Tag: risco

  • Como a percepção do risco afeta nosso comportamento na pandemia?

    Texto escrito por Marco Antonio Coelho Bortoleto*

    Viver com a iminência do risco 

    O risco representa um elemento da vida, uma ameaça, um impulsionador, uma razão para pensá-la. Da filosofia clássica à ciência moderna o risco vem sendo objeto de inúmeras reflexões. E, algumas situações acabam ampliando nossa atenção sobre o risco, como vem sendo o caso do atual período da pandemia Covid-19.

    Como vemos cotidianamente, podemos analisar o risco nas suas mais variadas dimensões (econômica, reconhecimento social, saúde, êxito profissional, etc)1. Nos interessa aqui, tratar do risco à integridade/manutenção do estado de bem estar e da própria vida. Uma conversa que perpassa, portanto, a noção de segurança, de prevenção, controle e mitigação do risco, que em conjunto compõem um sub-campo denominado gestão do risco.

    Sociologia do risco

    Nesse ainda efervescente contexto pandêmico, a sociologia do risco emerge como uma possibilidade2. Mais ainda, a noção de PERCEPÇÃO DO RISCO tão relevante para essa área do conhecimento, pode ajudar a melhor entender o modo individual (cada um de nós) e coletivo (grupos sociais) com que as pessoas vivem a ameaça viral e como constroem e reconstroem seu enfrentamento.

    De entrada vemos polarizações semelhantes àquelas já encontradas nas posições políticas, mostrando algumas pessoas/grupos despreocupadas (ao menos discursivamente), outras atentas e buscando atender às medidas de contenção/prevenção e, por fim, outras oscilando entre um lado ou outro. Assim, discursos e comportamentos refletem desde a percepção de uma gripezinha até mesmo a hipertrofia do medo com crises de pânico e depressão. Um problema de saúde pública, como poucos que já vivemos. Eis a razão que explicaria que tantos profissionais e veículos de comunicação têm abordado o fato!

    Um olhar atento à complexidade do risco, pode revelar o que está nas entrelinhas do reconhecimento e o trato do risco. A análise dos múltiplos indicadores (objetivos e subjetivos) faz-se necessária e, como temos visto, pode variar muito entre profissionais (especialistas) e também entre a população em geral. Aliás, opinar é importante, ao revelar o grau de liberdade e de existência numa sociedade democrática, contudo, eleva o grau de risco uma vez que proliferam todos os tipos de análises, criando, com frequência, um estado de confusão ainda maior.

    Logo, quer seja utilizando ferramentas estatísticas, métodos de prospecção probabilísticos, ou mesmo, opiniões fundadas em preceitos religiosos e de sentido comum, o que observamos é um sem fim de comportamentos reforçando ou criticando/negando o risco da pandemia. Enganam-se aqueles que acham que somente os “leigos” erram, ou que os especialistas sempre acertam. Há muito risco – explicado pela epidemiologia dos acidentes – no ambiente doméstico, na condução de veículos por vias próximas e conhecidas, na conduta  do trabalhador experiente. E, certamente há muito ainda que aperfeiçoar nos modelos e algoritmos que utilizamos para predizer a dinâmica de um fenômeno tão complexo quanto essa pandemia, como todos vimos acontecer ao longo de décadas com os dispositivos utilizados para previsão meteorológica, por exemplo.

    Percebendo o risco – estamos diante de um dilema

    É precisamente, a Percepção do Risco, que nos ajuda a refletir em como, entre outras coisas, alguns pesquisadores e profissionais da saúde – que se enquadram na categoria de especialistas – seguem negando a pandemia, sua amplitude bem como alguns ou todos os mecanismos preventivos adotados pelas autoridades. Ou, também, como amigos, pessoas próximas e familiares divergem tanto um dos outros nesse tema. Esse dilema, nos apresentou mais uma CRISE, que já tinha sido notada no campo da política-eleitoral recentemente.

    Assim, a negação ou a minimização do risco pode converter-se num comportamento de risco: ou seja, em condutas que podem ampliar o risco já elevado e, suas consequências. Pior, ainda que eu queira ser esperançoso, muitas vezes, a tentativa de esconder ou infra valorizar o risco representa uma estratégia que visa redirecionar a atenção para outras dimensões da vida individual ou social (econômica, política, ética, laboral, afetiva, …). o referido comportamento de ignorar e/ou minimizar o risco já foi amplamente observado – no campo da sociologia – quando um conjunto de pessoas experienciaram o estado de guerra por um tempo prolongado, ou quando enfrentam uma pandemia, como a do vírus HIV. Temos, então, mais um indicador que contribui para entender o que temos visto Brasil afora, após um ano de pandemia. 

    Cabe relembrar que não é uma novidade a proliferação de frases de efeito, para combater o risco, como, por exemplo: “precisamos viver”, “abram tudo”, “apenas alguns vão morrer”, “é melhor enfrentar o vírus de peito aberto do que fugir dele”, “essa doença é para os fracos”, …  um discurso forte, repetido e maquiado por agumentos supostamente válidos, pode assumir o controle do comportamento de algumas pessoas e, algumas vezes, das massas.

    Em poucas palavras, notamos que a percepção do risco – como construção subjetiva – pode variar significativamente, considerando o quão distante estamos do problema (o imaginamos estar), quais informações temos sobre os riscos, quanto temos a perder, entre outros aspectos. Com efeito, a opinião de uma pessoa, pode, quando reverberada nos meios e com a força adequada, tornar-se uma percepção coletiva. Por isso, o poder conferido às autoridades e, de certa forma tod@s @s internautas das redes e dos apps, representam, na atualidade, um poderoso mediador dessas percepções. Por conseguinte, relevantes indicadores para a sociologia do risco.

    Controlar o risco – mais que uma opção, uma necessidade

    A mesma sociologia do risco indica que, a observação dos fatos (acidentes, epidemias, lesões, …) e dos comportamentos, constituem uma boa metodologia para o controle do risco. Aprendemos, pois, que a busca por mecanismos redundantes de verificação (medir a temperatura, testagem em massa, …). Possuir uma “cópia de segurança”, solicitar uma segunda opinião no diagnóstico, verificar a informação em outra fonte, exigir um segundo laudo pericial, utilizar outra ferramenta/algoritmo para os cálculos, são alguns dos mecanismos de redundância empregados em distintas áreas. Deixar de realizar essas operações, como usar outro amigo do mesmo grupo do whatsapp pode, pelo contrário, promover a confirmação de um diagnóstico equivocado.

    Por isso, a instauração de um olhar complexo incluindo variáveis biológicas/genéticas, psicológicas, afetivas, econômica e sociais, são fundantes para a constituição de uma “cultura de segurança” que, mesmo incapaz de extinguir o risco pode ajudar na instauração de um controle amplo e tolerável, oferecendo condições para a normalização da vida.

    Desse modo, os protocolos sanitários (uso de EPI, verificação constante dos avanços farmacológicos e procedimentais, emprego amplo da vacinação, …) são empregados como modelos a serem seguidos. Isto é, são necessários para enfrentar o caos que temos observado nos discursos e nas práticas de governantes, gestores, especialistas e da comunidade em geral. 

    O controle do risco, por meio de mecanismos preventivos e sua consequente ampliação do estado de segurança, é apontado pela sociologia e com forte apoio das pesquisas em Saúde Pública e Economia, como uma ação mais efetiva. O tratamento, uma vez instaurado o problema (o contágio pelo vírus nesse caso), é mais oneroso, lento e exigente, ampliando os sacrifícios pessoais e institucionais. 

    Isso posto, mesmo não existindo uma solução simples, pragmática e rápida, apesar da urgência e gravidade da situação, fomentar os procedimentos de controle do risco representa uma missão de todos, principalmente das autoridades.

    Comportamento de risco – ponderando sobre nossas decisões

    Devemos entender que nossas decisões e, por consequência, nosso comportamento na esfera íntima e, especialmente, na pública, não deveria balizar-se numa conduta de risco deliberado como numa APOSTA3. Perder, quando a integridade da vida é o que se está apostando, pode representar o fim, uma tragédia para nós e/ou para muitos que convivem conosco. Sendo assim, “apostar” no não uso da máscara em meio a tantas evidências de sua eficácia no controle (diminuição) do contágio, representa um bom exemplo de comportamento de risco. Uma clara sinalização de estarmos subestimando o risco real por razões que carecem de comprovação factual, como já mencionamos.

    Esse e outros comportamentos que negam a magnitude da atual pandemia mundial, vêm construindo uma percepção turva dos riscos4, um cenário confuso que entorpece as decisões (individuais e coletivas), ao ponto de ignorar muitas das estratégias preventivas, como o isolamento social, a higienização recorrente das mãos, entre outras5. Constitui-se, dessa forma, um cenário favorável para a emergência de diferentes condutas de risco 2, muitas vezes inadvertidas e que ignoram o risco e suas consequências para a vida. 

    O controle do risco é, com frequência, mais eficiente quando realizado com múltiplos agentes, estando ainda baseado em distintas perspectivas teórico-metodológicas. A prevenção, como estratégia, costuma ser mais barata e eficiente, do que a remediação, como já dissemos. Consequentemente, a implementação de procedimentos avaliativos e preventivos que contribuam para minimizar os riscos e aumentar o controle de segurança, torna-se um empreendimento de co-responsabilidade (individual-coletivo). Em suma, um dever de tod@s!

    Em oposição, condutas temerárias, como a de publicar ou reverberar informações dúbias, fake news ou mesmo narrativas representam um ato de construção de uma percepção negacionista do risco, ampliam nossa dificuldade de afrontar a pandemia. O mesmo se aplicaria à condutas como dirigir embriagado, não utilizar EPI em trabalhos que os exijam, indicar medicação sem o devido diploma para tal, dentre tantas outras.

    Vale lembrar que o risco não deve ser encarado como um aspecto negativo, como algo RUIM, mas como uma dimensão da vida que pode ajudar na sua manutenção. Reconhecendo sua natureza ambivalente6. Por isso, numa sociedade superprotetora parece-me ainda mais urgente, rever o processo de educação do RISCO, nem subestimando-o, nem promovendo a hipertrofia do medo. 

    Fica patente que a gestão do risco deve integrar todos, mostrando que somos CO-RESPONSÁVEIS, individual e coletivamente. A busca e a difusão dos protocolos e dos comportamentos devem compor a agenda universal. Evidentemente, a gestão do risco pode e deve ser debatida considerando diferentes perspectivas (das teorias psicológicas à matemática da Teoria dos Jogos). Mas esse será tema para uma outra conversa.

    Para saber mais

    1. COLLARD, L., « Le risque calculé dans le défisportif », L’Année sociologique, n° 2, vol. 52,2002.

    2a. LE BRETON, David. La sociologie du risque. Paris: PUF , 2016.

    2b. Le Breton D (2017) Conduites à risque. Des jeux de mort au jeu de vivre. Paris: PUF.

    3. COHEN, J (1956) Risk and gambling, New York: Longmans, Green and Co Inc.

    4. BRETON, David Le (2019) Ambivalences du risque. Sociologias,  Porto Alegre ,  v21, n52, p34-48.

    5. Percepção do risco e prevenção na pandemia (2020)

    Saber mais 

    Aplicabilidade no campo da segurança do trabalho (Risco e Segurança no Circo) – Reportagem Revista CIPA

    Lupton Deborah (ed.). Risk and Sociocultural Theory: New Directions and Perspectives. Cambridge: Cambridge University Press,  1999.

    O que é risco 

    O autor

    Marco Antonio Coelho Bortoleto Professor Associado do Departamento de Educação Física e Humanidades (DEFH) da FEF/UNICAMP Suas pesquisas no campo da Sociologia e particularmente da Sociologia do Risco tiveram início devido ao interesse na noção de risco (e algumas derivadas: segurança, prevenção, …) no campo das práticas acrobáticas – principalmente da Ginástica Artística e do Circo.  Há mais de 15 anos estabeleceu a “cultura de segurança” como uma linha de pesquisa, com diversas publicações, com destaque para a co-organização de um livro “Segurança no Circo: questão de prioridade”; e um recente capítulo publicado na França sobre a percepção do risco entre artistas circenses brasileiros.

    BORTOLETO, MAC. Perception du risque et causes d’accidents, un challenge permanent dans l’éducation des artistes brésiliens. IN: GOUDARD, Philippe; BARRAULT, Denys. (ed.). 

    Médicine et Cirque, Sauramps Medical, Montpelier, 2020.

    FERREIRA, D.; BORTOLETO, MAC.; SILVA, E. Segurança no Circo: questão de prioridade. Várzea Paulista, Ed. Fontoura, 2015. 

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Quando o aumento das Fake News mexe com a temperatura

    Os termômetros clínicos digitais infravermelho, esses usados para aferir a temperatura na entrada nos estabelecimentos, são seguros. Eles medem a quantidade de luz que emitimos no infravermelho.

    Imagem: Rawpixel.

    Esses dias recebi algumas mensagens dos meus tios me perguntando se há perigo no uso do termômetro clínico infravermelho. 

    A pergunta: 
    Esses termômetros de apontar podem danificar o cérebro? 
    Resposta: Não, eles são seguros. 

    O princípio do uso dos novos termômetros clínicos, os termômetros digitais infravermelho,  vem de uma observação antiga de um astrônomo e músico chamado Frederick William Herschel. Há mais de 200 anos atrás, Herschel observou que havia uma correlação entre o calor emitido e a cor de cada um dos espectros obtidos por meio de um prisma.

    Fonte: OpenClickArtVectors em Pixabay.

    Assim, Herschel passou a luz por meio de prisma de vidro e mediu a temperatura de cada cor refratada visível por meio de um termômetro de mercúrio. Os resultados dele mostraram que a temperatura aumentava do violeta para o vermelho. Isto é, ele descobriu que havia uma relação entre a radiação e calor. 

    Mas Herschel não parou por aí. Ele resolveu medir a temperatura para uma região em que não havia cor visível, para além do espectro do vermelho e descobriu que aquela região tinha uma temperatura ainda maior, a região que hoje conhecemos como o da radiação infravermelha. Além disso, desses resultados que mostraram a relação entre radiação e calor, ele descobriu que há tipos de luz ou radiação que não são visíveis aos nossos olhos.  

    Imagem: Desenho experimental presente no artigo de William Herschel. 

    Como você está radiante hoje: os termômetros digitais infravermelhos. 

    Sim, nós emitimos luz, mas calma aí, todos os objetos emitem, desde que estejam acima do zero absoluto

    Mas qual é a relação com a sua temperatura? 

    Pois veja, toda matéria emite uma radiação térmica ou radiação eletromagnética. Todavia, isso inclui os nossos corpos? Sim! Isso acontece graças ao movimento dos átomos e moléculas que acabam movimentando partículas carregadas que compõem a matéria. Assim, no processo, a energia cinética é transformada em radiação.

    No caso da radiação infravermelha, um material emite essa radiação de acordo com a sua temperatura e do seus constituintes, ou sua capacidade de emitir essa energia, ou seja, sua emissividade. Isso quer dizer que materiais diferentes vão emitir radiação infravermelha de forma distinta. 

    [Existem equipamentos que disponibilizam a imagem do calor, ou radiação infravermelha, são as câmeras termográficas] 

    Crédito da imagem: Rawpixel
    Mas, que faz o termômetro clínico infravermelho?

    Medir a energia radiante do corpo é uma forma indireta de se medir a temperatura. O que o termômetro clínico infravermelho faz é mensurar a energia radiante por meio de um sistema ótico, ou seja, tem uma lente no termômetro capaz de captar a radiação infravermelha. Ele lembra uma câmera, mas ao invés de registrar uma imagem transforma as informações recebidas e a transforma em um dado, a temperatura de um corpo. 

    O termômetro não causa dano, mas uma medida errada pode ter consequências para as pessoas. Como os termômetros clínicos infravermelho foram ajustados para medidas da radiação/temperatura da testa, medir a temperatura apontando para outra parte do corpo, pode levar a medidas erradas da temperatura da pessoa. 

    Mas e aquele laser que sai de alguns termômetros infravermelho? Alguns termômetros vem com um laser, mas ele serve só para saber para onde o equipamento está sendo apontado. Vai que a pessoa mira no cabelo! 

    O importante no caso do laser: Como qualquer apontador, não pode mirar no olho do coleguinha viu!  

    Então quando alguém apontar o termômetro para a sua testa fica tranquilo: seja um ser de luz e deixa o termômetro captar a sua radiação! 

    Tá pronto para dicas de leituras e atividades?

    Dica de leitura:

    Para entender o processo experimental e de descoberta de William Herschel, recomendo a leitura do artigo em português Os raios invisíveis e as primeiras ideias sobre radiação infravermelha. O artigo contextualiza os experimentos de Herschel e analisa as conclusões de uma série de artigos do autor sobre a luz e os raios invisíveis.

    Dica de atividade:

    [1] A National Aeronautics and Space Administration (NASA) preparou um guia para testar em casa o experimento do Herschel. Você vai precisar de uma caixa, um prisma de vidro e termômetros de álcool. Os de mercúrio não são mais usados, pois esse metal é tóxico. Atividade para fazer em casa sobre temperatura e espectro eletromagnético. Uma versão em português pode ser encontrada em O experimento de Herschel no site do Instituto de Física da UFRGS

    [2] A NASA Science – Space Place Explore Earth and Space preparou uma atividade sobre correlação entre imagens em infravermelho de rostos e temperatura.

    Para saber mais

    Herschel, William, XIV. ” target=”_blank” rel=”noreferrer noopener”>Experiments on the refrangibility of the invisible rays of the sun (1800). Philosophical Transactions

    NASA (2020) Discovery of Infrared Light

    Oliveira, Rilavia Almeida de; Silva, Ana Paula Bispo da (2014) William Herschel, os raios invisíveis e as primeiras ideias sobre radiação infravermelha Revista Brasileira de Ensino de Física, v36, n4.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional. Além disso, os textos são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • COVID-19 e os riscos da modernidade: modernização como causa e como consequência

    Na sociologia contemporânea, principalmente na obra de Ulrich Beck, as pandemias já eram identificadas como um dos principais riscos da modernização. O caso atual da COVID-19 veio para confirmar isso, e mais que isso, é fácil identificar como o processo de modernização aparece como causa, mas também como consequência da pandemia. O difícil é vislumbrar quais serão os impactos das mudanças nos processos sociais no período pós-pandemia.

    A modernização como causa se apresenta a partir de duas transformações fundamentais vivenciadas pela humanidade no último século: degradação ambiental e desenvolvimento de meios de transportes, principalmente aéreo. A degradação ambiental, com redução das áreas de floresta, expansão das cidades, presença do homem em áreas de vida selvagem, propiciou o chamado spillover, isto é, o vírus deixou de ser hospedado apenas pelo morcego, migrando para outras espécies de hospedeiros. A alteração do meio natural é fruto direto do processo de modernização, e um fator importante para a ocorrência de epidemias, como da dengue, malária, zyca, etc.

    A modernização do sistema de transporte possibilitou intenso deslocamento de sujeitos por entre diversos territórios. O grande volume de voos, que passavam dos 250 mil voos diários no período pré-COVID-19, e o barateamento do transporte aéreo, sem dúvida foram fundamentais para a disseminação tão rápida da COVID-19 por praticamente todos os países do mundo. Em outros tempos, quando os meios de transporte não eram tão rápidos e acessíveis, as epidemias se restringiam a determinados territórios, como foi o caso da peste negra, que se desenvolveu ao longo da rota da seda.

    Ao analisarmos as rotas aéreas e a propagação do vírus entre as diversas localidades, percebemos que nas áreas com maior número de voos houve maior número de casos. As pessoas se deslocam entre países e com isso facilitam a propagação. A África e América do Sul, regiões com menor volume de tráfego aéreo, também tem apresentado até o momento menor número de casos. Obviamente, numa segunda fase, o contágio ocorre a partir da mobilidade dos indivíduos dentro do próprio país, e já não é possível traçar paralelo com o transporte aéreo. 

    Imagem: World Airline routemap 2009. Wikipedia.org

    Imagem: Genomic epidemiology of novel coronavirus. Nextstrain.org

    A situação atual ilustra perfeitamente a afirmação de Ulrich Beck “é o fim dos ‘outros’”. Todos os habitantes do planeta se veem ameaçados pela pandemia e, nesse momento, categorias tradicionais de análise sociológica, como as classes sociais, se veem fragilizadas, afinal a pandemia é, aparentemente, mais democrática, no sentido de ameaçar e atingir a todos, porém situações de vulnerabilidades podem potencializar a pandemia. Se dinheiro não impede a contaminação, a falta dele fragiliza ainda mais a população. Se todos somos igualmente atingíveis, o pobre, o negro, a mulher, o morador de rua, tem seus riscos amplificados.

    Essa situação é típica de países que ainda não solucionaram problemas da primeira modernidade, e num momento de modernização comprimida, tal qual o que vivemos agora, temos os riscos da modernidade intensificados, pois eles são cumulativos: não resolvemos o problema da distribuição de renda, da igualdade de gênero (problemas da 1ª modernidade) e temos novos problemas surgindo, como as pandemias, os riscos ecológicos, o desemprego por robotização (problemas da 2ª modernidade). Os países do sul global, de maneira geral, vivenciam essa tal de modernização comprimida, o que dificulta ainda mais a solução dos problemas atuais. 

    E dentro dessa ideia de modernização comprimida é que precisamos analisar a noção de modernização como consequência. Nas últimas semanas temos vivenciados uma modernização forçada em diversas esferas da nossa vida: seja pela obrigatoriedade do ensino à distância, pelo home office ou pelas teleconsultas médicas ou psicológicas. Por tantos anos essas atividades foram barradas pelos conselhos de classe, e ,de repente, nos vemos impelidos a executar.

    Essa modernização forçada ocorre sem infra-estrutura necessária (afinal, quantos lares possuem um computador para cada criança e cada adulto? Quantos dispõe de internet em velocidade adequada?) e sem formação adequada (quantos professores sabem usar as ferramentas para propiciar um ensino adequado? Quantos realizaram cursos para isso?). As empresas foram obrigadas a passarem por uma revolução digital que vinha sendo protelada ao longo das últimas décadas e o resultado disso é incerto. Será que o desemprego vai aumentar? O desenvolvimento de novos softwares para facilitar o trabalho remoto irá impactar no cotidiano das empresas e na maneira como estamos habituados a trabalhar? 

    A pandemia do COVID-19 forçou a modernização digital e se antes a internet era vista como responsável pelo distanciamento das pessoas, hoje ela é salvação para o encontro semanal entre amigos ou para a conversa com os pais. As relações sociais estão passando por uma profunda reestruturação, e essa mudança em um curtíssimo período de tempo pode estar repleta de efeitos adversos. Saberemos lidar com a depressão e ansiedade? Substituiremos bem o contato pessoal pelo encontro virtual? Como ficarão as relações quando a pandemia passar?

    A modernização como consequência nos traz dúvidas e ela materializa a noção de sociedade de risco. Estamos imersos em incertezas, ambiguidades, complexidades. O risco é invisível e ele só se materializa quando se confirma. A COVID-19 é um risco invisível, mas potente o suficiente para mudar as relações sociais e de trabalho, impactando tantas esferas de nossa vida, que é capaz de criar um novo mundo, uma nova ordem social – e não se sabe se ela será melhor ou pior que a atual.

    E por se tratar de um impacto global, já se discute a necessidade de uma governança global, o que coloca em questão as fronteiras geográficas, as respostas políticas locais, assim como os processos de individualização. A humanidade pode estar entrando em um novo momento e a imaginação sociológica deve estar aflorada entre nós, para que possamos captar essas mudanças, analisando-as com criticidade, propondo alternativas e soluções possíveis aos novos problemas que surgirão. 

    Para saber mais: 

    BECK, Ulrich. Sociedade de Risco: rumo a outra modernidade. São Paulo: Editora 34, 2010.

    NEXTSTRAIN. Real-time tracking of pathogen evolution. Novel coronavirus (2019-nCoV). Disponível em https://nextstraing.org

    QUAMMEN, David. Spillover: animal infections and the next human pandemic. New York: W. W. Norton & Company, 2012. 

    RICHARDS, Sarah Elizabeth. Como mutações do coronavírus podem ajudar a traçar rota de propagação e refutar conspirações. National Geographic, 3 de abril de 2020. Disponível em https://www.nationalgeographicbrasil.com/ciencia/2020/04/como-mutacoes-do-coronavirus-podem-ajudar-tracar-rota-de-propagacao-e-refutar

    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

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