uso de antimicrobianos durante a pandemia da covid-19

    Em cerca de 8 meses a covid-19 surgiu, espalhou por todo o mundo e se tornou uma pandemia de efeitos devastadores… O que talvez você não saiba é que, paralelamente à covid-19, uma outra pandemia vem ganhando cada vez mais importância trazendo muita preocupação dos cientistas da área. A relação entre as duas é importante, sendo um caso de uma pandemia impulsionando outra. E quando falamos de pandemia impulsionada não estamos falando da covid-19, mas sim da pandemia que já estava em andamento, a das bactérias multidroga resistentes (também chamadas de superbactérias).

    Ainda não temos uma terapia licenciada ou uma vacina para o tratamento da covid-19 e cujo alvo seja o SARS-CoV-2 (o novo coronavírus). Essa situação tem levado diversos médicos a considerarem e testarem drogas baseadas na modulação da resposta imunológica (reduzindo a inflamação) observada em testes in vitro (como falamos no post anterior “Antibiótico contra vírus?”). Muitas vezes, esse hype prematuro em torno de possíveis terapias para a covid-19 é associado a relatos da mídia e de líderes políticos que amplificam o possível uso dessas drogas — apesar da falta de evidências clínicas de sua eficácia. Isso pode contribuir, ainda, para a escassez dessas drogas para quem efetivamente precisa; como, por exemplo, aconteceu com a cloroquina aqui no Brasil.

    Sabemos que infecções respiratórias causadas por vírus podem fazer com que pacientes tenham mais chances de serem acometidos por coinfecções causadas por fungos e/ou bactérias. Da mesma forma, infecções prévias podem atuar agravando o quadro da infecção respiratória. Apesar de ainda estarmos aprendendo sobre a progressão da covid-19, acredita-se que esses cenários que envolvem coinfecção piorem o quadro da doença. Por exemplo, sabe-se que a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 pode aumentar a colonização e a adesão bacterianas ao tecido, e que as infecções combinadas podem resultar no aumento da destruição tecidual que, por sua vez, pode facilitar a disseminação sistêmica dos patógenos, aumentando o risco de infecções da corrente sanguínea e sepse.

    É relevante considerarmos essas questões, pois, além dos riscos relacionados aos vários efeitos colaterais, ao reduzirem a resposta imunológica, essas intervenções podem acabar aumentando o risco de infecções bacterianas secundárias e potencialmente fatais. Por isso, é sempre importante ressaltar a necessidade de se realizar análises cuidadosas acerca das dosagens e da forma de administração das drogas, além da importância de os pacientes estarem sendo acompanhados de perto pele uma equipe médica.

    E aonde queremos chegar com isso tudo?

    Apesar dos poucos dados disponíveis sobre o assunto, o que está sendo observado é que há um aumento considerável na prescrição de antimicrobianos, ainda que não seja observado um aumento proporcional no número de coinfecções durante as internações por covid-19. Só para você ter uma ideia, as estimativas sugerem que cerca 60-70% dos pacientes são tratados com antimicrobianos, ainda que de 1% a 10% tenham apresentado coinfecção fúngica ou bacteriana.  Esses pacientes podem, portanto, estar recebendo desnecessariamente antibióticos com eficácia questionável ou ainda não comprovada. Sem contar que, inclusive, em alguns lugares, as terapias com antimicrobianos fazem parte do protocolo de tratamento clínico inicial ou até “preventivo”

    Orienta-se que a administração de antimicrobianos seja feita, sempre que possível, com um antibiótico de espectro curto e direcionado ao patógeno primário, ou seja, aquele a que se quer combater. No caso da covid-19, os principais sintomas observados são tosse e febre – que já estão associados a um maior uso de antibióticos nos hospitais e na comunidade. E, além disso, quando os médicos não possuem todas as informações necessárias para entender realmente o que está acontecendo ao paciente, eles tendem a utilizar mais antibióticos —situação que parece ter se agravado ainda mais com os atendimentos remotos, que ocorrem a distância, via chamada pelo celular ou computador (telessaúde).

    Claro que temos que lembrar que os hospitais estão lotados e que pacientes em estado crítico são, geralmente, intubados e ficam hospitalizados por semanas em UTIs. Essa situação cumpre praticamente todos os requisitos necessários para a ocorrência de infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS – esse é o nome chique do que chamávamos simplesmente de infecção hospitalar). E, ainda por cima, dados hospitalares mostram um aumento lento e constante da resistência a múltiplas drogas pelas bactérias Gram-negativas, que podem ser potencialmente mortais quando associadas  à covid-19. Mais preocupantemente, existem evidências clínicas que sugerem que o uso empírico e inadequado de antibióticos de amplo espectro pode estar associado a maior mortalidade, pelo menos em casos de sepse.

    Além de tudo isso que falamos, preocupa o fato de que é frequentemente observado o uso de antibiótico de amplo espectro (que são desenvolvidos para matar uma grade variedade de bactérias) nesses tratamentos. Isso é preocupante uma vez que o uso excessivo e inapropriado dessas drogas (uma vez que as terapias não são focadas para a eliminação de um único patógeno primário) podem acabar agravando os quadros de resistência a antimicrobianos.

    Para terminar, é importante ressaltarmos que a Organização Mundial da Saúde, a OMS, desencoraja o uso de antibióticos para casos leves de covid-19, ainda que recomende o uso em casos graves com risco aumentado de infecções bacterianas secundárias e morte.

    Vamos falar sobre resistência e porque pensar sobre ela é tão importante. Veja na continuação desse post!

    Clique para ler: Uma pandemia impulsionando outra – Parte 2: Resistência bacteriana a antimicrobianos: por que se preocupar?

    Resumindo o que falamos até agora:

    • Antimicrobianos estão sendo comumente prescritos para prevenção ou tratamento da COVID-19, mesmo sem a ocorrência de coinfecção bacteriana presumida ou confirmada diretamente relacionada ao covid-19, ou que coocorrem no momento da infecção, ou que seja associada aos cuidados de saúde (internação prolongada em UTI)
    • Evidências atuais sugerem que a coinfecção não-viral (bacteriana ou fúngica) em pacientes com covid-19 é baixa (1 a 10%). Contudo, as taxas de prescrição e uso de antimicrobianos de amplo espectro são altas (60 a 70%).
    • A utilização de antibióticos, principalmente de amplo espectro, pode contribuir para o agravamento da pandemia já em curso das superbactérias, que são resistentes a vários antibióticos e, portanto, difíceis de serem mortas.

    Referências:

    • Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
    • Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
    • Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
    • Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
    • Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
    • Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
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    Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

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