Tag: RNA

  • O código genético

    Atualmente, temos ouvido/lido muito sobre os termos código genético do vírus, DNA e RNA mensageiro. Mas o que esses termos significam?

    Nós não estamos sozinhos na Terra. Ela é a casa de mais de 8.7 milhões de espécies, isso contando apenas os eucariontes – daqui a pouco conto o que eles/nós temos de especial – e não inclui as bactérias e vírus. Já parou para pensar em como essas espécies garantem que a sua prole tenha as mesmas características da espécie?  

    A ideia de como as informações sobre como os organismos fazem cópias de si mesmos, assim como a instrução para a construção de estruturas e funcionamento de um novo organismo, foi um mistério por um longo tempo. As primeiras peças do quebra-cabeça para enterdemos como as informações estão organizadas nos organismos começou a ser encontrada há muitos anos atrás. 

    Para se ter uma ideia, a célula, a estrutura mínima que compõe os seres vivos, foi descoberta por volta de 1660 graças a invenção do microscópio. Quando Robert Hooke olhou para as fatias finas de cortiça através do microscópio, viu que elas eram compostas por pequenas estruturas, que lembravam buraquinhos de um favo de mel a que ele deu o nome de célula (pequena cela). 

    Esse foi só o início. Com o desenvolvimento da ciência e o aparecimento de novos  instrumentos e técnicas continuamos a descobrir cada vez mais sobre essa pequena unidade que nos compõe.

    O núcleo de tudo isso

    A unidade morfológica em que se baseia a vida, a célula, pode ser classificada em dois grupos principais, as eucarióticas, que possuem núcleo envolto por uma membrana e que contém o material genético – dos quais fazemos parte –  e os procariotos que não possuem núcleo e o material genético fica disperso no citoplasma, como é o caso das bactérias. 

    Apesar da diferença quanto a presença de núcleo, tanto as células eucarióticas quanto as procarióticas possuem membrana plasmática que separa o interior da célula do seu ambiente. Ela tem um papel extremamente importante e acaba selecionando o que entra no interior da célula por meio de diferentes processos. 

    Representação simplificada de uma célula eucariótica.  A imagem foi criada com  BioRender.com.

    Além disso, as células são compostas pelo citosol, ou seja, o interior da célula. Ele é repleto de espécies químicas e organelas, o citoplamas. As organelas são estruturas celulares com funções específicas e separadas do citoplasma por meio de uma membrana. 

    A maior organela da célula  eucariótica é o núcleo. Ele abriga o DNA (ácido desoxirribonucleico), que contém a informação genética para todas as funções  da célula/organismo. 

    Mas essa informação não está escrita de maneira como lemos esse texto, seria muito texto para tantos comandos que nosso organismo executa. Ao invés disso, a informação está codificada, ou escrita por meio de códigos moleculares. Como uma sequência de blocos menores, as bases nitrogenadas constituem a molécula de DNA. 

    O DNA 

    O DNA é composto de quatro tipos diferentes de bases nitrogenadas, representadas pelas letras A,T, C, G (de adenina, timina, citosina e guanina). 

    As bases nitrogenadas estão em sequência na molécula de DNA, cuja estrutura é em dupla hélice, em que as duas fitas compõem o DNA que interagem e dão forma à molécula. A interação entre as fitas do DNA ocorre graças a complementaridade entre as bases nitrogenadas, em que A (adenina) se liga com T (timina) e a C (citosina) com a G (guanina).

    A complementaridade entre as bases nitrogenadas no DNA. A imagem foi criada com  BioRender.com.

    Essa complementaridade entre as fitas é importante, pois torna possível a replicação (duplicação) da molécula de DNA. Quando ocorre a duplicação do DNA, as duas fitas se separam e a partir do molde são formadas as fitas-filhas complementares.

    Em células eucarióticas, como as dos seres humanos, tanto a replicação quanto a transcrição do DNA acontecem no núcleo. A imagem foi criada com  BioRender.com.

    A descoberta da estrutura em hélice do DNA

    A informação chave para a estrutura do DNA foi obtida por Rosalind Franklin que conseguiu uma fotografia do DNA por uma técnica chamada de difração de raio X. A partir desse achado de Rosalind, dois pesquisadores, Watson e Crick, determinaram a estrutura do DNA – nunca mencionaram a pesquisadora – e anos mais tarde foram laureados com o prêmio Nobel.

    Para saber mais sobre Rosalind Franklin leia o texto Celebrando Rosalind Franklin – a mulher que ajudou a desvendar a estrutura do DNA no Ciência pelos Olhos dela do Blogs Unicamp. 

    O sistema de tradução da informação do DNA em proteínas é regulado por uma série de interações e reações químicas. Além disso, a informação necessária não é entregue de forma direta para a preparação de proteínas pelos ribossomos, uma organela presente no citoplasma das células. 

    DNA como molde para o ácido ribonucleico, RNA

    Além de se replicar no procesos de duplicação, o DNA também serve de molde para a preparação de uma outra molécula importante na síntese de proteínas, o RNA mensageiro, mRNA, em um processo chamado de transcrição. A partir dessa última molécula é que ocorre a tradução com a síntese de proteínas. 

    Então, o DNA tem a informação transmitida ao mRNA. A partir do mRNA é que há a tradução – daquela informação codificada – em proteínas. Essa tradução ocorre fora do núcleo em uma outra organela da célula, no ribossomo. 

    Não é sopa de letrinha

    A sequência desses bloquinhos de base nitrogenada no DNA não é aleatória. A combinação de cada três bloquinhos é traduzida pela célula em um aminoácido – a menor parte da estrutura de uma proteína. O conjunto de aminoácidos ligados é que dá origem a uma proteínas. Quantidade e sequências diferentes de aminoácidos estão associados a proteínas diferentes. E é nelas que está a beleza da vida. Entre outras coisas, as proteínas fazem parte de estruturas das células, transportam o oxigênio necessário para a nossa respiração, conseguem deixar as reações químicas mais rápidas nos organismos. Enfim são fundamentais para a manutenção e funcionamento dos organismos.

    Combinando as sequências

    O interessante sobre o código genético é que a sequência das bases nitrogenadas presentes em um códon (sequência de três bases nitrogenadas) específica corresponde a um aminoácido específico e isso é praticamente universal entre todas as formas de vida na Terra. 

    Um pouco de matemática

    Podemos inferir a quantidade de combinações possíveis de bases nitrogenadas para a formação de códons por meio de uma fórmula matemática chamada de Arranjo com Repetição:

    A(n, r)  = nr, em que

    n é o número de elementos do conjunto, no caso são quatro (A, T, C, G)

    r é a quantidade de elementos por agrupamento, no códon são 3. 

    Dessa forma, 

    A  = 43

    A = 64

    Existem 4 pares de base nitrogenadas diferentes (A, T, C e G). A combinação entre elas em uma das três posições em um códon nos dá a possibilidade de 64 códons diferentes. Desses 64 códons, 61 são traduzidos em aminoácidos e 3 estão associados a uma espécie de sinalização para a parada de tradução da sequência do DNA, os códons de Parada (Stop codons). 

    Mas alguns códons diferentes sinalizam para a produção de um mesmo aminoácido. Os 61 códons produzem apenas 20 aminoácidos diferentes. Por esse motivo, o código genético é considerado redundante ou degenerado,

    A sequência de aminoácidos que compõem uma determinada proteína é codificada por um gene específico. Dessa forma, o DNA contém o genoma da célula que é a totalidade da informação genética que além de dar origem a milhares de proteínas, também regula quando e onde elas serão feitas.

    A replicação refere-se ao processo de duplicação do DNA e em células eucarióticas acontece no núcleo. A transcrição, o processo de produção de RNA a partir do DNA também acontece no núcleo. A tradução é um processo de produção de proteínas a partir do mRNA (RNA mensageiro). Ela acontece nos ribossomos, organelas presentes no citosol da célula. As células não conseguem produzir DNA a partir do RNA, mas alguns vírus possuem em sua maquinária uma enzima, um tipo de proteína, capaz de fazer esse processo, a transcriptase reversa.

    Material genético materno

    Na reprodução sexuada, a composição do DNA presente no núcleo das células eucarióticas é uma contribuição de 50% de cada um dos sexos. 

    Além disso, a célula eucariótica abriga outra organela com material genético próprio, a mitocôndria. Como regra, o material genético presente na mitocôndria é de origem apenas materna. Se compararmos com o DNA do núcleo, a quantidade de informação genética presente na mitocondria é bem menor, mas ambas informações são muito importantes. 

    Mas e os vírus?

    Os vírus não têm a maquinaria para fazer cópias de si mesmos, nem mesmo para a transcrição e tradução em proteínas, mas contém a informação genética para a sua produção, o mesmo acontece com o SARS-CoV-2, o vírus que causa a COVID-19. 

    Para saber um pouco mais sobre a necessidade dos vírus por um hospedeiro leia Valentões dentro da célula, sensíveis fora dela: os vírus

    Dica

    Em comemoração aos 20 anos de existência, o Instituto Suiço de Bioinformática (Swiss Institute of Bioinformatics) lançou o jogo Gene Jumper. O jogo é gratuito e está disponível em 3 idiomas, inglês, francês e alemão. Apesar de não ter disponível a versão em português, é bem divertido jogar e se tem uma idéia do processo de tradução do DNA. 

    Para saber mais

    Alberts, B.; Johnson, A. Lewis, J.; Morgan, D.; Raff, M.; Roberts, K. Walter, P.; Molecular Biology of the Cell. Sixth Edition. 2015

    Mora C, Tittensor DP, Adl S, Simpson AGB, Worm B (2011) How Many Species Are There on Earth and in the Ocean? PLoS Biol 9(8): e1001127. doi:10.1371/journal.pbio.1001127 

    Voet, D. e Voet, JG. Bioquímica. 4 Edição. Editora Artmed. 2011. 

    Este texto foi escrito originalmente no blog Ciência de Fato

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • A joia da coroa

    Texto escrito por Prianda Rios Laborda

    “SARS-CoV-2 é um vírus RNA fita simples com cerca de 29 kb que codifica 29 proteínas”. Estas são as credenciais genéticas do nosso atual inimigo número 1, o famigerado coronavírus da dinastia SARS, o segundo de seu nome, afinal, estamos falando de coroas. Em uma única frase, residem todas as informações que o vírus precisa para promover a infecção de seus hospedeiros e a sua própria replicação. Em uma única frase, reside também um arsenal de informações que nós, os hospedeiros, podemos usar para combater o vírus. Levantemos, portanto, nossas armas contra a coroa. E, se vamos nos rebelar contra um reinado, bem fazemos conhecer e, quem sabe, atacar a sua joia, o cerne que mantém coesas famílias reais (e reais): seu material genético.

    ONDE VIVEM OS GENES: DNA x RNA

    Material genético é uma expressão para designar o conjunto de moléculas onde estão codificadas informações que orientam a constituição e a conformação física dos organismos. Este material é organizado em cadeia, como um colar, em que se enfileiram contas de quatro diferentes cores. A essas contas damos o nome de nucleotídeos. Na maior parte das vezes, esse colar é o nosso antigo conhecido DNA. Porém, em alguns casos ele é o menos divulgado RNA. DNA e RNA têm muitas semelhanças e não por acaso dividem o N e o A de seus nomes. O N é de “nucléico”, uma vez que são sintetizados no núcleo das células. O A é de “ácido”, pois são moléculas que contêm átomos de fósforo arranjados em ácidos fosfóricos. DNA e RNA são, portanto, chamados “ácidos nucléicos”, onde vivem os genes.

    Uma das principais diferenças químicas entre os dois tipos de material genético está no contraste entre D, de “deoxi-ribo”, e R, de “ribo”. DNA – ácido desoxirribonucléico – é a versão deoxi do RNA – ácido ribonuclécio –, uma versão sem (= de) um oxigênio (= oxi).

    “Unidos na acidez e no núcleo, até que um oxigênio os separe”: estrutura dos nucleotídeos de DNA e RNA com indicação da diferença entre eles (seta verde). Quadradinhos pretos representam os átomos de carbono do açúcar.

    Este é um dos grandes contrapontos entre nossos ácidos nucléicos: a presença de um átomo de oxigênio na composição de uma das partes dos nucleotídeos, o açúcar, também conhecido como “ribose”. A localização deste átomo de oxigênio extra nos nucleotídeos de RNA e o fato de estar junto a um átomo de hidrogênio tornam as cadeias de RNA mais propensas à reação com outras moléculas, o que implica instabilidade química. RNA, ao contrário de DNA, é um polímero que degrada facilmente.

    Outra diferença entre DNA e RNA está no conjunto de bases nitrogenadas usado por cada ácido nucléico. A base nitrogenada é a parte variável da estrutura dos nucleotídeos. DNA usa as populares bases adenina (A), citosina (C), guanina (G) e timina (T). RNA também usa A, C e G, porém não usa T e, em seu lugar, existe a uracila (U).

    “A, C e G com T ou U”: as bases nitrogenadas de DNA (área salmão) e RNA (área verde). Quadradinhos coloridos representam os átomos que diferem entre as bases: vermelho – nitrogênio; amarelo – hidrogênio; preto – carbono; rosa – oxigênio.

    Na estrutura das duas moléculas, detectamos mais um ponto de distinção: DNA é um molécula maior e normalmente ocorre no formato dupla hélice, onde duas fitas torcidas formam uma espiral com as bases voltadas para dentro, respeitando o pareamento A com T e C com G; RNA pode ter extensões variáveis, mas, se comparada ao DNA, é muito menor e, na maior parte das vezes, tem estrutura de fita simples.

    “Colar simples ou duplo”: as conformações das cadeias de RNA (fita simples) e DNA (dupla hélice). Adaptado de https://www.diferenca.com/dna-e-rna/.

    Para termos referências de tamanho: o cromossomo I humano tem cerca de 249 milhões de bases (Mb) de DNA (249 milhões de nucleotídeos enfileirados!) enquanto o RNA do vírus da hepatite C tem aproximadamente 9600 bases (9,6 kb). Esta é a Natureza: um ambiente tão variável na sua diversidade macroscópica quanto nas suas dimensões microscópicas.

    As diferenças entre DNA e RNA também se estendem a suas funções intracelulares. O DNA é o cânone do armazenamento e da replicação das informações hereditárias, um material genético em sua essência. Contém os genes que codificam as proteínas de que o organismo precisa e tem a estrutura perfeita para replicar o conteúdo genético e garantir a sua transmissão ao longo das gerações. O RNA, entretanto, executa a função de material genético apenas em alguns vírus. Nos organismos vivos (as definições mais clássicas de “vida” não incluem os vírus, apesar do estrago que fazem…), ele está incumbido de várias outras tarefas biológicas: mensageiro entre DNA e proteínas; transportador de nucleotídeos, facilitador da síntese proteica, regulador das atividades de expressão do DNA, catalisador de reações, defensor contra invasores celulares, sensor de sinais ambientais etc. Para cada uma destas tarefas, ele assume diferentes conformações tridimensionais, tamanhos, composições em termos de sequência de nucleotídeos. A versatilidade funcional do RNA é digna de um texto próprio!

    GEMA PRECIOSA

    Voltemos à primeira frase de nossa conversa. “SARS-CoV-2 é um vírus RNA fita simples com cerca de 29 kb que codifica 29 proteínas”. Parece menos complexo agora que vimos um pequeno exposed do RNA no seu papel de material genético? A sentença descreve de maneira sucinta o genoma – conjunto total de genes, a sequência dos nucleotídeos – do novo coronavírus. Genoma é a gema preciosa onde está entalhado o livro das instruções biológicas, um diamante em seu valor.

    Menos de dois meses após o registro dos primeiros casos de COVID-19 na China, as primeiras sequências de nucleotídeos do RNA responsável pela pandemia já eram de domínio público. Agora sim, um grande exposed do RNA. Esta informação representou um salto de conhecimento, pois a partir dela pudemos começar a compreender a origem do SARS-CoV-2 e quais são as estruturas e artimanhas moleculares que lhe permitem ser um vírus tão bem sucedido na arte da infecção. Os primeiros genomas sequenciados foram apenas um pontapé inicial do jogo que hoje conta com outras dezenas de milhares de sequências de diferentes amostras virais coletadas no mundo todo. O escalonamento da aquisição de genomas revela quais são as rotas traçadas pelo vírus e o impacto da adoção de medidas não farmacológicas durante sua propagação e possibilita sabermos como ele está evoluindo, i.e., quais são as mutações que está sofrendo e se isso traz algum tipo de consequência para a dinâmica da pandemia.

    O sequenciamento de genomas expõe a ordem dos nucleotídeos de cada um dos genes. Com as sequências dos genes, temos as sequências das proteínas – as moléculas executoras da cartilha gravada no material genético – sem a necessidade de identificação e isolamento de cada uma delas. Isto é possível porque comparamos essas sequências com as existentes em grandes bancos de dados biológicos, onde estão disponíveis informações como, por exemplo, função. A partir da sequência de um gene, podemos inferir qual a função da proteína que ele codifica. Saber a função das proteínas é a chave para começarmos a desvendar onde e como elas agem.

    Os quase trinta mil nucleotídeos do genoma do novo coronavírus codificam proteínas de três tipos: estruturais, não estruturais e acessórias.

    “A coroa e sua joia”: SARS-CoV-2 e seu genoma, com indicação da localização e dos tamanhos relativos dos genes (caixas coloridas em laranja, vermelho e azul) e dos tipos de proteínas codificadas.

    As proteínas estruturais são responsáveis pelo reconhecimento das células do hospedeiro (“spike“), pela cobertura que envolve o material genético (“envelope” e “membrana”) e pela estabilidade do RNA (“nucleocapsídeo”). As proteínas não estruturais desempenham funções voltadas principalmente à replicação do RNA viral para confecção de novas partículas e à inibição das iniciativas da célula hospedeira de eliminar o invasor. As proteínas acessórias auxiliam o escape das partículas virais recém produzidas e impedem a célula de sinalizar sua infecção para o sistema imunológico. Não podemos negar uma reverência à sofisticação das estratégias naturais próprias de agentes etiológicos como esse vírus. Paralelamente, não podemos negar aplausos à capacidade do sistema imunológico de conseguir, muitas vezes, virar o jogo apesar de todas as boas cartadas do vírus. Sobretudo, guardemos aplausos, uma grande salva deles, para nossa habilidade de empregar esta cadeia de detalhes ao nosso favor.

    O PARAÍSO ESTÁ NOS DETALHES

    Detalhes aparentemente intangíveis, não? Por que a Ciência se dedica tanto a conhecer e entender minúcias tão pequenas que nem mesmo alguns microscópios podem mostrar? O motivo que mais nos convém agora é o fato de estes detalhes determinarem como devemos agir, da prevenção à cura. Pavimentam nosso êxodo rumo a um lugar melhor. Cada quina de informação pode determinar quais são as melhores ações profiláticas e é um ponto elegível para desenvolvimento de métodos diagnósticos, tratamentos e vacinas. O perfil das moléculas e suas características nos guiam na otimização de todas estas etapas. Alguns exemplos:

    1. Para nos defendermos de uma infecção viral, é impreterível conhecer a biologia do vírus (modo de transmissão, estrutura tridimensional, mecanismos usados para infectar as células do hospedeiro, formas de recrutamento do maquinário celular para sua replicação, estratégias de evasão do sistema imunológico etc); como vimos, grande parte destas informações está codificada no material genético do vírus;
    2. Ao precisarmos coletar amostras de um vírus RNA, conhecendo sua menor estabilidade, temos de tomar cuidados específicos para que o material coletado permaneça viável até a chegada ao laboratório;
    3. Para utilizarmos o material genético de um vírus RNA como alvo de um teste diagnóstico, precisamos incluir uma etapa extra, a síntese de moléculas de cDNA (DNA complementar à molécula de RNA, por meio da técnica de transcrição reversa), antes de podermos detectar sua presença na amostra;
    4. Ao identificarmos paralelos entre moléculas e modos de ação (e as consequentes manifestações clínicas) de um vírus emergente e de um outro já conhecido, para o qual temos um tratamento, podemos avaliar o uso de estratégias pré-existentes; isso representa um caminho muito menos longo do que a concepção de um novo fármaco a partir do zero;
    5. Ao verificarmos a existência de proteínas próprias do vírus, que não existem nas células do hospedeiro, podemos priorizá-las como alvos de ataque, diminuindo o risco de toxicidade do tratamento;
    6. Ao conhecermos as proteínas virais que são alvos do sistema imunológico, podemos produzi-las no laboratório, com base nas sequências dos genes, e usá-las como vacinas;
    7. Ao conhecermos as sequências dos genes virais, podemos usar, como estratégia vacinal alternativa, fragmentos de ácidos nucléicos sintéticos com as mesmas sequências dos genes do vírus; uma vez dentro das células, esses ácidos nucléicos levarão à produção das proteínas e à ativação do sistema imunológico.

    LANTERNAS E ARMAS DE GUERRA

    Não nos faltam motivos para investir constantemente na Ciência, a única capaz de incrementar nosso arsenal contra inimigos de sempre ou emergentes. Não é por acaso que, nas etapas iniciais de desafios causados por agentes desconhecidos, haja equívocos. São consequências diretas das lacunas no conhecimento. Na ausência do conhecimento, reverbera a conveniência das soluções mágicas, na maior parte das vezes, inúteis, quando não nocivas. Na ausência do conhecimento, ficamos reféns da passividade que deveria dar lugar à mobilização preventiva. Na sua presença, acendem-se as lanternas de emergência que apontam os caminhos de saída.

    A caminhada evolutiva das espécies não atende a demandas democráticas; é uma força que eventualmente testa nossa capacidade de reação. Nosso tempo será retratado como aquele em que a Evolução alçou ao trono uma nova coroa, monarca tão diminuta quanto impiedosa. Mostrará um governo de coação, uma fase de desconforto e de perdas dos mais diferentes tipos. No desfecho da narrativa, porém, estará a rebelião dos súditos. O ataque à casa imperial é inevitável, talvez até iminente. Ouço o barulho das indumentárias de guerra, ornadas com a sofisticação das armas científicas ora em construção à base do conhecimento de minúcias como essas que hoje vimos. Observo a disciplina no ensaio de táticas que já nos renderam vitórias em outros combates. Conhecemos cada faceta da joia que empodera a coroa. Derrubá-la é questão de tempo.

    Leia mais…

    …sobre ácidos nucléicos:

    https://www.ncbi.nlm.nih.gov/books/NBK21514

    …sobre o genoma do SARS-CoV-2:

    https://www.nytimes.com/interactive/2020/04/03/science/coronavirus-genome-bad-news-wrapped-in-protein.html

    https://brasil.elpais.com/brasil/2020/05/13/ciencia/1589376940_836113.html

    Este texto foi escrito originalmente no blog DNA Explica

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Diagnóstico por RT-qPCR, o que é isso?

    Em tempos como os atuais, temos visto muitos termos técnicos específicos na mídia e em notas de instituições que falam tanto da doença COVID-19, quanto do SARs-Cov-2 (o novo Coronavírus), quanto de sintomas e testes de diagnósticos.

    Em meio a todas estas informações, embora nos habituemos a ver os termos, não necessariamente compreendemos do que se trata. Em especial sobre os diagnósticos da doença, temos visto que há mais de um tipo de teste possível de ser feito.

    A Força Tarefa da UNICAMP anunciou que fará o teste chamado RT-qPCR, o qual foi considerado o principal teste de COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde. Este texto busca explicar um pouco melhor sobre este teste e, também, o motivo pelo qual ele é importante no diagnóstico da doença.

    Arte: HUB Campinas

    Por que a Organização Mundial de Saúde indica o RT-qPCR como o principal diagnóstico?

    O diagnóstico feito pela técnica RT-qPCR foi preconizado para se realizar o diagnóstico do COVID-19 em pacientes suspeitos por ser capaz de verificar a presença de até mesmo uma única cópia do material genético do vírus (como veremos em seguida) e, também ser uma técnica amplamente estabelecida dentro de laboratórios de biologia molecular ao redor do mundo. Isto é, por ser uma técnica que grande parte dos laboratórios do mundo inteiro já conhece o protocolo e que é usado de maneira usual em suas pesquisas.

    E o que significam estas siglas? O que é, afinal, uma PCR e uma RT-PCR? 

    Desde quando foi criada até os dias atuais, as técnicas de PCR têm sido usadas em uma grande gama de pesquisas científicas, desde estudos sobre expressão gênica a detecção de variações genéticas dentro de uma população. Vamos compreender um pouco mais das etapas desta técnica e porque ela é importante para a detecção do novo Coronavírus?

    A PCR é a sigla que significa, em português, Reação em Cadeia de Polimerase. É uma técnica de biologia molecular muito usada para analisar a presença ou ausência de um gene no DNA de um ser vivo. Polimerase é a enzima responsável, dentro das células, por catalisar a adição de novos nucleotídeos a uma cadeia de DNA ou RNA. Isto é, ela proporciona agilidade e eficácia na duplicação ou transcrição de moléculas de DNA ou RNA.

    Arte: HUB Campinas

    Ao usarmos a enzima polimerase em uma reação em cadeia, dentro de um ambiente controlado (tal como na técnica que estamos explicando), conseguimos “amplificar” o material genético de uma amostra coletada. Isto é, conseguimos multiplicar o número de material a partir de uma pequena quantidade de DNA ou RNA, e assim analisar a presença de trechos específicos – como a de vírus, por exemplo. 

    A técnica PCR acontece com a adição de várias moléculas diferentes, para desempenhar papéis definidos na identificação do material genético que queremos multiplicar. Para realizar a PCR, nós misturamos: uma enzima capaz de duplicar o DNA, resistente a altas temperaturas; bases nitrogenadas (os “tijolos” que formam o DNA); primers (pequenos moldes de RNA que grudam no começo do gene ou segmento gênico de interesse) e, por fim, o DNA do organismo que se quer analisar. Ao submetermos todos estes elementos a ciclos de altas e baixas temperaturas, somos capazes de multiplicar de forma exponencial a quantidade de cópias daquele pedaço de DNA que temos interesse.

    No caso de um teste diagnóstico, ao se aplicar esta técnica, saberemos se existe o DNA do organismo (vírus) que estamos tentando detectar, após executar outra técnica chamada eletroforese em gel de agarose/poliacrilamida, que permite a visualização dos trechos de material genético que foram multiplicados. Isto é, se a pessoa está infectada, o DNA em questão será amplificado e o diagnóstico será positivo (mas ainda não é deste protocolo que se trata o diagnóstico do Coronavírus! Calma que chegaremos lá!).

    O DNA e o RNA possuem pequenas diferenças, quimicamente. O SARs-CoV-2, que é o material que queremos analisar em nossas amostras, é um vírus cujo material genético é uma molécula de RNA. E isto faz diferença no protocolo que temos que estabelecer… Para isso, usamos a técnica RT-PCR, que é a Reação em Cadeia de Polimerase de Transcrição Reversa.

    A grande diferença da PCR para a RT-PCR é que antes de fazermos todo o processo dito acima, nós pegamos o RNA do vírus e convertemos em um DNA complementar a ele mesmo, o chamado cDNA, (um processo que ficou famoso quando o HIV começou a ser estudado) e adicionamos esse cDNA a reação, no lugar do DNA genômico do organismo.

    E, por fim, qual a diferença para o RT-PCR quantitativo (RT-qPCR)?

    Geralmente as RT-PCR estão associadas a PCR quantitativa. Este processo nos permite saber quanto um gene ou o material genético de um vírus ou patógeno dentro da célula está sendo produzido.

    Nesse modelo, um fluoróforo (uma molécula capaz de emitir luz) é preso a uma sonda que se liga ao gene ou pedaço de DNA de interesse. Enquanto essa molécula fluorescente estiver ligada a essa sonda, a sua luz não é emitida, mas uma vez que ela é solta, a molécula começa a emitir fluorescência.

    Arte: HUB Campinas

    Quando a enzima responsável por duplicar o DNA chega a esse segmento onde a sonda está ligado, ela corta-a, liberando o fluoróforo, que dessa forma começa a emitir luz(2). A partir de um sensor na máquina onde está acontecendo essa reação, somos capazes de captar a luz emitida pelo fluoróforo a cada ciclo de duplicação do DNA, e por fim, quantificar sua expressão.

    Arte: HUB Campinas

    No começo da reação, há poucas cópias do DNA de interesse, e dessa forma a fluorescência emitida é pouca, mas com o passar dos ciclos, onde 2 cópias se tornam 4, 8, 16, e assim por diante de forma exponencial, a quantidade de luz emitida cresce também de forma exponencial e somos capaz de contar a quantidade inicial de moléculas que tínhamos no começo. 

    Quais as etapas para realizar o diagnóstico da COVID-19?

    Arte: HUB Campinas

    A Força Tarefa da Unicamp realizará testes diagnósticos que incluem 5 etapas:

    1. Coleta do material dos pacientes (células da mucosa da boca e do nariz), 
    2. Extração do RNA viral da amostra do paciente
    3. Conversão em DNA complementar (cDNA) ao RNA
    4. Duplicação exponencial do cDNA por RT-qPCR
    5. Análise do resultado por especialista para o diagnóstico

    Todo este processo demora algumas horas, normalmente. No entanto, estamos vivendo um período atribulado, com muitos testes sendo solicitados simultaneamente. Por enquanto, a FT-Unicamp têm a previsão de disponibilizar o resultado dos testes entre 24 e 48 horas. Mas este tempo pode aumentar dependendo da demanda que tivermos durante toda a pandemia.

    Direção de arte desta postagem:
    Anatália Oliveira Santos – Diretora de arte do HUB Campinas

    Texto feito para a Força Tarefa da Unicamp

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Para saber mais:

    Organização Mundial de Saúde. (2020). Coronavirus disease (COVID-19) technical guidance: Laboratory testing for 2019-nCoV in humans

    Arya, M., Shergill, I. S., Williamson, M., Gommersall, L., Arya, N., & Patel, H. R.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp.
    Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

    (2005). Basic principles of real-time quantitative PCR. Expert review of molecular diagnostics, 5(2), 209-219.

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