Tag: Tratamento da Covid-19

  • Não existe tratamento precoce para a COVID-19 [capítulo de hoje: Hidroxicloroquina]

    Desde o início da pandemia, criou-se um grande alvoroço sobre a polêmica hidroxicloroquina. Concomitante à possibilidade dela funcionar no tratamento e prevenção da Covid-19, no chamado Kit-Covid. Assim, nesse texto, nós vamos esclarecer tudo o que você precisa saber sobre esse assunto. E para começar, já podemos lhe dizer: não, ela não funciona.

    Mas calma lá, “vamos por partes”, como diria o velho Jack (O Estripador)…

    Para que serve e como funciona a Hidroxicloroquina?

    A princípio, a hidroxicloroquina foi uma forma alternativa da cloroquina. Assim, desenvolveu-se esta forma para combater os variantes do patógeno da malária que tinham desenvolvido resistência a própria cloroquina. Isto acontece de maneira similar com as bactérias que desenvolvem resistência a antibióticos. Dessa forma, a hidroxicloroquina surgiu como um antimalárico. Contudo, alguns estudos demonstraram que ela também era capaz de atuar de forma benéfica no cenário de algumas doenças autoimunes. Tais como artrite reumatóide e lúpus eritematoso (1, 2).

    Funcionamento da Hidroxicloroquina

    Basicamente, o principal mecanismo da hidroxicloroquina no combate a malária é impedir que uma enzima muito específica do parasita destrua a hemoglobina das nossas hemácias. Além disso, a hidroxicloroquina se acumula em uma parte específica do parasita, chamada de lisossomo, aumentando o pH dessa região. Caso não tenha visto, temos um texto muito bom explicando o que é o pH.

    Mas tem mais, esse medicamento tem a mesma capacidade de se acumular nos lisossomos (e endossomos, uma outra parte das células) nas nossas células humanas. Assim, isto dificulta a realização de alguns processos relacionados à resposta imune (3). E é daí que vêm a sua capacidade de influenciar doenças autoimunes, levando a uma consequente melhora dessas. Por fim, ainda se viu que a hidroxicloroquina tinha a capacidade de diminuir a formação de coágulos no corpo, também chamada de antitrombótica.

    Entretanto, nem tudo é um mar de rosas. Ao mesmo tempo que esse remédio mostra vários benefícios em alguns cenários, ele também tem seus efeitos colaterais. Dentre eles, o principal e que mais chama atenção é o de causar arritmias nas pessoas. Isto é, um descompasso dos batimentos do coração, tornando-os mais lentos ou mais rápidos (4, 5). Além disso, essa informação, soma-se ao fato de que o SARS-CoV-2 pode infectar células do coração e causar danos a ele. Ou seja, como a própria arritmia e insuficiência cardíaca, que você pode entender melhor nesse texto aqui. Tais questões tornam mais delicada a tomada de decisão no uso ou não da hidroxicloroquina.

    De onde vem a ideia de se usar um remédio de malária contra um vírus?

    Mas foi justamente dessa capacidade de se armazenar nos nossos endossomos, aumentando o pH deles, que alguns cientistas começaram a questionar se isso poderia ajudar no combate ao SARS-CoV-2. Visto que os endossomos também são uma porta de entrada do vírus nas nossas células. 

    Com essa hipótese em mente, os pesquisadores decidiram investigar os impactos do tratamento da covid-19 com a hidroxicloroquina. Dessa forma, os primeiros estudos publicados, analisaram a ação do vírus in vitro. Isto é, em células numa placa de laboratório, portanto, um ambiente mega controlado. Assim, nestas pesquisas, a cloroquina e hidroxicloroquina conseguiram diminuir a infecção do SARS-CoV-2 em células de rim de macaco (6, 7). E aqui entra a nossa ressalva.

    Esse tipo de estudo é muito importante pois é o pontapé inicial para mostrar se um medicamento é capaz ou não de combater uma infecção. Entretanto, definitivamente NÃO é a partir dele que podemos dizer com toda certeza (como muitos políticos tem feito) que esse remédio funcionará de verdade, no mundo real, quando for dado a nós.

    Um dos motivos: testou-se em células de macaco, e não humanas. Essas “linhagens celulares” como chamamos, são muito efetivas nesse tipo de teste por serem extremamente resistentes a toxicidade. Todavia, aí entramos em outro ponto! A dose de hidroxicloroquina dada para essas células para impedir a infecção do SARS-CoV-2 foi muito superior àquela permitida para nós, humanos, consumirmos. Ou seja, em um cenário em que nós ingeríssemos a mesma dose, ela seria extremamente danosa e até mesmo LETAL para nós.

    Como então a hidroxicloroquina foi liberada para uso?

    No início da pandemia, publicou-se estes primeiros artigos. Alguns médicos começaram a utilizar a hidroxicloroquina em casos graves da Covid-19, em que não havia mais o que ser feito. Assim, a partir daí, começaram-se a publicar alguns artigos. Dessa forma, o argumento relacionava-se ao fato de que mesmo uma dose menor do medicamento era capaz de auxiliar na melhora dos pacientes. Isto incluía casos em que a administração do medicamento acontecia junto com a azitromicina, parte disso, gerou o conhecido kit covid. Esses estudos foram recebidos com animação por parte de alguns cientistas. Mas também com muitas dúvidas. Várias perguntas baseava-se em limitações dos estudos como um baixo número de pessoas analisadas e pequeno tempo de acompanhamento (8, 9).

    Pois com base nesses primeiros artigos, muitas figuras políticas (como o presidente Trump e Bolsonaro), começaram a divulgar os aparentes “benefícios” da hidroxicloroquina. Tais ações se encaminham na contra-mão de várias entidades como o Ministério da Saúde dos respectivos países. Além disso, órgãos regulamentadores e a própria OMS diziam ser muito cedo para falar esse tipo de coisa com 100% de certeza.

    Mas então, a hidroxicloroquina funciona ou não?

    Após essas publicações preliminares de pesquisa, um grupo cada vez maior de pesquisadores começou a se questionar. Será que a hidroxicloroquina era realmente eficaz no combate a Covid-19? A proposta neste momento vinculava-se a estudos randomizados com um número muito maior de pessoas.

    Pois então, agora, trago algumas das conclusões que esses estudos tiveram:

    A hidroxicloroquina é incapaz de impedir o desenvolvimento dos sintomas da Covid-19. Isto em pessoas que começaram a tomar o remédio após terem contato com alguém que estava com Covid-19 (10).

    Neste trabalho, os cientistas analisaram cerca de 800 pessoas que tiveram contato com alguém da família que estava com Covid-19 (confirmado por RT-qPCR). Dessas pessoas, 400 delas foram tratadas por 5 dias com hidroxicloroquina, enquanto as outras 400 receberam o tratamento comum. Assim, ao final do estudo, o que se concluiu? Os pesquisadores viram que a porcentagem de pessoas que tratadas com hidroxicloroquina se aproximava muito parecido do havia recebido o tratamento padrão (11,8% vs 14,8%). 

    O tratamento com hidroxicloroquina não reduz a mortalidade de pacientes internados. (11).

    Nesse estudo, os pesquisadores acompanharam 4.500 pessoas que tiveram Covid-19 (confirmada com RT-qPCR) e acabaram sendo internados. Algumas pessoas precisaram de ventilação mecânica (os casos graves, de UTI). Outras precisaram somente de oxigênio e outros não precisando de nenhuma das opções. O que foi visto é que em nenhum dos cenários observados houve melhora dos pacientes com o uso de hidroxicloroquina por 6 dias. O tratamento com ela não diminuiu o número de mortes, o número de intubações e tempo no hospital comparado com o tratamento sem ela. 

    O tratamento combinado de hidroxicloroquina e azitromicina não melhora a recuperação de pacientes internados com casos leves e moderados (12).

    Nessa publicação, os cientistas avaliaram cerca de 600 pacientes que tinham casos confirmados leves ou moderados (com uso de oxigênio mas sem intubação) de Covid-19. Esses pacientes foram divididos em três grupos: 1º recebeu o tratamento comum; 2º recebeu o tratamento com hidroxicloroquina; 3º recebeu tratamento combinado de hidroxicloroquina e azitromicina. Ao final da pesquisa, os autores viram que não havia diferença na evolução da Covid-19 com o tratamento de hidroxicloroquina sozinha ou combinada com azitromicina. Como sempre, em estudos assim, quando comparada com o tratamento comum. Em outras palavras, o medicamento sozinho ou combinado não influenciou a melhora ou piora dos pacientes de alguma forma.

    Dito tudo isso…

    Quero terminar esse texto relembrando para todos: até o momento não há qualquer medicamento aprovado que seja eficaz no combate a Covid-19! Até agora a nossa melhor ferramenta contra a pandemia ainda são as vacinas. Mas somente elas não nos salvarão. Temos que continuar usando máscara (mesmo você que já foi vacinado). Ficar em casa o máximo possível, cobrar medidas de restrição em escala nacional e, principalmente, respeitá-las o máximo possível. 

    As vacinas são medidas de prevenção. Os medicamentos são medidas de tratamento. Para o controle da pandemia e recuperação da economia (como muitos desejam) é muito mais eficaz nós evitarmos a contaminação de pessoas. Não adianta confiarmos que poderemos ser tratados caso nos infectemos, sem qualquer indício de que teremos tratamento – pois não existe mesmo. Com a infecção há um gasto muito maior relacionado a outros medicamentos, intubação e hospitalizações. Enquanto com a prevenção da infecção com a vacina, o dinheiro gasto é muito menor.

    Fiquem em casa, se vacinem. E cobrem (cada vez mais) que o investimento na ciência, na produção de vacinas e na importação das IFAs aconteça.

    Para saber mais

    1. Petri M (2011) Use of hydroxychloroquine to prevent thrombosis in systemic lupus erythematosus and in antiphospholipid antibody-positive patients, Curr Rheumatol Rep ,13(01):77–80 

    2. Ruiz-Irastorza G, Ramos-Casals M, Brito-Zeron P, Khamashta MA (2010) Clinical efficacy and side effects of antimalarials in systemic lupus erythematosus: a systematic review, Ann Rheum Dis 69(01):20–28

    3. Informativo elaborado pelo grupo de trabalho “Ciências Farmacêuticas e a Covid-19. As bases científicas do uso da cloroquina e da hidroxicloquina sobre a covid-19.

    4. Bikdeli, B, Madhavan, MV, Gupta, A, Jimenez, D, Burton, JR, Der Nigoghossian, C, & Group, TC (2020) Pharmacological agents targeting thromboinflammation in COVID-19: review and implications for future research, Thrombosis and haemostasis, 120(7), 1004.

    5. Dhakal, BP, Sweitzer, NK, Indik, JH, Acharya, D, & William, P (2020) SARS-CoV-2 infection and cardiovascular disease: COVID-19 heart, Heart, Lung and Circulation.

    6. Wang, M, Cao, R, Zhang, L, Yang, X, Liu, J, Xu, M, & Xiao, G (2020) Remdesivir and chloroquine effectively inhibit the recently emerged novel coronavirus (2019-nCoV) in vitro, Cell research, 30(3), 269-271.

    7. Liu, J, Cao, R, Xu, M, Wang, X, Zhang, H, Hu, H, … & Wang, M (2020) Hydroxychloroquine, a less toxic derivative of chloroquine, is effective in inhibiting SARS-CoV-2 infection in vitro, Cell discovery, 6(1), 1-4.

    8. Mégarbane, B (2020) Chloroquine and hydroxychloroquine to treat COVID-19: between hope and caution, Clin Toxicol (Phila), 1-2.

    9. Gautret, P, Lagier, JC, Parola, P, Meddeb, L, Mailhe, M, Doudier, B, … & Raoult, D (2020) Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial, International journal of antimicrobial agents, 56(1), 105949.

    10. Boulware, DR, Pullen, MF, Bangdiwala, AS, Pastick, KA, Lofgren, SM, Okafor, EC, … & Hullsiek, KH (2020) A randomized trial of hydroxychloroquine as postexposure prophylaxis for Covid-19, New England Journal of Medicine, 383(6), 517-525.

    11. RECOVERY Collaborative Group (2020) Effect of hydroxychloroquine in hospitalized patients with Covid-19 New England Journal of Medicine, 383(21), 2030-2040.

    12. Cavalcanti, AB, Zampieri, FG, Rosa, RG, Azevedo, LC, Veiga, VC, Avezum, A, … & Berwanger, O (2020) Hydroxychloroquine with or without Azithromycin in Mild-to-Moderate Covid-19, New England Journal of Medicine, 383(21), 2041-2052.

    Outros artigos mostrando a ineficácia da hidroxicloroquina sozinha ou combinada com azitromicina:

    • Magagnoli, J, et al. “Outcomes of hydroxychloroquine usage in United States veterans hospitalized with Covid-19.” Med 1.1 (2020): 114-127.
    • Fiolet, T, Guihur, A, Rebeaud, ME, Mulot, M., Peiffer-Smadja, N, & Mahamat-Saleh, Y (2021). Effect of hydroxychloroquine with or without azithromycin on the mortality of coronavirus disease 2019 (COVID-19) patients: a systematic review and meta-analysis. Clinical Microbiology and Infection, 27(1), 19-27.
    • Mitjà, O, Corbacho-Monné, M, Ubals, M, Alemany, A, Suñer, C, Tebé, C, … & Clotet, B (2020). A cluster-randomized trial of hydroxychloroquine for prevention of Covid-19, New England Journal of Medicine.
    • Bakadia, BM, He, F, Souho, T, Lamboni, L, Ullah, MW, Boni, BO, … & Yang, G (2020). Prevention and treatment of COVID-19: Focus on interferons, chloroquine/hydroxychloroquine, azithromycin, and vaccine. Biomedicine & Pharmacotherapy, 111008.
    • Gautret, P, Lagier, JC, Parola, P, Meddeb, L, Mailhe, M, Doudier, B, … & Raoult, D (2020). Hydroxychloroquine and azithromycin as a treatment of COVID-19: results of an open-label non-randomized clinical trial. International journal of antimicrobial agents, 56(1), 105949.
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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Não existe tratamento precoce para Covid-19 [capítulo de hoje: ivermectina]

    Texto escrito por Tatyana Tavella

    #IVERMECTINA, um breve histórico

    2015, o ano em que pesquisadores que descobriram um medicamento que contribuiu para uma diminuição drástica de doenças parasitárias em países tropicais, ganharam o tão almejado Prêmio Nobel de Medicina. William Campbel, da Merk, e Satoshi Omura, do Kitasato, foram laureados pela pesquisa que levou ao descobrimento da ivermectina!

    No entanto, o que parecia um conto de fadas em formato de uma parceria público-privada bem-sucedida sofreu uma reviravolta. Isto é, Uma pesquisa voltada para o bem-estar social tão importante como esta ganhou um tom mais realista na pandemia do novo coronavírus. Qual? Nem toda história tem um final feliz.

    Causos recentes: a persistência e manutenção da desinformação…

    No fim de janeiro de 2021, começou a circular em alguns grupos e mídias sociais do Brasil, uma “Meta análise”. Mas, o que é uma Meta análise? É um estudo que coleta TODAS as informações disponíveis sobre um determinado assunto. Posteriormente a isto, avalia a qualidade e homogeneidade dos dados, para verificar se os estudos concordam entre si. Assim, o pilar da meta análise é o rigor científico. Isto quer dizer que existem critérios que devem ser seguidos para validar um estudo de Meta Análise.

    No caso desta “meta análise” que estava circulando nas redes sociais e grupos, havia uma suposta “prova” que a ivermectina funciona no tratamento da COVID-19. Todavia, ressaltamos: no caso da Meta Análise divulgada sobre a ivermectina na COVID-19, nenhum critério científico que valide o estudo foi seguido.

    Recentemente, um estudo clínico concluiu que o tratamento à base de ivermectina não apresentou benefícios clínicos em pacientes com COVID-19. Esta pesquisa cumpriu os protocolos de metodologia com duplo-cego randomizado e envolvendo mais de 400 pacientes. Sua conclusão foi de que o tratamento à base de ivermectina não apresentou benefícios clínicos em pacientes com COVID-19. O trabalho foi publicado no início de março (2021) na JAMA, uma das revistas de medicina mais prestigiadas do mundo.

    Sobre a criação do mito da ivermectina

    O Brasil é um dos únicos países do mundo que insiste em destinar recursos públicos para comprar ivermectina para tratamento da COVID-19. Mesmo sem comprovação científica. Isso ao invés de investir em estratégias que realmente funcionam, como VACINAS. Mas de onde veio a ideia de que esse medicamento funciona para o tratamento da COVID-19?

    A ivermectina se tornou uma das drogas mais populares no mundo devido à pandemia do novo coronavírus, disso todo mundo sabe. O frenesi em relação à droga fez com que a medicação se esgotasse das farmácias por todo o Brasil. Lembrando que nós estamos entre os países que mais investem no medicamento para tratamento da COVID-19 (ao lado de México, Egito e Argentina).

    Em março de 2020, um trabalho publicado mostrou que doses altas de ivermectina reduziram 99.98% do RNA viral em células infectadas com SARS-CoV-2 in vitro.

    UM ALERTA: AS PALAVRAS “CÉLULAS” E “IN VITRO” INDICAM QUE A PESQUISA AINDA NÃO ACONTECEU NO SER VIVO “INTEIRO” – O TESTE ACONTECE NUMA PLACA DE LABORATÓRIO

    Isto ocorreu pouco depois de a OMS declarar a pandemia de COVID-19, e a pesquisa era de um grupo australiano da Universidade de Monash.

    Um trabalho aparentemente promissor, uma vez que o reposicionamento de fármacos reduz o tempo do descobrimento de drogas para uma doença emergente.

    Este tipo de pesquisa, busca diferentes aplicações para compostos que já passaram por ensaios clínicos de segurança. Assim, por já terem cumprido uma etapa de segurança com sucesso, já estão aprovados para uso em humanos por órgãos regulatórios. Entretanto, bom lembrar que os “ensaios clínicos de segurança” incluem testes de toxicidade. Além disso, há prescrição de dose máxima e análise de doses letais para seres humanos. Ou seja, há indicação clara de qual dose é DANOSA ao ser humano (informação que vem na bula, por exemplo).

    É importante ressaltar que esse estudo foi publicado em um momento de tensão em que o mundo assistia o sistema de saúde italiano colapsar. Dessa forma, viralizou como uma faísca de esperança no combate do novo coronavírus.

    No entanto, antes de acabar com os estoques de ivermectina das farmácias achando que a ivermectina previne, trata, ou cura COVID-19, devemos considerar alguns pontos desse estudo:

    1. Tratava-se de um estudo preliminar in vitro.

    Os testes in vitro são realizados em cultura de células (ambiente artificial, controlado) para verificar a atividade e toxicidade de um composto ou medicamento. Assim, com esses testes, são selecionadas moléculas promissoras para testes em modelos animais, os chamados testes in vivo. Isto é, estes testes são modelos um pouco mais próximos do organismo humano (ensaios pré-clínicos). Os compostos promissores nos modelos animais avançam para serem testados em humanos quanto à eficácia e segurança (ensaios clínicos), antes de serem comercializados.

    Nesse estudo, a ivermectina foi testada em doses altas em células de rim de macaco in vitro. Outros estudos já haviam reportado atividade antiviral da ivermectina contra vírus de RNA in vitro.

    No entanto, nenhum trabalho demonstrou atividade antiviral da ivermectina in vivo.

    Apesar de inibição in vitro, o tratamento à base de ivermectina não mostrou benefícios na prevenção da infecção letal de Zika vírus em camundongos. Isto é, mesmo funcionando in vitro, no modelo in vivo não obtivemos resultados. E todo o experimento com fármacos precisam desta fase pois é ela que PROVA que dentro do corpo, existe combate à doença.

    Apesar de atividade contra dengue in vitro, um ensaio clínico de fase III feito na Tailândia mostrou que o tratamento com ivermectina não reduziu a viremia. Além disso, os resultados também não apontaram benefícios no quadro clínico de pacientes com dengue. Vale frisar que no pipeline de descobrimento de drogas existem dezenas de milhares de compostos testados. No entanto, quando vamos olhar o número de compostos aprovados para uso comercial cai para casa de um dígito. Ou seja, é MUITO difícil encontrar uma molécula que passe por todas as fases do pipeline. Em suma, a pesquisa in vitro e as análises in vivo são etapas fundamentais e representam resultados parciais em um trabalho INICIAL.

    2. A dose de ivermectina utilizada no estudo é alta.

    O estudo constatou que em tratamentos in vitro realizados com a dose de 5 µM, a ivermectina foi capaz de reduzir em 99.98% a quantificação de RNA viral da célula infectada com SARS-CoV-2. Aparentemente a ivermectina tem uma atividade potente contra o novo coronavírus in vitro. No entanto, quando consideramos as propriedades farmacocinéticas desse composto, observamos outra coisa. Essa concentração é mais 17 vezes maior do que a concentração sérica máxima mais alta (Cmax) de ivermectina reportada na literatura.

    Assim, isso significa que para testar se a ivermectina tem um potencial clínico no tratamento da COVID-19, precisaríamos de uma dose de ivermectina muito maior do que as reportadas nos testes de segurança desse medicamento. Ou seja, a dose necessária para o teste clínico equivale a uma dose maior do que a segurança para as pessoas. Em suma, de novo, traduzindo: esta dose equivale a uma intoxicação grave e as pessoas podem MORRER tomando as doses reportadas no estudo.

    3. O reposicionamento de fármacos só funciona em uma situação específica

    O reposicionamento funciona? Sim, mas com uma ressalva fundamental! Se as doses utilizadas para tratar uma doença nova se encontram dentro do intervalo de segurança clínica para qual o composto obteve aprovação! Dessa forma, nesse caso, o estudo utilizou uma concentração de droga extremamente alta e inatingível, mesmo com dosagens excessivas do medicamento. Isto é, a ivermectina tem ação in vitro contra o vírus. Mas no corpo humano, na concentração usada no estudo, ele mataria o hospedeiro também (ou seja: nós…). Conclusão: a concentração de ivermectina utilizada no estudo é IRRELEVANTE do ponto de vista clínico, pois pode (e eventualmente vai) matar o ser humano.

    Sobre a Ivermectina e o Tratamento precoce no Brasil

    Em janeiro de 2021, durante o colapso do sistema de saúde de Manaus, o Ministério da Saúde lançou o aplicativo TratCov. Este aplicativo estava estruturado em uma pontuação de sintomas do paciente. Qualquer sintoma mínimo de COVID-19 (qualquer pontuação), sugeria a prescrição de um coquetel de medicamentos. Este coquetel tinha indicações SEM EFICÁCIA CIENTÍFICA para tratamento da COVID-19 (ivermectina estava incluída na lista).

    Nesse mesmo período, o Twitter reconheceu as postagens do Ministério da Saúde do Brasil referentes ao “Tratamento Precoce” como “enganosas”.

    Nós fomos o único país do mundo a ter posts de um ministério ocultados por uma rede social.

    No início de fevereiro de 2021, a Merk publicou uma nota dizendo que não existem evidências científicas de que o medicamento funcione para tratar COVID-19. Quem é a Merk? A farmacêutica fabricante de ivermectina e principal beneficiada com as vendas do medicamento.

    Além disso, apesar do silêncio dos Conselhos de Medicina do Brasil, muitos médicos fizeram um alerta sobre o surgimento de casos de hepatite medicamentosa causada por excesso de ivermectina. Até mesmo o Conselho Federal de Farmácia se manifestou contra o uso de ivermectina e do “tratamento precoce” como estratégia de tratamento para a COVID-19.

    Por fim…

    Não existem evidências científicas. Como assim? Não há estudos clínicos que passaram por revisão e publicadas em revistas científicas endossando ou justificando o uso de ivermectina no tratamento da COVID-19. Assim, Não existe tratamento precoce para COVID-19. A Organização Mundial da Saúde (OMS), a Organização Pan-Americana de Saúde (PAHO), o FDA e a ANVISA não recomendam o uso de ivermectinapara tratamento ou prevenção da COVID-19.

    Conclusão: a ivermectina não cura, não trata e não previne COVID-19 e seu uso prolongado PODE LEVAR A PESSOA À ÓBITO!

    Para saber mais

    1. The FDA-approved drug ivermectin inhibits the replication of SARS-CoV-2 in vitro-
    2. Ivermectin: a systematic review from antiviral effects to COVID-19 complementary regimen. PMID: 32533071; PMCID: PMC7290143
    3. Lack of efficacy of ivermectin for prevention of a lethal Zika virus infection in a murine system.
    4. Ivermectin as a potential COVID-19 treatment from the pharmacokinetic point of view: antiviral levels are not likely attainable with known dosing regimens.
    5. WHO guideline on drugs for covid-19. BMJ. 2020;370:m3379
    6. Recomendação sobre o uso de ivermectina no tratamento de COVID-19 – OPAS/OMS | Organização Pan-Americana da Saúde (paho.org)
    7. FDA Letter to Stakeholders: Do Not Use Ivermectin Intended for Animals as Treatment for COVID-19 in Humans
    8. Agência Nacional de Vigilância Sanitária: nota de esclarecimento
    9. Merck: remédio em teste reduz infecção por covid-19, aponta dado preliminar.
    10. Médicos alertam sobre uso de ivermectina contra Covid-19, após suspeita de paciente com hepatite aguda-contra-covid-19-apos-suspeita-de-paciente-com-hepatite-aguda
    11. TrateCov: sistema do governo que sugere cloroquina não explica uso de dados
    12. López-Medina E, López P, Hurtado IC, et al (2021) Efeito da ivermectina no tempo de resolução dos sintomas entre adultos com COVID-19 leve : um ensaio clínico randomizadoJAMA, Publicado online em 04 de março de 2021.
    13. Busca de fórmulas milagrosas contra a Covid-19 continua impulsionando vendas de medicamentos

    A autora

    Tatyana Tavella, Farmacêutica pela Universidade de São Paulo, doutora em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, atualmente trabalha na área de descobrimento de fármacos no Laboratório de Doenças Tropicais da Unicamp.

    Este texto é original e exclusivo do Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Anticorpos Monoclonais! Quê?

    Anticorpos monoclonais? Clones de anticorpos? Que isso, voltamos para 2001 junto com o Dr. Albieri? (vocês eram nascidos já para esta referência?)

    Vamos com calma! Não é bem assim.

    Já falamos bastante de resposta imune humoral, anticorpos e até o uso de plasma convalescente aqui no Blogs, e hoje vamos explicar mais uma ferramenta que temos para combater cânceres, doenças autoimunes e doenças infecciosas, entre elas a própria Covid-19.

    Respira fundo e vêm comigo entender o que são esse tipo de anticorpos.

    História

    A descoberta dos anticorpos data do final do século XIX, por volta de 1890. Nesses anos, dois cientistas – Kitasato e von Behring – observaram que animais que tinham contraído difteria ou tétano possuíam no soro do seu sangue uma “anti-toxina” capaz de neutralizar a toxina causadora de ambas as doenças. Em 1891, um ano depois, outro cientista – Paul Ehrlich – propôs o nome de Anticorpo (Antikörper em alemão) para essa “antitoxina” (1, 2). Nos anos que se seguiram foram feitos grandes avanços no desenvolvimento do conhecimento sobre o que são os anticorpos, suas estruturas e funções (algo que você pode conferir em outros textos já publicados aqui no blog). 

    Anticorpos Policlonais vs Monoclonais.

    Com todo o conhecimento acumulado atualmente sobre anticorpos, hoje sabemos que o que torna a resposta imune humoral tão potente é (dentre outros fatores) a capacidade de produzir milhares de cópias de anticorpos diferentes contra uma única molécula (ou antígeno, como se diz no meio científico), que são os chamados de Anticorpos Policlonais. Achou confuso?

    Vamos exemplificar: quando um linfócito B reconhece um antígeno estranho, ele começa a produzir milhares e milhares de cópias de um único anticorpo. Essa célula B específica produz esse anticorpo específico. Ao mesmo tempo, essa mesma célula B começa a se multiplicar, gerando várias células filhas dela mesma (ou clones). Cada um desses clones vai produzir anticorpos ligeiramente diferentes daquele produzido pela célula mãe. Vamos considerar que a partir dessa célula B mãe foram produzidos três clones (ou células filhas). Cada uma delas reconhece três porções diferentes daquele mesmo antígeno estranho que a célula B mãe reconheceu, produzindo milhares de cópias de três outros anticorpos. Novamente, não podemos esquecer que cada um desses linfócitos B filhos produzem um anticorpo específico, que é único de cada célula, mas que pode ser produzido aos milhares. 

    Agora, o exemplo que nós demos foi de uma célula mãe reconhecendo um antígeno e gerando três células filhas, mas o que acontece na realidade são centenas de linfócitos B reconhecendo centenas de diferentes pedaços de diferentes antígenos de um mesmo patógeno (como um vírus ou bactéria), e dando origem a dezenas de células filhas, que originam outras dezenas de células filhas. No final, o que nós temos são centenas de milhares de clones (ou células filhas), cada um produzindo um anticorpo em específico, cada um ligeiramente diferente de todos os outros, e reconhecendo diferentes partes do antígeno estranho. Daí que surge o nome Policlonal, ou seja, muitos clones, muitas cópias). Nosso sistema imunológico sempre vai produzir uma resposta policlonal de anticorpos para contra atacar a uma ameaça.

    Por outro lado, também existem os chamados Anticorpos Monoclonais. Isso é, anticorpos produzidos em laboratório com o uso de engenharia genética para que várias células (ou clones de células) produzam o mesmo anticorpo e assim tenha-se acesso em larga escala a esse tipo em específico (e daí o nome monoclonal, ou único clone). Essa nova biotecnologia surgiu em 1975 quando Georges Köhler e César Milstein desenvolveram uma forma de isolar anticorpos a partir de células híbridas (chamadas de Hibridomas) originadas da fusão de uma célula de mieloma (cancerígena) com uma célula produtora de anticorpos. Essa linhagem celular híbrida era capaz de se multiplicar indefinidamente em placas de cultura ao mesmo tempo que mantinha a capacidade de produzir milhares de anticorpos idênticos (monoclonais), consequentemente, com a mesma especificidade e afinidade (3, 4, 5). 

    Imagem original Nature, traduzida pelo autor

    E quais são suas aplicações na medicina?

    Hoje, quase 50 anos após essa descoberta, o uso de anticorpos monoclonais já é amplo e muito utilizado no combate a diversos tipos de cânceres e doenças autoimunes, por se ligarem especificamente a uma única molécula de interesse terapêutico. Nas terapias contra doenças autoimunes, já se utilizam anticorpos monoclonais para impedir que células como linfócitos T e monócitos entrem em órgãos e ataquem células deste; que citocinas sejam reconhecidas por essas células imunes ou até mesmo para “desligá-las” (2). 

    Já no combate a cânceres, os anticorpos monoclonais são usados de maneiras ainda mais variadas. Alguns servem como “caminhões”, levando drogas ligadas em si que são entregues somente para as células cancerígenas ou ativando moléculas na superfície das células tumorais, que fazem com que estas células entrem em processo de morte programada. Outros anticorpos monoclonais funcionam “mostrando” aos linfócitos T Citotóxicos e macrófagos (se não lembra quem eles são, aconselho dar uma olhadinha nesse texto aqui) onde estão e quem são as células cancerígenas que devem ser mortas, visto que muitas vezes tumores conseguem se esconder do sistema imunológico, além de gerarem ambientes imunossupressores, isso é, capazes de fazer com que linfócitos T e outras células imunes não se ativem próximo dali (2, 3).

    Além disso, assim como Kitasato e von Behring começaram fazendo há mais de 100 anos atrás, atualmente cientistas também estão desenvolvendo anticorpos monoclonais capazes de combater doenças infecciosas como malária, influenza e AIDS, testando eles individualmente ou na forma de coquetéis (2, 4, 6). Oficialmente, já existem três anticorpos monoclonais aprovados pelo FDA (agência federal do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos) para uso no combate a doenças infecciosas, sendo essas o vírus sincicial respiratório, anthrax, e Clostridioides difficile (uma bactéria gastrointestinal) (7).

    Mais uma arma contra a Covid-19.

    No que diz respeito à Covid-19, muitas estratégias foram e estão sendo pensadas para o combate à pandemia, como a vacinação em massa da população, o uso de plasma convalescente em pacientes internados, e claro, o uso de anticorpos monoclonais, apesar deste último ter tido menos atenção nos noticiários dos últimos meses. O principal alvo desses anticorpos é a proteína viral (Spike), na tentativa de impedir a ligação dela com o receptor nas nossas células – a molécula ACE2 – (8, 9), uma estratégia similar a que foi usada no desenvolvimento dos anticorpos monoclonais contra os vírus SARS-CoV-1 e MERS-CoV (7, 10). Contudo, outros alvos também estão sendo estudados, como as tentativas de se controlar a tempestade de citocinas liberada no corpo, levando aos casos graves (9, 11, 12).

    Entretanto, um problema quanto ao uso de anticorpos monoclonais para o tratamento da Covid-19 é a falta de informação sobre a quantidade de anticorpos que vão chegar nos principais órgãos afetados, como os pulmões (uma medida chamada de biodisponibilidade). Além desse fator, também é necessário monitorar a diversidade viral do SARS-CoV-2 na população, visto que eventuais mutações nas proteínas alvos dos anticorpos podem diminuir drasticamente sua eficácia (7). Por causa disso, já está se considerando o uso de dois anticorpos em conjunto, mirando em diferentes porções da Spike.

    Finalizando, apesar dos anticorpos monoclonais poderem ser utilizados de forma preventiva como em casos de pré-exposição (quando a pessoa sabe que vai ser exposta ao patógeno) ou pós-exposição (quando a pessoa sabe que se expôs mas não sabe se infectou-se), é muito mais comum seu uso de forma terapêutica, isto é, após ter certeza que se contraiu a doença e estar apresentando sintomas delas. Nessa forma, apesar de termos mais essa arma para combater a Covid-19, é necessário ressaltar que somente vacinando toda a população que venceremos a pandemia de uma vez por todas.

    Referências:

    1. Llewelyn, MB, Hawkins, RE, & Russell, SJ (1992) Discovery of antibodies, British Medical Journal, 305(6864), 1269-1272.
    2. Yamada, T (2011) Therapeutic monoclonal antibodies The Keio journal of medicine, 60(2), 37-46.
    3. Bayer, V (2019, October) An overview of monoclonal antibodies In Seminars in oncology nursing (Vol 35, No 5, p150927) WB Saunders.
    4. Rajewsky, K. (2019). The advent and rise of monoclonal antibodies.
    5. Posner, J., Barrington, P., Brier, T., & Datta-Mannan, A. (2019). Monoclonal antibodies: Past, present and future. Concepts and principles of pharmacology, 81-141. 
    6. Walker, LM, Phogat, SK, Chan-Hui, PY, Wagner, D, Phung, P, Goss, JL, & Protocol G Principal Investigators (2009) Broad and potent neutralizing antibodies from an African donor reveal a new HIV-1 vaccine target Science, 326(5950), 285-289.
    7. Marovich, M, Mascola, JR, & Cohen, MS (2020) Monoclonal antibodies for prevention and treatment of COVID-19, Jama, 324(2), 131-132.
    8. Jahanshahlu, L, & Rezaei, N (2020) Monoclonal antibody as a potential anti-COVID-19 Biomedicine & Pharmacotherapy, 110337.
    9. Saghazadeh, A, & Rezaei, N (2020) Towards treatment planning of COVID-19: rationale and hypothesis for the use of multiple immunosuppressive agents: anti-antibodies, immunoglobulins, and corticosteroids International immunopharmacology, 106560.
    10. Shanmugaraj, B, Siriwattananon, K, Wangkanont, K, & Phoolcharoen, W (2020) Perspectives on monoclonal antibody therapy as potential therapeutic intervention for Coronavirus disease-19 (COVID-19). Asian Pac J Allergy Immunol, 38(1), 10-18.
    11. Luo, P, Liu, Y, Qiu, L, Liu, X, Liu, D, & Li, J (2020) Tocilizumab treatment in COVID‐19: a single center experience Journal of medical virology, 92(7), 814-818.
    12. Toniati, P, Piva, S, Cattalini, M, Garrafa, E, Regola, F, Castelli, F, & Training, HUB (2020) Tocilizumab for the treatment of severe COVID-19 pneumonia with hyperinflammatory syndrome and acute respiratory failure: a single center study of 100 patients in Brescia, Italy, Autoimmunity reviews, 102568.

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Plasma Convalescente: tratamentos a partir de anticorpos

    Já vimos o que são os anticorpos em um texto anterior, como eles são formados, quais as suas funções, mas resta uma dúvida: será que podemos usá-los como alguma forma de tratamento? E a resposta é sim!

    Toda a ideia por trás de usar anticorpos no combate a doenças infecciosas gira em torno do conceito de Imunidade Passiva e Plasma Convalescente. Assim, por causa disso, precisamos entender tais conceitos.

    A imunidade passiva (já comentada no texto sobre vacinas) é aquela que ocorre quando há somente a transferência de anticorpos de uma pessoa para outra. Dessa forma, o segundo indivíduo consegue melhorar da infecção, mas acaba não gerando uma memória imunológica contra o patógeno. Usa-se como indivíduo doador alguém que já foi infectado pelo patógeno em questão, pois ele já teve tempo de montar toda uma resposta imune adaptativa, o que inclui os anticorpos. Assim, esse conceito já é antigo, ele usado desde o final do século XIX, no combate a toxinas bacterianas, em uma era pré-antibióticos(1). 

    Mas aí podemos perguntar: por que então não damos o patógeno ou a toxina para todo mundo e todos montam essa resposta imune? Nesse caso, estamos falando de uma vacina, que leva a um processo de imunidade ativa, aquela que gera uma memória imunológica (já falamos de vacina, e você pode conferir aqui). Contudo, nesse momento aparecem alguns problemas para essa ideia, como as dificuldades em criar uma vacina: todo o processo é muito caro, difícil e demorado.

    Sobre o Plasma Convalescente

    Em momentos como o que estamos passando agora, cada minuto e hora que se passa é essencial para salvar uma vida. Apesar de ser necessário desenvolver vacinas para gerar uma memória imunológica na população, é também preciso usar de métodos para ajudar aqueles que já foram infectados e podem desenvolver a forma grave da doença. Pois, em muitos casos, a severidade da doença pode ser grande, com um alto grau de letalidade, ou ela pode ser muito contagiosa e tem a chance de causar uma forma agravada que pode levar a complicações (como a Covid-19).

    É nesse momento que entramos no uso do Plasma Convalescente. Em palavras mais simples, esse termo se refere a parte líquida do sangue, que não inclui hemácias e células de defesa, de pessoas que já ficaram doentes e se recuperaram. Dessa forma, é justamente nessa parte do sangue que estão os anticorpos neutralizantes contra o patógeno que queremos combater – no caso da Covid-19, o vírus SARS-CoV-2.

    Essa técnica já é usada há um século e os primeiros estudos do uso de plasma convalescente em uma infecção viral datam da gripe espanhola em 1919 e 1920(2). Um outro momento que o uso de plasma convalescente foi tido como uma possibilidade foi durante os recentes surtos de Ebola na África, uma doença altamente infecciosa e letal, que infelizmente até hoje não possui vacina ou medidas terapêuticas muito eficientes(3). E, é claro, atualmente tem se falado muito sobre esse procedimento no tratamento dos casos graves da Covid-19, enquanto não há uma vacina ou medicamento totalmente seguro e 100% eficiente para ela.

    Outras técnicas

    Um ponto que também precisamos citar aqui é o uso de anticorpos monoclonais no combate ao SARS-CoV-2 até uma vacina ficar pronta. Anticorpos monoclonais são um conjunto de anticorpos produzidos em laboratório que são exatamente iguais uns aos outros e que se ligam a uma única parte do patógeno, escolhida a dedo pelos cientistas, e dessa forma, sendo essencial para o patógeno. Mas além de combater vírus, bactérias e outros patógenos, essa ferramenta é tão poderosa que tem sido usada até mesmo no tratamento de diferentes tipos de cânceres e doenças autoimunes. Contudo, diferente do uso de plasma convalescente (que usa uma mistura de anticorpos – chamados policlonais – e moléculas contra diferentes partes do vírus), essa abordagem é muito mais cara e complexa de se manejar, levantando a questão (4): países e pessoas mais pobres vão ter condições de pagar por esse tipo de tratamento enquanto uma vacina não sair?

    Mas voltemos ao Plasma Convalescente

    Recentemente, a Food and Drug Administration (FDA) – uma agência dos Estados Unidos responsável pela proteção e promoção da saúde pública – aprovou o uso de plasma convalescente para o tratamento de pacientes com a forma grave da Covid-19(5). Assim, foi permitido o início de testes clínicos para analisar a eficiência do procedimento em diferentes aspectos da doença. Até agora cinco testes clínicos já foram começados na tentativa de verificar a eficácia de plasma convalescente nos seguintes aspectos(6): 

    • prevenção dos sintomas após contaminação; 
    • tratamento de casos sintomáticos leves para evitar complicações e a hospitalização; 
    • casos moderados de pacientes hospitalizados para prevenir a entrada na UTI e uso de equipamentos de ventilação;
    • última alternativa (chamada de “terapia de resgate”) em pacientes graves que estão sendo ventilados;
    • casos pediátricos.

    Por fim…

    O uso do plasma convalescente vem se provando uma poderosa ferramenta que poderemos adicionar em nosso arsenal para combater a Covid-19. Mas é claro que ela tem seus prós e contra. A favor dela temos a provável eficiência clínica, a disponibilidade quase que imediata de doadores (visto os mais de 2 milhões e meio de brasileiros recuperados e 15 milhões de pessoas ao redor do mundo). Ademais, temos o custo relativamente mais baixo do que o desenvolvimento de novos antivirais, ou mesmo o reposicionamento de fármacos (que já mencionamos nestes textos aqui e aqui).

    Além disso, o uso de plasma convalescente pode se provar uma ótima medida preventiva, principalmente para os agentes de saúde que ficam na linha de frente, combatendo a infecção e se expondo a contaminação. Já os contras se concentram principalmente na parte administrativa e logística, focando na identificação, consentimento, coleta e teste dos possíveis doadores (7). Assim, os prós e contras devem ser pesados, analisando principalmente o que a literatura irá falar nos próximos meses, caso novas pesquisas corroborem o uso de tal medida ou descubram problemas.

    Ciência Brasileira

    Rabelo-da-Ponte, FD; Silvello, D, Scherer, JN, Ayala, AR, Klamt, F (2020) Convalescent Plasma Therapy on Patients with Severe or Life-Threatening COVID-19: A Metadata Analysis, The Journal of Infectious Diseases

    Artigos Citados:

    1. Casadevall A, Dadachova E, Pirofski LA (2004) Passive antibody therapy for infectious diseases. Nat Rev Microbiol; 2(9):695-703

    2. Brown, BL, & McCullough, J (2020) Treatment for emerging viruses: convalescent plasma and COVID-19, Transfusion and Apheresis Science, 102790.

    3. World Health Organization (2014) Use of convalescent whole blood or plasma collected from patients recovered from Ebola virus disease for transfusion, as an empirical treatment during outbreaks. Interim guidance for national health authorities and blood transfusion services; Geneva: World Health Organization

    4. Leford, H (2020) Antibody therapies could be a bridge to a coronavirus vaccine — but will the world benefit? Nature, 

    5. Tanne JH (2020) Covid-19: FDA approves use of convalescent plasma to treat critically ill patients. BMJ 2020;368:m1256. 

    6. Bloch EM, Shoham S, Casadevall A, et al (2020) Deployment of convalescent plasma for the prevention and treatment of COVID-19 J Clin Invest; 130(6):2757-2765. 

    7. Sullivan, HC, & Roback, JD (2020) Convalescent plasma: therapeutic hope or hopeless strategy in the SARS-CoV-2 pandemic Transfusion Medicine Reviews.

    Para saber mais

    Marano, G, Vaglio, S, Pupella, S, Facco, G, Catalano, L, Liumbruno, G. M, & Grazzini, G (2016) Convalescent plasma: new evidence for an old therapeutic tool? Blood Transfusion, 14(2), 152.

    Center for Biologics Evaluation and Research, USF and DA (2020) Recommendations for investigational COVID-19 convalescent plasma

    Duan, K, Liu, B, Li, C, Zhang, H, Yu, T, Qu, J, … & Peng, C (2020) Effectiveness of convalescent plasma therapy in severe COVID-19 patients. Proceedings of the National Academy of Sciences, 117(17), 9490-9496.

    Rojas, M, Rodríguez, Y, Monsalve, DM, Acosta-Ampudia, Y, Camacho, B, Gallo, JE, … & Mantilla, R D (2020) Convalescent plasma in Covid-19: Possible mechanisms of action; Autoimmunity Reviews, 102554.

    Expanding access to monoclonal antibody-based products: a global call to action. Wellcome; 2020 August. Avaliable at: https://wellcome.ac.uk/sites/default/files/expanding-access-to-monoclonal-antibody-based-products.pdf

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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