Tag: SARs-CoV-2

  • De soluções milagrosas a desinfetantes: alguns perigos no combate ao coronavírus

    E é exatamente devido à simplicidade de sua produção e, portanto, a facilidade de acesso, que devemos compreender como esta mistura funciona no organismo e esclarecer o porque o MMS NÃO serve no combate a doenças, sendo na verdade um produto com potencial risco de intoxicação

    Produto milagroso, com potencial para o tratamento das mais diversas enfermidades conhecidas e até mesmo de condições ainda não compreendidas pela medicina e que, obviamente pode ser utilizado no tratamento da COVID-19. Sim, é desta forma que tem sido divulgado, em diferentes canais, a chamada solução mineral milagrosa (ou MMS – Mineral Miracle Solution). Recentemente, até mesmo o presidente do país de maior economia mundial fez referência ao uso de substâncias similares (os desinfetantes). 

    Nos referimos aqui a uma recomendação grave, de uma substância com potencial tóxico e que tem sido ofertada de forma criminosa por diferentes sujeitos. Mas o que é o MMS, qual a origem de seu uso e quais seriam seus possíveis efeitos? Este tema poderia entrar para a série: dos absurdos que recebi nesses últimos tempos.

    Não há relatos precisos a respeito da origem da indicação do uso do MMS, mas atribui-se as primeiras recomendações de uso a Jim Humble, que se auto-intitula ex-profissional da engenharia aeroespacial e, atualmente, cientologista. Inicialmente, o MMS foi sugerido, sem validação científica, no tratamento de malária e HIV. Atualmente, indivíduos de formação duvidosa continuam a sua recomendação no tratamento de dores lombares, envenenamento por picada de animais venenosos, como agente antimicrobiano diverso e incrivelmente no combate a condições como a Síndrome do Espectro Autista. Obviamente com todas essas promessas, houve quem acreditasse e  começasse a indicar tal  substância no combate ao vírus que tem causado a pandemia, o SARS-CoV-2

    Até aqui você já pode questionar: Teríamos então um remédio contra a COVID-19? Vamos tentar entender um pouco mais sobre o MMS do ponto de vista químico para fornecer subsídios que refutem o uso desta suposta solução milagrosa. 

    Do que é feito o MMS e qual  é a sua ação?

    O MMS constitui-se de uma solução formada por uma substância chamada dióxido de cloro (ClO2) – um gás, dissolvida em água. Tal solução pode ser produzida utilizando-se clorito de sódio (NaClO2) ou hipoclorito de sódio (NAClO) misturados a uma solução ácida, a qual as receitas recomendam que seja da ácido cítrico (C₆H₈O₇). 

    Talvez você reconheça os nomes citados e os associe a produtos presentes nas residências. De fato, o hipoclorito de sódio está presente na água sanitária (produto de limpeza que em algumas regiões é chamada simplesmente de cloro) e o ácido cítrico está presente em diferentes frutas ácidas (como limão e acerola) bem como pode ser adquirido em farmácias. Talvez, você também esteja se perguntando: então se eu misturar água sanitária com o ácido proveniente das frutas cítricas eu tenho o MMS? Sim, é isso que se recomendam as receitas de produção desta substância.

    O clorito e o hipoclorito de sódio são agentes oxidantes, ou seja, reagem com substâncias tendendo a degradá-las por meio de reações que conhecemos como oxidorredução. É por isso que a água sanitária é utilizada na remoção de manchas e na desinfecção de superfícies. O dióxido de cloro produzido e presente no MMS tem potencial ainda maior de oxidar compostos, principalmente moléculas orgânicas que contêm, além de carbono e hidrogênio, átomos de nitrogênio (N) e enxofre (S). Essas moléculas orgânicas fazem parte de um grande número de biomoléculas que compõem nosso organismo.

    Deste modo, o produto contido no MMS pode sim degradar as camadas proteicas presentes em vírus, assim como diversas outras moléculas presentes em nosso organismo, como as presentes em nossas células saudáveis. Isso acontece porque a degradação não apresenta seletividade1. Ou seja, o MMS irá degradar todas as substâncias com as quais tiver o contato e que sejam menos oxidantes do que ele. 

    Mas o que isso quer dizer? Se alguém ingerir a solução descrita, essa pessoa estará expondo seu organismo a um produto extremamente tóxico que poderá degradar tanto partes saudáveis do seu organismo como aquelas não saudáveis. 

    Mas o uso do MMS é permitido? 

    Não. A Organização Mundial da Saúde (OMS) em relatório publicado sobre o efeito da substâncias em cobaias mamíferas aponta os perigos diversos do uso do MMS que compreendem estresse respiratório, enfisemas e edemas pulmonares na dose mínima e morte de parte dos grupos nas doses superiores (no caso da inalação do gás)2 . Quando administrado oralmente, metade das cobaias morreu com a dose máxima, e outras duas com a dose intermediária passadas 48 horas da ingestão. Todas elas apresentaram irritação e  corrosão gastrointestinal. 

    Ainda, outros estudos mostraram que camundongos expostos à baixas doses de dióxido de cloro em filhotes tiveram problemas neurocognitivos, com atrasos no neurodesenvolvimento e redução na formação de sinapses cerebrais, bem como possíveis problemas que o produto pode causar na tireoide, estômago, intestino, e até na diminuição do número de hemácias.

    Todos estes dados impulsionaram a proibição do MMS em vários países e, no Brasil, tal proibição foi realizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em junho de 20183 .

    Portanto, produtos a base de clorito e hipoclorito de sódio são recomendados apenas para limpeza externa de superfícies, não sendo recomendados nem mesmo o uso na pele. Quanto ao derivado dióxido de cloro que  gera a “solução milagrosa”, seu uso não é recomendado e, nem sequer existe algum produto comercial a venda que contenha essa composição. 

    Conclusão, administrar o MMS é o mesmo que ingerir veneno imaginando que o veneno irá atuar apenas nos microorganismos que causam doenças e não em células saudáveis, o que é completamente equivocado. Ou ainda, seria como pensar “Bom se a água sanitária mata as bactérias na pia, se eu tomar um pouco ela irá matar as bactérias do meu organismo” desprezando todos os outros efeitos que esta substância poderia causar.

    Referências

     ASCOM/ANVISA. Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Autismo: falso medicamento é proibido. 2019. Disponível em: <http://portal.anvisa.gov.br/noticias/-/asset_publisher/FXrpx9qY7FbU/content/medicamento-falso-para-autismo-e-retirado-do-mercado/219201>

    DOBSON, Stuart. CARY, Richard. Chlorine Dioxide (GAS). Concise International Chemical Assessment Document 37. World Health Organization. 2002. Disponível em: <https://www.who.int/ipcs/publications/cicad/en/cicad37.pdf

    EPA. U.S. Environmental Protection Agency. Chlorite (sodium salt); CASRN 7758-19-2. National Center for Environmental Assessment. Disponível em: <https://cfpub.epa.gov/ncea/iris/iris_documents/documents/subst/0648_summary.pdf

  • Diagnóstico por RT-qPCR, o que é isso?

    Em tempos como os atuais, temos visto muitos termos técnicos específicos na mídia e em notas de instituições que falam tanto da doença COVID-19, quanto do SARs-Cov-2 (o novo Coronavírus), quanto de sintomas e testes de diagnósticos.

    Em meio a todas estas informações, embora nos habituemos a ver os termos, não necessariamente compreendemos do que se trata. Em especial sobre os diagnósticos da doença, temos visto que há mais de um tipo de teste possível de ser feito.

    A Força Tarefa da UNICAMP anunciou que fará o teste chamado RT-qPCR, o qual foi considerado o principal teste de COVID-19 pela Organização Mundial da Saúde. Este texto busca explicar um pouco melhor sobre este teste e, também, o motivo pelo qual ele é importante no diagnóstico da doença.

    Arte: HUB Campinas

    Por que a Organização Mundial de Saúde indica o RT-qPCR como o principal diagnóstico?

    O diagnóstico feito pela técnica RT-qPCR foi preconizado para se realizar o diagnóstico do COVID-19 em pacientes suspeitos por ser capaz de verificar a presença de até mesmo uma única cópia do material genético do vírus (como veremos em seguida) e, também ser uma técnica amplamente estabelecida dentro de laboratórios de biologia molecular ao redor do mundo. Isto é, por ser uma técnica que grande parte dos laboratórios do mundo inteiro já conhece o protocolo e que é usado de maneira usual em suas pesquisas.

    E o que significam estas siglas? O que é, afinal, uma PCR e uma RT-PCR? 

    Desde quando foi criada até os dias atuais, as técnicas de PCR têm sido usadas em uma grande gama de pesquisas científicas, desde estudos sobre expressão gênica a detecção de variações genéticas dentro de uma população. Vamos compreender um pouco mais das etapas desta técnica e porque ela é importante para a detecção do novo Coronavírus?

    A PCR é a sigla que significa, em português, Reação em Cadeia de Polimerase. É uma técnica de biologia molecular muito usada para analisar a presença ou ausência de um gene no DNA de um ser vivo. Polimerase é a enzima responsável, dentro das células, por catalisar a adição de novos nucleotídeos a uma cadeia de DNA ou RNA. Isto é, ela proporciona agilidade e eficácia na duplicação ou transcrição de moléculas de DNA ou RNA.

    Arte: HUB Campinas

    Ao usarmos a enzima polimerase em uma reação em cadeia, dentro de um ambiente controlado (tal como na técnica que estamos explicando), conseguimos “amplificar” o material genético de uma amostra coletada. Isto é, conseguimos multiplicar o número de material a partir de uma pequena quantidade de DNA ou RNA, e assim analisar a presença de trechos específicos – como a de vírus, por exemplo. 

    A técnica PCR acontece com a adição de várias moléculas diferentes, para desempenhar papéis definidos na identificação do material genético que queremos multiplicar. Para realizar a PCR, nós misturamos: uma enzima capaz de duplicar o DNA, resistente a altas temperaturas; bases nitrogenadas (os “tijolos” que formam o DNA); primers (pequenos moldes de RNA que grudam no começo do gene ou segmento gênico de interesse) e, por fim, o DNA do organismo que se quer analisar. Ao submetermos todos estes elementos a ciclos de altas e baixas temperaturas, somos capazes de multiplicar de forma exponencial a quantidade de cópias daquele pedaço de DNA que temos interesse.

    No caso de um teste diagnóstico, ao se aplicar esta técnica, saberemos se existe o DNA do organismo (vírus) que estamos tentando detectar, após executar outra técnica chamada eletroforese em gel de agarose/poliacrilamida, que permite a visualização dos trechos de material genético que foram multiplicados. Isto é, se a pessoa está infectada, o DNA em questão será amplificado e o diagnóstico será positivo (mas ainda não é deste protocolo que se trata o diagnóstico do Coronavírus! Calma que chegaremos lá!).

    O DNA e o RNA possuem pequenas diferenças, quimicamente. O SARs-CoV-2, que é o material que queremos analisar em nossas amostras, é um vírus cujo material genético é uma molécula de RNA. E isto faz diferença no protocolo que temos que estabelecer… Para isso, usamos a técnica RT-PCR, que é a Reação em Cadeia de Polimerase de Transcrição Reversa.

    A grande diferença da PCR para a RT-PCR é que antes de fazermos todo o processo dito acima, nós pegamos o RNA do vírus e convertemos em um DNA complementar a ele mesmo, o chamado cDNA, (um processo que ficou famoso quando o HIV começou a ser estudado) e adicionamos esse cDNA a reação, no lugar do DNA genômico do organismo.

    E, por fim, qual a diferença para o RT-PCR quantitativo (RT-qPCR)?

    Geralmente as RT-PCR estão associadas a PCR quantitativa. Este processo nos permite saber quanto um gene ou o material genético de um vírus ou patógeno dentro da célula está sendo produzido.

    Nesse modelo, um fluoróforo (uma molécula capaz de emitir luz) é preso a uma sonda que se liga ao gene ou pedaço de DNA de interesse. Enquanto essa molécula fluorescente estiver ligada a essa sonda, a sua luz não é emitida, mas uma vez que ela é solta, a molécula começa a emitir fluorescência.

    Arte: HUB Campinas

    Quando a enzima responsável por duplicar o DNA chega a esse segmento onde a sonda está ligado, ela corta-a, liberando o fluoróforo, que dessa forma começa a emitir luz(2). A partir de um sensor na máquina onde está acontecendo essa reação, somos capazes de captar a luz emitida pelo fluoróforo a cada ciclo de duplicação do DNA, e por fim, quantificar sua expressão.

    Arte: HUB Campinas

    No começo da reação, há poucas cópias do DNA de interesse, e dessa forma a fluorescência emitida é pouca, mas com o passar dos ciclos, onde 2 cópias se tornam 4, 8, 16, e assim por diante de forma exponencial, a quantidade de luz emitida cresce também de forma exponencial e somos capaz de contar a quantidade inicial de moléculas que tínhamos no começo. 

    Quais as etapas para realizar o diagnóstico da COVID-19?

    Arte: HUB Campinas

    A Força Tarefa da Unicamp realizará testes diagnósticos que incluem 5 etapas:

    1. Coleta do material dos pacientes (células da mucosa da boca e do nariz), 
    2. Extração do RNA viral da amostra do paciente
    3. Conversão em DNA complementar (cDNA) ao RNA
    4. Duplicação exponencial do cDNA por RT-qPCR
    5. Análise do resultado por especialista para o diagnóstico

    Todo este processo demora algumas horas, normalmente. No entanto, estamos vivendo um período atribulado, com muitos testes sendo solicitados simultaneamente. Por enquanto, a FT-Unicamp têm a previsão de disponibilizar o resultado dos testes entre 24 e 48 horas. Mas este tempo pode aumentar dependendo da demanda que tivermos durante toda a pandemia.

    Direção de arte desta postagem:
    Anatália Oliveira Santos – Diretora de arte do HUB Campinas

    Texto feito para a Força Tarefa da Unicamp

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Para saber mais:

    Organização Mundial de Saúde. (2020). Coronavirus disease (COVID-19) technical guidance: Laboratory testing for 2019-nCoV in humans

    Arya, M., Shergill, I. S., Williamson, M., Gommersall, L., Arya, N., & Patel, H. R.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp.
    Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

    (2005). Basic principles of real-time quantitative PCR. Expert review of molecular diagnostics, 5(2), 209-219.

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