Tag: vacina

  • Por um olhar mais ético e menos apressado na comunicação sobre ciência e sociedade

    O processo de produção de conteúdo de divulgação científica deve passar por um processo de reflexão crítica. Isto envolve não apenas o conteúdo a ser publicado. Mas acima de tudo um compromisso ético, de empatia e responsabilidade com a sociedade.

    Uma das maiores dificuldades de se trabalhar com a Divulgação Científica é ponderar sobre o quê e como se vai falar/abordar algo. Quando estamos em tempos [digamos] regulares, produzimos conteúdo a partir de um planejamento, com organização de pautas, postagens semanais e/ou quinzenais, também temos um cronograma para estudar cada temática que vamos abordar. Isso nos traz uma certa segurança no que escrevemos, temos tempo de depurar tudo o que fazemos, incluindo revisar, repensar as palavras.

    Algumas vezes, óbvio, há acontecimentos sociais que se tornam urgentes e produzimos textos mais apressados. Normalmente solicitamos tais textos a blogueiros das áreas específicas, por exemplo.

    No entanto, desde março nossa periodicidade de publicação foi alterada. São dois ou três textos semanais, além da reorganização dos textos nas redes sociais. Resolvemos, há algumas semanas, reestruturar o trabalho da Covid-19. Isto aconteceu não só pelo excesso de trabalho em si. Mas por sentirmos que vínhamos fazendo sem este tempo de ponderação. Também sentimos a necessidade de organizar melhor o conteúdo que temos abordado, frente às necessidades de nossos leitores.

    Comunicação e Divulgação Científicas em tempos de pandemia

    Como assim? Trabalhar com comunicação científica em tempos de crise sanitária. Também há obscurantismo científico e negacionismo em altos cargos executivos do país. Além disso, vemos disputas político-partidárias em torno da vacina. Há demandas diárias de conhecimentos de alta complexidade. Tudo isso é um desafio para todos da divulgação científica. Há também a reafirmação de um compromisso assumido perante aqueles que, de alguma maneira, confiam no que temos feito e buscam aqui informações, diálogos, trocas acerca da pandemia e relações científicas e sociais que nos atingem diariamente.

    Ouvimos falar sobre a importância da divulgação científica para a construção de uma cultura científica (Vogt & Morales, 2018). Mas para isso é essencial que ela seja construída a partir de uma relação mais próxima com o humano, mais empática.

    E a vacina? A morte? O Butantã? A Anvisa?

    Desde segunda as reviravoltas com o tema da vacina estão mais assoberbados que o usual. Primeiro, os pronunciamentos da Pfizer, depois, vimos a suspensão da CoronaVac, que hoje foi retomada.

    Divulgadores científicos e cientistas que acompanhamos e com os quais trocamos informações – parceiros de trabalhos – têm produzido conteúdo incessantemente. Pessoas que se apresentam cansados, virando (literalmente) noites e noites para trabalhar e compreender a complexidade de toda a situação deste momento.

    Hoje o dia foi distante de redes sociais em nosso expediente. Víamos a movimentação e os debates de maneira fragmentada, em meio às aulas, palestras e reuniões. Buscávamos informações, tristes pelo embate político. Tentando compreender ataques de duas instituições de respeito disputando por legitimidade frente ao que era narrado como “evento grave” (na hora do almoço).

    Nesta hora, já nos parecia nefasto um presidente da república vibrar pela suspensão dos procedimentos de desenvolvimento da vacina. Isto acontecia como se fosse uma partida de um lance em um jogo de sorte ou revés. Acrescente a desconsideração sobre o momento tão importante e que requer atenção para cada etapa que vivenciamos.

    Que momento?

    Nós temos, hoje, no Brasil 161 mil mortes, 364 mil casos em acompanhamento e 5,5 milhões de pessoas já foram infectadas. No mundo, são 51 milhões de infectados e mais de 1 milhão e 200 mil mortos. Lamentamos a perda de cada uma dessas vidas.

    A pandemia, ao que tudo indica, está longe de acabar. A morte é vivência cotidiana. As contaminações são expectativas de muitos que trabalham diariamente, expondo-se por falta de políticas que direcionem nosso país e nossa população de modo mais seguro.

    Não há o que vibrar por uma pesquisa com vacina sendo suspensa.

    Ao fim do dia…

    Soubemos a causa da morte ao final da tarde. A morte por evento grave não é vinculada à vacina. Foi um suicídio. Todo e qualquer debate deve sempre cercar-se de extremo cuidado e muito (MUITO!) respeito. Tanto que se buscou omitir a causa pelas instituições envolvidas com a pesquisa, ressaltando-se somente o fato de não ser relacionada à vacina. Inclusive há formas e procedimentos para notícias que envolvem suicídio. A Organização Mundial da Saúde tem um documento e debate específico para isso.

    Neste momento, retomamos o início deste texto. Isto é: para abordarmos qualquer tema na Divulgação Científica, com ética, empatia e responsabilidade, é fundamental não nos apressarmos, nem buscarmos ineditismo para falas proferidas aqui. Todo o tema científico, por princípio, precisa de cuidado, revisão e rigor.

    O suicídio, prezados leitores, é tema para falas cuidadas e atentas. Poderíamos, sim, escrever sobre isso, no tempo que uma publicação precisa para ser desenvolvida, com os profissionais que se ocupam com esta discussão no âmbito científico – como sempre fizemos aqui. Ver pulular publicações que deveriam centrar-se na produção e desenvolvimento da vacina – falando tão vulgarmente deste tema nos deixou pensativos sobre se este deveria ser o foco, usando a dor como mote.

    Nosso compromisso

    Temos profundo respeito e compromisso com cada texto que produzimos e, desta vez, não será diferente. É preciso mais do que uma análise mais estruturada para conversar com todos. Precisamos, antes de tudo, apontar que debates inócuos e vazios, não fazem parte do que consideramos cientificamente válidos e eticamente pertinentes.

    A isto, estarrecidamente, observamos o acréscimo de posicionamentos governamentais necropolíticos. Também observamos disputas territoriais e ganhos individuais. Tudo isso sobrepondo-se aos debates científicos e causando desinformação, e em cima de conhecimento científico produzido em benefício da população, debates apressados para cliques exagerados. Somos (e precisamos ser) mais do que isso.

    Àqueles que, neste momento, perderam alguém em um ano tão difícil, nossos mais sinceros sentimentos.

    Para saber mais

    OLIVEIRA, L (2020) Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemia; Blogs de Ciência da Unicamp – Especial Covid-19

    SCHÜTZER, DBF e CAMPOS, LKS (2020) “Quando fecho a porta da minha casa, me sinto mal acompanhado”: impactos da pandemia e do isolamento social na saúde mental; Blogs de Ciência da Unicamp – Especial Covid-19

    VOGT, C e MORALES, AP (2018) Cultura Científica; ComCiência,

    World Healt Organization; Suicide Prevention: Responsible reporting on suicide Quick reference guide https://www.who.int/mental_health/suicide-prevention/dos_donts_one_pager.pdf

    Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 2)

    [Diálogos semi-imaginados, não aleatórios]
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    Já pode lamber corrimão?

    A ciência na vida mundana

    A ciência virou notícia cotidiana – já não consta apenas em partes específicas dos noticiários e jornais, em programas televisivos que se passam nos primeiros horários da manhã durante o final de semana. Desde meados de março, quando o SARS-CoV-2 desembarcou de vez no Brasil, temos visto curvas epidemiológicas, debates sobre eficácia de medicamentos, aprendido sobre proteína Spike, sobre diagnóstico por PCR e sorológico. Temos lido sobre pulmão com aspecto de vidro fosco, compreendido sobre a relação de algumas comorbidades e a infecção pelo novo coronavírus, lido mais e mais sobre transmissão comunitária, imunidade cruzada, diferentes tipos de anticorpos, dentre outros temas.

    Também há todo um montante de informações que nos confunde, muitas vezes. Medicamentos como Cloroquina e Ivermectina – que já eram usados para outras doenças ou enfermidades, tornaram-se “drogas candidatas” e embora tenham sido descartadas, seguem sendo pauta no Brasil e no Mundo. 

    Semana passada a Ozonioterapia foi anunciada como tratamento em uma transmissão ao vivo, por um prefeito no Sul do país e pronto… Uma corrida por informações, memes, artigos publicados, declarações das sociedades relacionadas a isso.

    A Vacina Russa, esta semana também têm causado furor em redes sociais. E muitos se perguntam se tomariam mesmo sem ela ter apresentado os resultados das fases 1 e 2, afinal “é melhor que nada, né?”

    Um pouco é melhor que nada?

    É aí que reside um grande perigo… Percebam que não temos nenhum interesse em acordar todas as manhãs e ver que não há cura, tratamento ou vacina eficaz anunciada. Não é pessimismo olhar para como as etapas da vacina precisam de tempo para serem analisadas. Sagan, em 1996, comentou que vivemos em um mundo em que precisamos da ciência e seus produtos em cada detalhe da sociedade. No entanto, não sabemos como a ciência funciona – e isso é uma receita para o desastre, afirmou um dos maiores nomes da divulgação científica de todos os tempos.

    Pois bem, aqui temos uma série de questões fundamentais que precisamos entender (e talvez isso demore mais tempo do que a vacina, mas cá estamos aprendendo junto com vocês…). A ciência precisa de tempo. Ela é feita a partir de uma série de etapas, que expliquei na postagem que é a parte 1 deste texto. De maneira muito sucinta, o método científico é feito a partir das etapas desta imagem:

    Cada uma destas etapas é feita de maneira colaborativa, com diálogo, debates em grupos de pesquisa, aprovações em comitês de ética nacionais e/ou internacionais (que precisam ser avaliados quanto ao risco aos seres vivos envolvidos). Enquanto estas etapas acontecem, elas também vão gerando outras perguntas e hipóteses (não são etapas estanques e lineares), realizamos análises enquanto estamos realizando experimentos, apresentamos dados parciais em eventos e publicações, etc.

    Porque estou batendo nesta tecla com vocês?

    Ora! Para dizer que na ciência o método científico INTEIRO é permeado de diálogos, debates, conversas. Compartilhar resultados em periódicos ou congressos é uma parte de tudo isso – uma parte importante, pois não é apenas uma exposição, mas é uma avaliação pública do nosso trabalho. Todavia, é também parte de uma prática de expor conhecimento para que outros grupos de pesquisa, outros cientistas, consigam acessar isto e fazer novas perguntas, hipóteses, propor novos experimentos – aumentando ainda mais nosso conhecimento sobre um fenômeno.

    Isto leva tempo, demanda esforço, recursos financeiros, formação de cientistas ao longo de muito tempo, equipes inteiras que se debrucem sobre os problemas que aparecem no mundo. Não que cientistas sejam pessoas extraordinárias e mais inteligentes (o suprassumo de nossa espécie diriam algumas pessoas). Não é nada disso… É apenas demarcar que é uma atividade de médio e longo prazo – UM PROJETO DE UM PAÍS, para além de partidos e governantes.

    Dizer que terapias sem comprovação científica é melhor que nada não é dar esperança às pessoas: é tapar o sol com a peneira e dizer que qualquer coisa vale para a vida do outro. E isso inclui possíveis prejuízos (como a piora do quadro de saúde, o abandono das terapias paliativas, o falecimento sem assistência adequada, o contágio de familiares…)!

    Sobre terapias alternativas e seus resultados não publicados 

    (ou publicados para outras doenças que não aquela que estamos falando)

    Veja que nem é afirmar que não existem estudos vinculados a estas terapias e indicações de tratamentos que vou falar a partir de agora. Mas é sobre como resultados específicos não foram obtidos para esta doença.

    • “A ozonioterapia é usada há 100 anos já!”
    • “A ozonioterapia têm tido ótimos resultados em tratamentos cutâneos e outras enfermidades”
    • “A cloroquina é usada há décadas para Lupus e malária! Como assim é tóxica?”
    • “Os resultados in vitro deram positivo, qual o problema então se eu tomar?”
    • “A ivermectina não têm comprovação, nem contraindicação, deixa as pessoas tomarem ué!”
    • “Se a vacina russa sair, eu vou tomar, mesmo sem comprovação!”

    Estas são algumas das frases que vemos espalhadas nas redes sociais e expressam a opinião das pessoas. 

    Agora vamos lá…

    Para afirmar que a ozonioterapia é eficiente como tratamento, não basta o ozônio ser um bom composto químico que reage com o vírus fora do nosso corpo. Também não basta a ozonioterapia ser eficiente há 50-100 anos contra doenças diversas. Além disso, uma terapia eficiente contra uma doença não a torna automaticamente eficiente contra qualquer outra.

    Tratamentos para doenças muitas vezes necessitam de reagentes específicos (isto é: que quimicamente tenham ação contra o agente patógeno – vírus, bactérias, vermes, fungos…).

    Em suma, para ozônio ou qualquer componente experimental, componentes químicos reagem de modo diferente dentro e fora do nosso corpo. Além disso, os componentes reagem de maneiras diferentes dependendo de como entram em nosso corpo (com introdução anal, intramuscular, intravenosa, pelo trato digestivo).

    Ah, sim: o mesmo vale para a cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e outras drogas candidatas (que já foram descartadas…). Ou seja: drogas candidatas e terapias em fase de pesquisa estão ainda cumprindo a sequência do método científico – não podem nem ser chamadas de tratamento. Assim, estes medicamentos em fase de pesquisa não poderiam ser administradas para as pessoas como tratamento sem que as pessoas fossem informadas sobre isso e consentissem formalmente!

    E a vacina russa?

    Sem transparência, não há segurança! Sem transparência no processo todo, não sabemos se houve ética no desenvolvimento desta vacina! E é por debatermos cada etapa da ciência que temos avançado não apenas em resultados mais precisos contra doenças, mas temos buscado meios de fazer isto de modos cada vez mais seguros, levando-se em conta questões étnicas, de gênero, de faixa etária, de classe social. Ou seja, levando-se em conta a diversidade humana em todos os seus aspectos – e isso é uma luta antiga e importantíssima dentro do meio científico. Que foi (e têm sido – pois ainda temos muito o que conquistar na igualdade e equidade das populações) pauta do que é ciência, como a fazemos e aplicamos o método científico e, mais importante do que isso, para quem fazemos isso – a sociedade.

    Compreendem a diferença? Não é ser negativo. Não é nos negarmos a querer que todos vocês – e nós – tenhamos novamente uma vida de idas ao supermercado sem neuras, abraços sem restrições e uma vida sem medo.

    É exatamente o oposto disso. E não é, também, deixar de olhar para tudo o que ainda temos a fazer e conhecer para que a transparência e a ética sejam alcançadas em cada etapa de nosso trabalho. É exatamente para isto que estamos aqui e trabalhamos com divulgação científica! Por uma maior transparência, diálogo, inclusão no (e pelo) conhecimento para debate socialmente éticos.

    Em suma, para fechar:

    Com ou sem coronavírus, lamber corrimão não parece ser uma boa ideia, ok? ERA MEME GENTE. Mas o diálogo é real.

    Para saber mais

    Divulgadores Científicos Brasileiros

    Dutra, Mellanie (2020) Rússia: a vacina que ninguém viu ou sabe o que faz Rede Análise Covid

    Galhardo, JA A hierarquia das evidências científicas: por que não devemos acreditar em qualquer coisa? Rede Análise Covid

    Iamarino, Atila (2020a) Vacina Russa

    Iamarino, Atila (2020b) Vacinas contra a COVID-19

    Instituto Butantã (2020) Ensaios Clínicos

    Artigos e Livros

    Caceres, RÁ (1996) El método científico en las ciencias de la salud: las bases de la investigación biomédica, Madrid: Ediciones Díaz de Santos.

    Callaway, E (2020a) Russia’s fast-track coronavirus vaccine draws outrage over safety Nature

    Callaway, E (2020b) Coronavirus vaccines leap through safety trials — but which will work is anybody’s guess Nature.

    Galetto, M e Romano, A (2012) Experimentar: aplicación del método científico a la construcción del conocimento. Madrid: Narcea, SA de Ediciones. 

    Moghaddam, A; Olszewska, W; Wang, B; et al (2006) A potential molecular mechanism for hypersensitivity caused by formalin-inactivated vaccines; Nat Med 12, 905–907 

    Mullard, A (2008) Vaccine failure explained; Nature.

    Peeples, L (2020) News Feature: Avoiding pitfalls in the pursuit of a COVID-19 vaccine; PNAS April 14, 2020 117 (15) 8218-8221; first published March 30, 2020

    WHO (2020) More than 150 countries engaged in COVID-19 vaccine global access facility

    WHO (2020b) DRAFT landscape of COVID-19 candidate vaccines – August 10th 

    Wechsler, J (2020) COVID Vaccine Clinical Trials Require Fast Decisions, But No Shortcuts Applied Clinical Trials

    Outros textos do blogs

    Sobre Vacinas, método científico e transparência na ciência (parte 1)

    Ozônio na COVID dos outros é refresco

    COVID-19 e impactos na pesquisa

    De água sanitária à radiação: você já ouviu falar em sanitização?

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Blog Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • MODERNizAndo a vacina contra a COVID-19

    No último dia 18 de maio fomos surpreendidos pela notícia de que a empresa Moderna tinha resultados promissores para uma vacina contra a COVID-19, o que acendeu uma pontinha de esperança no mundo para o enfrentamento da doença. Então vamos falar um pouco sobre essa vacina, os resultados até então encontrados e as expectativas para um futuro próximo (?).

    Vacinas de mRNA

    O título desse texto tem um trocadilho envolvendo o nome da empresa com a inovação e modernidade por trás da vacina testada. Além disso, no próprio nome da empresa está escrito a base da tecnologia que eles desenvolvem, o RNA (ModeRNA)

    Os RNAs são uma molécula parecida com o DNA. Nossas  células  guardam no DNA todas as informações necessárias para a vida e por isso essa molécula é bastante preservada e se localiza no núcleo das células. Para a célula conseguir utilizar as informações contidas no DNA, ela gera a partir dele um tipo de RNA, chamado de mensageiro (RNAm).  Quando há alguma necessidade da célula o RNAm é como uma cópia de alguns pedaços do DNA que carrega a informação necessária e célula passa a produzir uma proteína baseada nessa mensagem em um processo que se chama tradução. 

    As vacinas de RNAm são uma tecnologia nova baseada nessa capacidade do RNA de carregar uma mensagem, uma informação, que a célula ao recebê-la vai traduzir e utilizar. Todas as células do nosso corpo têm a capacidade de ler a informação que o RNA carrega e traduzir isso na forma de uma proteína, lembrando que essas informações são específicas e geram uma proteína específica. Mas como isso se torna importante no contexto de uma vacina? Há vários tipos de vacinas conhecidas e testadas, sendo que a principal finalidade delas é induzir uma imunidade protetora. Isso pode ser feito de diversas formas, como pela administração do vírus ou microrganismo atenuado ou de partes dele, por exemplo. Nesse último caso, as partes do vírus utilizadas na vacina são aquelas capazes de serem reconhecidas pelo sistema imunológico e gerar uma resposta protetora. As vacinas de RNAm, ao invés de utilizarem uma parte do vírus, elas têm o código, o RNAm,  para produzir uma proteína específica do vírus. Desse modo, são as nossas células que produzirão a proteína, que será então reconhecida pelo sistema imune. Assim, quando o vírus entrar no nosso corpo, o sistema imunológico reconhecerá a proteína que ele tem e agirá contra o vírus.

    mRNA-1273

    No caso do novo coronavírus (SARS-CoV-2), as principais tentativas de vacina têm sido desenvolvidas com base em uma proteína que está na superfície do vírus, que se chama SPIKE (S). É através dessa proteína  que o vírus se liga a receptores chamados de ACE2, que estão nas nossas células, e essa ligação (SPIKE+ ACE2) faz com que ele entre nas células. A vacina de mRNA da Moderna, denominada mRNA-1273, é um RNA mensageiro com a informação para as células produzirem a SPIKE. Mas como foi possível chegar nessa vacina? Em janeiro de 2020 os pesquisadores chineses compartilharam o sequenciamento do material genético do SARS-CoV-2, que permitiu à empresa, junto com os Institutos Nacionais de Saúde dos EUA (NIH), selecionar a sequencia para a mRNA-1273. Logo em fevereiro o primeiro lote de vacinas foi analisado e enviado para início dos testes pré-clínicos em animais (camundongos) no NIH. Esse trabalho foi publicado e mostrou bons resultados nos animais, com diminuição do vírus e não evolução dos sintomas. A agência regulatória americana (FDA) aprovou em março o seguimento para testes clínicos de fase 1, que estão também sendo  conduzidos pelo Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA (NIAID, que é parte do NIH). Agora em maio, os primeiros resultados dessa fase foram divulgados. 

    A fase 1 de um teste clínico consiste em analisar principalmente os efeitos colaterais de uma vacina ou medicamento para saber se ela é segura em humanos e geralmente é feita em um pequeno número de pessoas. Para essa nova vacina (mRNA-1273), foram testadas 3 doses: 25, 100 e 250μg, em 15 indivíduos em cada grupo. Segundo o relatório apresentado, a mRNA-1273 é em geral segura e bem tolerada; apenas 1 participante no grupo da dose de 100μg apresentou vermelhidão de grau 3 no local da injeção. Três outros participantes no grupo da maior dose (250μg) apresentaram reações de grau 3 que não foram especificadas no relatório, mas que foram passageiras e não precisaram de nenhuma intervenção. Não houve reações graves em nenhum dos participantes nesse período analisado. 

    Além da segurança, o relatório também reporta os dados de imunogenicidade, que são os relativos ao desenvolvimento da resposta imunológica. Segundo eles, todos os participantes se converteram após 15 dias da primeira injeção, ou seja, todos apresentaram níveis quantificáveis de anticorpos no sangue. Porém, ter anticorpos no sangue não significa que esses anticorpos são eficazes em neutralizar o vírus quando houver um próximo contato com ele no futuro. Essas informações sobre o tipo e qualidade dos anticorpos gerados são mais complexas e requerem testes funcionais. De um modo geral, parte dos anticorpos que nosso organismo gera têm capacidade de se ligar ao vírus (anticorpos de ligação), mas isso não significa que eles impedem o vírus de se ligar e infectar nossas células. Uma quantidade muito menor desses anticorpos é que realmente tem a capacidade de se ligar e neutralizar o vírus, impedindo a infecção, que são os anticorpos neutralizantes. E é esse o tipo de imunidade que se quer gerar com uma vacina. E segundo o relatório da Moderna, ainda não se tem essa informação para todos os indivíduos testados. Em relação aos anticorpos de ligação, para a dose de 25μg, após duas injeções (intervalo de 30 dias entre elas), todos participantes apresentaram níveis de anticorpos de ligação semelhantes aos níveis em pessoas que se recuperaram da COVID-19. Para a dose de 100μg, amostras de 10 indivíduos tiveram níveis de anticorpos de ligação significativamente maiores do que aqueles das pessoas recuperadas da doença. Em relação aos níveis de anticorpos neutralizantes, até o momento, há informações de apenas 4 indivíduos de cada grupo das doses de 25 e 100μg. E desses 8 participantes, todos apresentaram níveis de anticorpos neutralizantes iguais ou maiores do que os encontrados no soro de pessoas recuperadas da doença. Segundo os dados, em um modelo animal, níveis semelhantes a esses foram suficientes para proteger camundongos induzidos para a doença.

    O que esperar?

    A Moderna e o NIAID já têm autorização para a realização da Fase 2 de testes com um número maior de participantes (600) e esperam começar testes de Fase 3 já em julho, em pessoas de grupos de alto risco de contaminação, como os profissionais de saúde na linha de frente de combate nos hospitais.

    Vale ressaltar que os resultados referentes a Fase 1 da vacina mRNA-1273 foram apenas divulgados em um relatório e ainda não foram publicados em uma revista científica com revisão por pares, como se é esperado. Talvez quando os resultados de todos os participantes estiverem disponíveis, os dados sejam enviados para esse tipo de publicação.

    E como já foi dito inicialmente, as vacinas de mRNA são algo novo e promissor mas é bom notar que ainda não existem vacinas desse tipo no mundo que já tenham sido licenciadas e estejam em uso. Portanto, ainda é difícil dizer se elas terão sucesso em fases mais avançadas dos testes e na população em geral.

    Mas, com o avanço das tecnologias e aumento nos esforços direcionados para o desenvolvimento de uma vacina contra o novo coronavírus no mundo todo, esperamos que os resultados positivos cresçam cada vez mais e possamos ter uma ferramenta a mais no combate à COVID-19 o quanto antes.

    As perguntas ainda sem respostas

    Como essa doença é nova e ainda estamos descobrindo como o vírus age em nosso corpo, muitas questões ainda estão sem respostas. Aponto algumas aqui que talvez nos ajudem a questionar as informações que recebemos e o modo como lidamos com elas. 

    Em quanto tempo teremos uma vacina eficiente contra a COVID-19? Serão seguidos todos os critérios éticos durante o processo? Os anticorpos neutralizantes (imunidade) vão durar por quanto tempo? Se uma vacina for eficiente em todos os quesitos, a produção e distribuição/comercialização a nível mundial será feita de modo justo e com equidade? 

    Para saber mais

    Ewen Callaway. Coronavirus Vaccine Trials Have Delivered Their First Results – But Their Promise Is Still Unclear. Nature. 2020 May 19.  doi: 10.1038/d41586-020-01092-3.

    Feldman RA et al. mRNA vaccines against H10N8 and H7N9 influenza viruses of pandemic potential are immunogenic and well tolerated in healthy adults in phase 1 randomized clinical trials. Vaccine. 2019. doi: 10.1016/j.vaccine.2019.04.074.

    Moderna. 2020. Moderna Announces Positive Interim Phase 1 Data for its mRNA Vaccine (mRNA-1273) Against Novel Coronavirus

    Organização Mundial da Saúde (OMS), 2016, Guidelines on clinical evaluation of vaccines: regulatory expectations. WHO.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
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