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  • Vacinação, Transmissão e Variantes: o que aprendemos nesse um ano?

    Vacinação, Transmissão e Variantes: o que aprendemos nesse um ano?

    Por meses e meses, o que mais tínhamos em nossas mentes quando o assunto Pandemia vinha à tona eram perguntas e mais perguntas. Por exemplo, o vírus é mortal? Como sei que estou infectado? Há uma cura? Quanto tempo será de lockdown? Preciso usar máscara e álcool em gel? Quando vai haver uma vacina? Tem algum remédio? Como as vacinas funcionam? Quanto tempo dura a proteção gerada por elas? E as variantes? Posso me infectar e transmitir mesmo vacinado? Como acontece a transmissão?

    Mês a mês, pesquisa após pesquisa, fomos aprendendo e descobrindo um pouco mais sobre o SARS-CoV-2, a COVID-19, as variantes e as vacinas.

    Mas ainda assim, duas perguntas ressoavam no fundo de nossas mentes, nos fazendo repeti-las a cada nova descoberta: por quanto tempo a imunidade das vacinas dura e, mesmo vacinado, ainda posso infectar novas pessoas?

    Bem, logo de cara posso lhes dizer que ainda não temos certeza de quanto tempo a imunidade total das vacinas dura em nosso corpo. Temos algumas noções, vários estudos avaliando o número de anticorpos, com muitas pesquisas mostrando a redução dos anticorpos após vários meses (o que é algo totalmente normal olhando do ponto de vista imunológico), mas ainda um baixo número de artigos avaliando a resposta imune celular, isso é, a porção do nosso sistema imune que nos defende utilizando células. 

    Entretanto, quanto ao impacto das vacinas na transmissão, temos cada vez mais informações que nos auxiliam em montar um panorama geral sobre esse assunto. E é sobre isso que vamos falar aqui hoje.

    O que se sabe até o momento sobre a influência das vacinas na transmissão da COVID-19?

    Pouco tempo após as primeiras campanhas de vacinação ao redor do mundo terem começado, os primeiros estudos avaliando sua capacidade de reduzir os sintomas da COVID-19, hospitalizações e mortes eram publicados. Nessa época, muitos desses estudos chegavam a comentar sobre a possibilidade das vacinas estarem reduzindo a transmissão do SARS-CoV-2 entre as pessoas. Contudo, esses primeiros estudos não focaram em avaliar exatamente a transmissão entre as pessoas. Por causa disso, muitas dessas suposições sobre o impacto na transmissão ficavam no campo das ideias.

    Entretanto, já passou um ano de vacinação mundo afora. Assim, vários estudos foram feitos focando especificamente no impacto da vacinação na transmissão, avaliando e mostrando efeitos bem positivos. Tudo isso reafirma a necessidade do uso de vacinas (mas não exclusivamente o uso delas) para se chegar ao fim da pandemia. 

    Entre muitas coisas, esses são os principais pontos que sabemos no momento:

    • As vacinas reduzem a infecção inicial causada pelo SARS-CoV-2. Isto é, os sintomas sentidos por uma pessoa totalmente vacinada infectada tendem a ser mais leves, do que em uma pessoa não vacinada infectada;
    • O tempo levado pelo vírus para gerar uma cópia de si mesmo dentro das nossas células (chamado de tempo de replicação) é menor em pessoas totalmente vacinadas que se infectaram. Isto quando comparado com pessoas não vacinadas infectadas. Consequentemente, a quantidade de vírus no organismo (a carga viral) de uma pessoa totalmente vacinada infectada é menor;
    • Pessoas totalmente vacinadas infectadas emitem uma quantidade menor de partículas virais através de tosse, espirro ou mesmo a fala. Além disso, as partículas virais emitidas por essas pessoas têm uma infecciosidade menor. 
      • Em outras palavras, uma pessoa totalmente vacinada e que foi infectada joga para fora do seu corpo uma quantidade menor de vírus, e esses vírus têm também uma menor capacidade de infectar outra pessoa;
    • Pessoas totalmente vacinadas que foram infectadas pelo SARS-CoV-2 conseguem limpar o vírus do seu corpo mais rapidamente. Isto é, o sistema imune desses indivíduos é mais eficiente em matar os vírus e as células infectadas por ele, em um intervalo de tempo menor.

    Ok, em um grande resumo, o que isso quer dizer? 

    Todos esses dados nos mostram que vacinas foram e são capazes de reduzir o tempo que o vírus fica dentro de nosso corpo, a partir de várias formas que é REDUZINDO:

    • a multiplicação do vírus;
    • a sua emissão;
    • o tempo que o vírus fica dentro do corpo;

    Assim sendo, de forma indireta, é possível dizer que as vacinas impactam e reduzem sim a transmissão do SARS-CoV-2 em pessoas totalmente vacinadas.

    E se você chegou aqui e ainda tem dúvidas sobre isso, vamos pensar o seguinte: 

    “Se uma pessoa com COVID-19 têm menos vírus dentro do corpo (por esse não estar conseguindo se multiplicar rapidamente), tal pessoa emite menos vírus para o ambiente ao seu redor (por tossir e espirrar menos, por exemplo) e fica menos tempo com o vírus dentro do corpo (por seu sistema imune estar matando o vírus e as células infectadas mais rápido). Assim, essa pessoa tem uma chance menor de transmitir o vírus para outros indivíduos, quando comparada com um indivíduo que se infectou sem estar vacinado.”

    Aqui é o momento em que faço algumas ressalvas. Note bem a palavra que foi usada anteriormente: indivíduos vacinados têm uma chance MENOR de transmitir para outras pessoas. Isso não quer dizer que, se você foi vacinado com duas ou três doses, você não terá chance alguma de pegar e transmitir o SARS-CoV-2. 

    Além disso, uma segunda ressalva que devo fazer aqui é sobre esses mesmos estudos que citei: as pesquisas mais completas avaliaram a transmissão de pessoa para pessoa em contatos domiciliares, e não em grandes ambientes abertos ou com grandes aglomerações. Para essas situações, novamente, ainda é estritamente necessário que nós continuemos a utilizar medidas não farmacológicas, como o uso de máscaras e de distanciamento social, em ambientes fechados ou com grandes quantidade de pessoas. 

    O grande ponto da discussão aqui é: uma pessoa com o esquema vacinal completo tem uma menor PROBABILIDADE de conseguir transmitir o vírus para outra pessoa. As vacinas não param a transmissão, mas sim reduzem esta.

    Além disso, como tem se falado muito, as vacinas também garantem outras vantagens como:

    • A redução da chance de desenvolver doença grave, hospitalização e morte por COVID-19;
    • A intensidade dos sintomas sentidos após o fim da COVID-19 de longa duração (que também têm sido chamadas de Sequelas Pós-COVID)
    • E também mas não menos importante, a frequência que variantes de preocupação surgem;

    Ué, mas ouvi dizer que as vacinas ajudam no surgimento de novas variantes

    Pois bem, já vou dar a resposta mais simples, curta e direta para esse tipo de boato que foi veiculado recentemente: Não. Vacinas não ajudam no surgimento de novas variantes. Ponto. 

    Agora que já deixamos isso certo, vem entender melhor comigo o motivo.

    Durante uma infecção, seja por um vírus, bactéria, fungo, ou qualquer outro parasita, nosso corpo trava um cabo de guerra: nosso sistema imune contra o parasita em questão (no caso, o SARS-CoV-2). Para fugir das diversas defesas que o sistema imune possui, os vírus possuem utilizam de sua maior arma: sua alta capacidade de mutação. 

    A mutação é nada menos que uma troca em alguma das bases nitrogenadas (as famosas “letrinhas”) no material genético, durante o processo de replicação. Entretanto, esse processo é caro, pois somente poucas mutações serão benéficas, enquanto que a grande maioria das mutações que surgirem irão ser, de alguma forma, ruins para o organismo em questão (no caso, o vírus). 

    O modo de se contornar esse problema é relativamente simples: infectando mais pessoas, ou, em outras palavras, se transmitindo mais. Quanto mais pessoas são infectadas (alta transmissibilidade), mais vírus são mutados, e maior é a chance de aparecer uma mutação que seja boa para ele (e, consequentemente, ruim para nós). Quando uma mutação boa aparece, esse vírus consegue se transmitir mais fácil, infectar mais pessoas, ganhar mais mutações, e isso acaba se tornando um ciclo eterno. 

    Dessa forma, surge a pergunta: como reduzir o número de mutações?

    E a resposta mais simples (que, a propósito, já temos falado há bastante tempo) é: reduzindo a transmissão do vírus entre as pessoas. Para isso, precisamos utilizar tanto medidas farmacológicas quanto não farmacológicas. Por isso a importância do uso combinado de máscaras, álcool em gel, distanciamento social E vacinas. As três primeiras medidas vão atuar logo no começo de uma cascata de eventos (citada logo mais), enquanto a vacina atua a partir do meio dela. A seguir exemplificamos como todas essas medidas auxiliam na redução da transmissão e, consequentemente, reduzem o surgimento de novas variantes. 

    Vacinação em massa e uso de medidas não farmacológicas → Menos pessoas se infectando → pessoas que foram infectadas tendo um tempo de infecção menor → Com o tempo de infecção menor, o vírus fica menos tempo no corpo do indivíduo  → Quanto menor o tempo que o vírus fica no corpo do indivíduo, menor a quantidade de vírus se multiplicando ali → Quanto menor a quantidade de vírus se multiplicando, menor a quantidade de mutações aparecendo → Quanto menor a quantidade de mutações aparecendo, menor a chance de surgir uma variante mais transmissível.

    Finalizando

    O ponto central aqui é mostrar que somente uma medida (como a vacinação de parte da população), não será o suficiente para acabarmos com a pandemia. Se quisermos que ela realmente chegue ao fim, precisamos todos fazer um esforço em conjunto para reduzir a transmissão do vírus, com a vacinação de TODA a população global, aliado ao uso de máscara, distanciamento social e – quando necessário – quarentena. Somente assim seremos capazes de diminuir o surgimento de novas variantes e superar a pandemia de uma vez por todas.

    Para saber mais:

    Outros Materiais:

    • Mellanie Fontes-Dutra

    Vacinas impactam na transmissão;

    Vacinas podem produzir variantes mais resistentes? Não!

    Dados de Harvard (NBA) com tempo menor de transmissão e recuperação mais rápida da infecção entre vacinados x não vacinados

    Vacinação reduz transmissão de delta e individuos vacinados transmitem menos

    Totalmente vacinados contrair e transmitir COVID-19 em casa, mas em taxas MUITO MENORES do que indivíduos não-vacinados e as vacinas reduzem o risco de infecção pela variante #Delta e acelera a depuração viral

    Dados REACT-1 Imperial College London proteção vacinados (delta) e possivel redução da transmissão em vacinados (medidas seguem sendo necessárias enquanto transmissão for elevada).

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Mutações virais: a dança dos aminoácidos

    Texto de Gildo Girotto Júnior

    Você deve estar lendo, ouvindo ou assistindo diferentes notícias sobre mutações e as variantes do coronavírus, e, também, sobre novos riscos que elas podem gerar, certo? No texto anterior (que você pode ler clicando aqui) falamos um pouco da dinâmica viral e agora vamos falar de outros detalhes dessa coisa toda.

    O que já sabemos

    Os vírus estão sujeitos aos mesmos mecanismos evolutivos que envolvem todos os seres vivos, inclusive nós, humanos. Essas mutações podem, por meio de modificações estruturais e químicas, alterar a forma como eles infectam as células. Algumas dessas alterações têm grande impacto na forma como os vírus se disseminam na população humana e como nosso organismo interage e reage na presença de vírus [1]. Neste texto vamos falar sobre como algumas alterações já identificadas promovem a maior interação do vírus com nossas células.

    Sabemos que as mutações dependem de mecanismos de alteração genética por meio dos quais sequências de genes distintas daquelas do vírus de referência são disseminadas na população dos parasitas, podendo levar a novas variantes [2]. Isso ocorre com o processo de cópia do material genético, RNA ou DNA, e torna a evolução possível. São essas mutações no material genético que irão, eventualmente, desencadear alterações nas estruturas e composição dos vírus.

    Isto quer dizer que nem toda alteração genética desencadeia uma alteração estrutural ou melhora na adaptação: se não trouxerem vantagens para a sobrevivência do vírus acabam por ser desaparecerem da população; se auxiliarem o parasita, por proporcionarem adaptações ao ambiente e são disseminadas em novas cópias. Podemos ressaltar também que a seleção natural e a junção de processos que levam a variações genéticas são os principais responsáveis por definir se uma mutação ocorrerá e se permanecerá naquela população.[3]

    Um baile a dois: o sistema chave e fechadura

    Na capa proteica do coronavírus há uma proteína denominada Spike (Spike é uma palavra do inglês que significa espinho) ou, simplesmente, S. Essa proteína interage com as nossas células abrindo caminho para que o material genético do vírus consiga penetrar. Precisamos, portanto, entender porque a mudança nessa proteína ocorreria e como identificá-la, bioquimicamente falando.  

    Observemos então o caso das variantes do coronavírus, falando especificamente da interação da proteína S com o receptor celular, denominado ACE2. Podemos pensar que quanto maior a atração entre proteína e receptor, mais fácil será do vírus nos contagiar, despejando seu material genético em nossas células.

    A conexão entre a proteína e a célula pode ser associada à conhecida analogia chave e fechadura que ocorre entre enzimas e substratos, uma vez que o processo de interação química é semelhante [4]. É como se partes da proteína fossem chaves que se encaixam bem nas fechaduras de nossas células.

    Mas, no caso de mutações…

    Quando ocorrem mutações, esses encaixes podem ser melhorados se as interações entre as moléculas de S e do receptor ACE2 se tornarem mais fortes. Vamos considerar este ponto para análise.

    As proteínas são formadas pela união de um conjunto de moléculas que podem se repetir diversas vezes. É como se pegássemos 22 peças diferentes, disponíveis quase que infinitamente no ambiente, e as combinássemos de modo a montar uma grande cadeia. Essas peças são as moléculas de aminoácidos. Por diferentes razões, deste fatores como a temperatura, acidez e ainda fatores que não são muito bem elucidados, essas combinações podem variar. O que reconhecemos nos estudos é a possibilidade de eliminação de moléculas ou substituição de alguns aminoácidos por outros. Essas mudanças geram proteínas diferentes, sendo uma das razões para termos as variantes virais.

    Assim, como a proteína S é atraída por e atrai nosso receptor ACE2, para uma determinada composição a interação pode aumentar (pela própria natureza das moléculas) e também devido às posições e estruturas dos novos aminoácidos, que podem se ajustar mais adequadamente estabelecendo um contato mais intenso com o receptor. Então, quanto maior essa interação, maior a quantidade de vírus que consegue efetivamente depositar seu RNA e, como apontam alguns estudos [5][6], o maior número de vírus que efetivamente entram em nossas células pode ser responsável pelo agravamento da doença, pois mais células serão comprometidas e mais órgãos poderão ser afetados.

    A música está mudando

    Em janeiro de 2021, pesquisadores da faculdade de medicina de Ribeirão Preto (FMRP), por meio de um conjunto de análises e simulações computacionais, pesquisaram especificamente como a mudança de um dos aminoácidos da proteína S poderia explicar a maior taxa de contágio da mutação viral identificada em setembro de 2020 e conhecida como variante alfa [7]. O que se sabia por meio de estudos anteriores é que entre o vírus original de referência, identificado em 2019, e essa mutação havia uma troca de um aminoácido identificada por N501Y. Mas o que isso significa?

    Essas letras e números se referem a qual aminoácido estamos falando e a posição em que ele se encontra na estrutura da proteína. Assim, o N se refere a um aminoácido chamado asparagina, o número 501, indica sua posição e o Y se refere a um aminoácido chamado tirosina que substituirá o primeiro. Isto é, ao trocar uma asparagina por uma tirosina na posição 501 temos o que chamamos de N501Y [8]. Por fim, essa troca de moléculas gera uma interação mais forte junto ao receptor de nossas células.

    Vamos entender melhor com a Figura 1, que representar as interações antes e depois da mudança dos aminoácidos?
    Figura 1: Alteração na estrutura química de aminoácidos do Sars-Cov-2
    Gian Carlo Guadagnin/Sala Cinco
    Fonte: Universidade de São Paulo [7]

     Outras variantes também já tiveram as interações entre a proteína e o receptor identificadas. Por exemplo, a variante Delta tem mudanças nos nos aminoácidos L452R e T478K. Já sabemos o que esses códigos significam: na L452R a primeira letra determina o aminoácido Leucina (L), que será substituído na posição 452 pelo aminoácido Arginina (R); no caso da T478K temos, de forma semelhante, a substituição de uma Treonina (T), na posição 478 por uma Lisina (K), o que faz com que o vírus consiga interagir melhor com as células e uma das consequências é a maior transmissibilidade comparada com outras variantes. 

    Sem errar o passo 

    Um fator que é apontado pela ocorrência de mutações é a alta taxa de transmissão do vírus, uma vez que, quanto mais vírus circula, maior a quantidade de replicações e maiores são as chances de alteração [5][6]. Dessa maneira, a dificuldade de controle dos casos de contaminação podem levar a novas adaptações do vírus tornando-o mais transmissível. 

    Considerando que ainda existem muitas pessoas que não estão imunizadas, o vírus tem maiores possibilidades de se reproduzir, aumentando as chances de ocorrerem alterações no material genético. Assim, com a taxa de vacinação ainda baixa, temos dois problemas. Em primeiro lugar, ainda que as vacinas tenham se mostrado eficientes frente às variantes [9], muitas pessoas não estão imunizadas e as variantes podem gerar casos mais graves da doença. Além disso, em segundo lugar, mesmo vacinados ainda podemos transmitir a doença. Dessa forma, algumas medidas, como manter o distanciamento e o uso de máscaras, devem continuar por algum tempo.

    Por fim, ter consciência disso e manter essas medidas nos levará ao enfrentamento mais rápido desse cenário de pandemia diminuindo as possibilidades de novos surtos da doença. 

    Trabalharam nesta edição:

    Revisão: Mariana Bercht Ruy.

    Arte e diagramação: Gian Carlo Guadagnin.

    Capa: Stephanny dos Santos Nobre.

    Colaborações: Gian Carlo Guadagnin e Stephanny dos Santos Nobre.

    Para saber mais:

    [1] The Virus: How do mutations cause viral evolution? YALE School of medicine

    [2] O que são mutações, linhagens e cepas, Fiocruz.

    [3] FLEISCHMANN, WR Viral genetics, In Baron (Ed), Medical microbiology (4 ed, cap. 43), Galveston, TX: University of Texas Medical Branch at Galveston.

    [4]  NISHIOKA, S Seleção de um anticorpo de domínio único e seu potencial para o tratamento e prevenção da COVID-19, Una SUS

    [5] MOHAMMAD, A et al (2021) Higher binding affinity of furin for SARS-CoV-2 spike (S) protein D614G mutant could be associated with higher SARS-CoV-2 infectivity. International Journal of Infectious Diseases, v103, p 611-616

    [6] Variante Delta: as 5 mutações que tornam coronavírus mais contagioso e preocupante BBC (2021)

    [7] Estudo indica um dos fatores que tornam nova variante do coronavírus mais contagiosa. USP.

    [8] SANTOS, JC; PASSOS, GA (2020) The high infectivity of SARS-CoV-2 B.1.1.7 is associated with increased interaction force between Spike-ACE2 caused by the viral N501Y mutation bioRxiv preprint

    [9] BERNAL, JL et al (2021) Effectiveness of Covid-19 Vaccines against the B.1.617.2 (Delta) Variant The New England Journal of Medicine.

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, houve revisão por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

    Editorial

  • Sobre a vacinação e abertura prematura: um celeiro para novos casos e variantes

    É tempo de esperança. A esperança da chegada de um dia melhor, sem a Covid-19 em nosso mundo, está quase na porta. Grande parte desta crescente esperança deposita-se na vacinação da população mundial.

    Cada vez mais estamos vendo manchetes em São Paulo, no Brasil e em vários outros lugares do mundo sobre a reabertura de locais, visto o número cada vez maior de pessoas se vacinando contra a Covid-19. As pessoas anseiam em se vacinar para estarem protegidas, poderem sair de casa, rever parentes, amigos, colegas, viajar, ir a bares, cinemas e museus. 

    Mas toda essa ansiedade para a volta ao “normal” também gera problemas. O principal deles é a ideia da rápida retomada das atividades presenciais, colocando de lado as medidas de distanciamento social, uso de máscara e quarentena.  

    Não é de hoje que os cientistas, autoridades sanitárias e divulgadores científicos vêm falando que a vacinação, única e exclusivamente, não irá resolver a pandemia. No melhor dos cenários, com pelo menos 75% da população vacinada e aliada a outras medidas de contenção, as vacinas podem diminuir muitos os casos de Covid-19 e permitir uma retomada lenta à “normalidade”. No pior dos cenários, uma vacinação com rápida abertura pode funcionar como um impulso para o surgimento de novas variantes, colocando em risco as pesquisas dos últimos 17 meses para o desenvolvimento de uma vacina eficaz.

    “MAS ENTÃO, SE MESMO VACINADO DEVO FICAR EM CASA, QUANDO VOU PODER SAIR?”

    Essa é a pergunta de ouro que todos estão se fazendo. Teoricamente, o ideal é estar com pelo menos 75% da população de um país vacinada. Tomando o Brasil como exemplo, temos uma população de aproximadamente 212 milhões de habitantes. Assim, poderia haver uma reabertura segura do país quando no mínimo 159 milhões de brasileiros estivessem completamente vacinados (que é o equivalente a população maior de 18 anos).

    E completamente vacinado significa duas semanas após a segunda dose (ou um mês depois da dose única, no caso da Janssen) no braço.

    Não é só com uma dose. Assim como não é no intervalo de doses. Ademais, não é com ambas as doses. 

    Novamente, o esquema completo é: duas semanas após ter recebido a segunda dose. 

    Contudo, não é isso que temos visto em alguns lugares. Tomando São Paulo como exemplo, tem se visto vários anúncios falando sobre a reabertura total do comércio e outros estabelecimentos, divulgando uma retomada à “normalidade” após o término da vacinação da população adulta do estado em 16/08 (última segunda-feira). Mas como comentado à exaustão em um outro texto recente aqui do Especial, falar em “população vacinada” quando boa parte dessa recebeu só a primeira dose não é realmente verdade. E nem correto. 

    É nessa falsa sensação de segurança que os problemas começam a surgir.

    VAMOS COMEÇAR OLHANDO OUTROS PAÍSES

    Reino Unido:

    com 68% da população tendo recebido pelo menos a primeira dose da vacina, e 52% terem recebido as duas, e com um relaxamento de quase todas as medidas de restrição, os britânicos voltam a ver uma subida rápida dos casos de infecção da Covid-19 após a chegada da variante Delta.

    Holanda:

    em 26 de junho promoveu a reabertura total do comércio, e tirou a obrigatoriedade do uso de máscaras. Duas semanas depois, revogou ambas as medidas e voltou a restringir as atividades quando os casos de Covid-19 explodiram com a variante Delta.

    Estados Unidos:

    com quase 50% da população vacinadas com as duas doses, o CDC (Centro de Controle de Doenças) suspendeu a necessidade do uso de máscaras e permitiu a reabertura de bares e restaurantes em todo o país, mesmo com estados em que a taxa de vacinação completa ficava por volta dos 35%. Dito e feito: os casos voltaram a aumentar, variante delta tomou o país, e no final de julho o CDC recorreu a decisão tomada.

    Vários outros países, com altos índices de vacinação completa (+50%), estão vendo os casos voltarem a subir, mesmo com boa parte da população vacinada: Canadá, Bélgica, Dinamarca, França, Alemanha, Itália e mesmo Israel, que foi modelo de vacinação há alguns meses atrás.

    Em grande parte deles, a história foi parecida: com um grande número de pessoas se vacinando, as autoridades começaram a diminuir e enfraquecer as medidas de restrição, permitindo que as pessoas circulassem mais, estabelecimentos ficassem abertos sem restrição de tempo ou lotação e retirando a obrigatoriedade do uso de máscaras. E os resultados também são bem parecidos: uma explosão de novos número de casos, principalmente, entre os não vacinados. E isto  resultou em novos fechamentos e retomada das restrições. 

    Contudo, agora há uma questão nova que tem dificultado o controle da pandemia, mesmo nesses países com altos índices de vacinação: a variante Delta. 

    “O QUE QUE TEM DE TÃO ESPECIAL NESSA VARIANTE DELTA QUE OS JORNAIS NÃO PARAM DE FALAR? ANTIGAMENTE NÃO ERA A GAMA (OU P1) A PROBLEMÁTICA?”

    Pois é, a variante Gama AINDA é problemática. Contudo, há poucos meses surgiu a variante Delta na Índia, que vem tomando conta do cenário viral em todo o globo, já sendo a mais prevalente em boa parte do mundo. No Brasil, a variante Gama ainda é a mais prevalente e os pesquisadores têm tentado entender o motivo do avanço da variante Delta estar sendo mais lento aqui. 

    Veja nas duas figuras abaixo como a Delta está presente em vários países nas últimas duas semanas (Figura 1) e em São Paulo como a predominância das variantes foi mudando ao longo do tempo (Figura 2)

    Figura 1: Variantes predominantes em cada país, analisada a partir de sequenciamento genético nas últimas duas semanas. Isto pode não representar completamente a situação do país, em função de apenas uma fração dos casos serem sequenciados. Fonte da Imagem: CoVariants.org e GISAID.
    Figura 2: variantes relevantes em São Paulo ao longo dos meses. Fonte da imagem: Fiocruz (disponível em: http://www.genomahcov.fiocruz.br/dashboard/)

    Entretanto, esse não é o ponto deste texto.

    Todo o problema ao redor da variante Delta é a sua alta capacidade de transmissão. Além disso, soma-se a várias mutações que podem levar a um escape da imunidade. Mas para tranquilizar os corações: a proteção gerada pelas vacinas ainda permanece contra essa variante, assim como foi observado para outras. No entanto, há sim uma redução na quantidade de anticorpos neutralizantes.

    De acordo com alguns artigos recentes, o que se sabe até agora é que pessoas que tiveram uma infecção natural de Covid-19 com a variante Gama (de Manaus) ou a variante Beta (da África do Sul) têm uma fraca proteção contra a variante Delta. Em outras palavras, os anticorpos gerados pela infecção natural dessas variantes pouco protegem. Ademais, não garantem que, se essas pessoas não se vacinarem e pegarem a variante Delta, elas terão uma doença menos severa ou leve caso se reinfectem. 

    Claro que aqui precisamos fazer uma pequena ressalva: os pesquisadores olharam somente para uma parte da resposta imune, que são os anticorpos. Nosso sistema imune tem diversas outras ferramentas capazes de nos proteger, como a resposta imune celular. Pouco se sabe se esse escape do vírus também afeta os linfócitos, principais atores da resposta celular.

    Mas aqui também fica nosso apelo: NÃO caia nessa de “tive Covid-19 então não preciso me vacinar”.

    TODOS precisam ser vacinados.

    Muito provavelmente se você teve a Covid-19 no passado, foi com alguma das antigas variantes que não protegem (ou protegem fracamente) contra essa nova variante Delta. Você PODE sim ter Covid-19 novamente, tanto a forma leve com grave e transmitir para parentes, conhecidos e amigos.

    Voltando aos estudos, os pesquisadores também viram uma redução da efetividade das vacinas (isso é, a eficiência em reduzir os casos de Covid-19 com sintomas) e da eficiência dos anticorpos neutralizantes gerados em pessoas vacinadas. Entretanto, essa redução é parecida com a que foi vista em outras variantes (Alfa, Beta e Gama). 

    Trocando em miúdos

    Colocando em termos numéricos para exemplificar: a efetividade da vacina da Pfizer (com 2 doses) contra a variante Alfa foi de 93%, enquanto  contra a Variante Delta foi de 88%. Isso é, a cada 100 pessoas que tomaram ambas as doses da vacina da Pfizer, somente 7 (=100-93) tiveram sintomas de Covid-19 após a infecção pela variante Alfa, e somente 12 (=100-88) tiveram sintomas de Covid-19 pela variante Delta. 

    Já para a vacina da AstraZeneca, a efetividade das duas doses contra a variante Alfa foi de 74% e contra a variante Delta foi de 67%. Sim, um pouco menor do que a Pfizer. Mas isso não quer dizer que quem tomou a vacina da AstraZeneca tem mais riscos de ter Covid-19 e morrer. Esses números são só relativos aos casos sintomáticos, aqueles que a pessoa desenvolve um sintoma da doença. Ambas as vacinas continuam com uma efetividade bem alta contra casos graves. 

    Sim, são boas notícias, mas…

    Apesar dessas boas notícias das vacinas continuarem nos protegendo, nem tudo é um mar de rosas. Esses valores que dissemos são referentes a efetividade de AMBAS as doses de vacinas em uma pessoa. Os pesquisadores viram que em pessoas que só tomaram a primeira dose (seja de Pfizer ou AstraZeneca) a eficiência das vacinas era muitíssimo baixa. Em outras palavras: somente a primeira dose NÃO PROTEGE uma pessoa. Esse indivíduo NÃO TÊM uma chance menor de contrair a forma leve da Covid-19 e assim, pode morrer, além é claro de poder transmitir para outras pessoas. 

    Essa redução da efetividade das vacinas indicou aos cientistas que mesmo com a variante Delta não escapando totalmente da proteção garantida pelos anticorpos após a vacinação, é bem preocupante esse cenário em que surgem novas variantes que conseguem escapar, por exemplo, de uma imunidade “natural”, como foi visto no caso das pessoas que tiveram Covid-19 naturalmente com a variante Beta e Gama, e que produzem anticorpos pouco eficiente contra a variante Delta.

    Em suma…

    Sabemos que a variante Delta é muito mais transmissível, escapa da imunidade natural causada por outras variantes, e reduz a eficácia das vacinas (mesmo que essas ainda nos protejam). 

    Sabemos também que muitos países com vacinações MUITO mais avançadas do que as nossas reabriram. Isto é, voltaram à “normalidade” e tiveram que fechar os estabelecimentos novamente. Mas porquê? Ora, tudo porque a variante Delta chegou nesses países e NENHUM deles havia atingido ainda uma imunidade coletiva. 

    Vimos o número de casos e internações aumentando nesses países, com a grande maioria das pessoas não vacinadas sendo os infectados da vez. 

    E mesmo assim, com todos esses exemplos do que não funcionou, ouvimos pessoas em nosso país, estado e/ou cidade falando sobre a retomada à normalidade e abertura dos estabelecimentos. Isso com somente 20% da população inteiramente vacinada (isto é, com duas doses). Dessa forma, a mensagem final que queremos passar é: continuem se cuidando. Tomem as vacinas (ambas as doses!!!) se na sua cidade já é possível. E principalmente, continuem usando máscaras e evitando aglomerações. Pois no caminho que estamos, o futuro que nos aguarda não é nada bom. 

    Para Saber Mais

    Reportagens

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    O que acontecerá no Brasil quando a variante delta se espalhar pelo país inteiro?

    Países com vacinação acelerada veem aumento de casos de Covid e queda de mortes.

    Se reabertura em SP virar vale-tudo, pode haver repique de Covid, dizem especialistas

    Entenda a alta de casos de Covid-19 em países com vacinação avançada.

    Israel restringe viagens e indica novo lockdown para conter casos de  covid-19. Covid: os primeiros resultados da reabertura em seis países.

    Artigos

    Liu, C, Ginn, HM, Dejnirattisai, W, Supasa, P, Wang, B, Tuekprakhon, A, … & Screaton, GR (2021) Reduced neutralization of SARS-CoV-2 B. 1.617 by vaccine and convalescent serum Cell

    Planas, D, Veyer, D, Baidaliuk, A, Staropoli, I, Guivel-Benhassine, F, Rajah, M M, … & Schwartz, O (2021) Reduced sensitivity of SARS-CoV-2 variant Delta to antibody neutralization Nature, 1-7. 

    Lopez Bernal, J, Andrews, N, Gower, C, Gallagher, E, Simmons, R, Thelwall, S, … & Ramsay, M (2021) Effectiveness of Covid-19 vaccines against the B. 1.617. 2 (delta) variant New England Journal of Medicine.

    Este texto foi escrito com exclusividade para o Especial Covid-19

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

    Editorial

  • As vacinas Astrazeneca e Coronavac nos protegem contra a variante Alfa? [Spoiler: sim]

    Alfa Texto escrito por Mariene Amorim, Maurílio Bonora Junior e José Luiz Proença-Modena

    Cá estamos nós de novo para falar de variantes (especificamente a Alfa) e de mais um estudo que saiu em pré-print recentemente, realizado por pesquisadores aqui da Unicamp. [vamos lançar um spoiler aqui para já ler o post inteiro sem alarmismos, ok?]. Esse estudo analisou a capacidade da variante Alfa (conhecida também por B.1.1.7, do Reino Unido) em se transmitir em ambientes fechados. Todavia, a análise levou em conta, também, o fato de a população estudada ter sido vacinada com a primeira dose de Astrazeneca ou as duas doses de Coronavac. 

    A partir dos resultados, apareceram também algumas evidências que a variante Alfa do SARS-CoV-2 é capaz de infectar e ser transmitida por pessoas imunizadas com a primeira dose da vacina da Astrazeneca e ambas as doses da CoronaVac.

    “Quer dizer que não valeu de nada eu ter tomado a vacina?”

    CALMA! Como diria Chapolin Colorado “Não priemos cânico”! Isso não quer dizer que se você tomou alguma dessas duas você está desprotegido. Vem conosco entender um pouco melhor essa pesquisa.

    Primeiro de tudo, precisamos entender que a infecção e a transmissão por indivíduos vacinados é algo comum já mostrado para muitas das vacinas corriqueiramente usadas em humanos. Além disso, isso não quer dizer que a vacina tenha baixa eficácia ou que não proteja contra o desenvolvimento da doença. De fato, o estudo mostra que a taxa de internação e de manifestações clínicas graves foi bem abaixo do esperado para pessoas dessa faixa de idade infectados com a variante alfa do SARS-CoV-2.

    Ademais, nesse estudo os autores mostraram que a detecção de SARS-CoV-2 e a presença de sintomas não foi correlacionada com os níveis de anticorpos neutralizantes, aqueles capazes de inativar o vírus e fazer com que ele não seja mais capaz de infectar uma nova célula.

    Isto é  muito relevante em tempos em que vemos muitas pessoas fazendo testes posteriormente às vacinas para averiguar se estão com anticorpos neutralizantes ou não! Esta pesquisa reforça cientificamente que este teste não faz sentido!

    Isso provavelmente se dá em consequência da complexidade da resposta imune protetora induzida pelas vacinas. Além disso,  precisamos entender que o nosso sistema imune é um conjunto de ferramentas muito diferentes, específicas e redundantes. Isto é, nós temos vários mecanismos e modos de se combater um patógeno, seja este um vírus, uma bactéria ou um fungo. Um desses mecanismos são os anticorpos, que tanto falamos no último ano. E mesmo os anticorpos não possuem somente a função de neutralização. Ou seja, eles podem agir de várias outras formas. Além disso, como disse, o sistema imune possui vários outros modos de combater ameaças, assim como células especializadas em combater vírus como o SARS-CoV-2 (vocês podem conferir isso aqui e aqui).

    Um segundo ponto que é necessário dizer aqui é: esses baixos níveis de anticorpos neutralizantes para algumas variantes de SARS-CoV-2 em pessoas que receberam algumas vacinas contra COVID-19 não é uma notícia nova. Cada vez mais temos visto publicações que apontam para dados como estes. Aqui no próprio Especial Covid-19 já escrevemos alguns textos falando sobre pesquisas daqui da Unicamp que apontavam para dados assim (aqui e aqui). E notem que usamos a palavra redução e não ausência de eficácia. Dessa forma, isso quer dizer que nós ainda geramos anticorpos e estes ainda são capazes de nos proteger. A diferença é que no caso dessas novas variantes, a quantidade que vemos não é tão alta quanto nos testes. Por quê? Justamente por não haver essas variantes durante a época dos testes, ou elas estarem começando a aparecer na população.

    Tá, mas e o artigo? O que descobriram então?

    Falando da pesquisa em si, os autores estudaram a dinâmica de transmissão de SARS-CoV-2 em duas populações de indivíduos vacinados e avaliaram se os níveis de anticorpos neutralizantes poderiam se correlacionar com a ausência de infecção ou da presença de sintomas clínicos. E eles observaram que não. Na verdade as maiores quantidades de anticorpos neutralizantes foram observadas em indivíduos sintomáticos. Tá, mas então estamos perdidos? NÃO. Calma lá….

    Os autores descobriram que apesar da variante alfa infectar e ser transmitida por indivíduos vacinados, a proteção contra a forma severa da Covid-19 e a chance de morte permanece semelhante com o que foi visto nos testes para a CoronaVac e Astrazeneca.

    Como assim?

    O fato dos indivíduos vacinados sintomáticos terem maiores níveis de anticorpos neutralizantes contra a variante alfa de SARS-CoV-2 do que os indivíduos vacinados assintomáticos ou não infectados, indicam que alguma “outra coisa” na resposta imune que nos mantém protegidos. O quê poderia ser? Possivelmente a resposta imune celular, como já comentada e explicada em outros textos.

    Um ponto interessante que os pesquisadores observaram, foi que a quantidade de anticorpos que a pessoa possui não está diretamente relacionada com a possibilidade de desenvolver sintomas. Pessoas com muitos anticorpos podem ou não ter sintomas, assim como pessoas com menos anticorpos também podem ou não desenvolver sintomas. Ou seja, existem outros fatores envolvidos na resposta imune que cada corpo vai gerar. 

    Dessa forma, os cientistas viram que a quantidade de anticorpos no sangue não importava caso quisessem prever se uma pessoa, que pegar a variante Alfa da Covid-19, teria uma doença mais leve ou mais branda. A lógica por trás disso é que usualmente pode-se pensar que as pessoas com maiores níveis de anticorpos deveriam ter uma doença mais leve. No entanto, não é bem assim que acontece sempre e, neste caso, foi justamente o oposto do observado.

    Mas pode isso, em nosso corpo (e na ciência?)

    Sim! A ciência é dinâmica e estamos sempre aprendendo mais e, quando necessário, revendo conhecimentos que produzimos ao longo do tempo. Dessa forma, embora seja comum pensar que pessoas com maiores níveis de anticorpos tenham a doença mais leve ou assintomática, foi observado que o oposto também pode acontecer. Ou seja, indivíduos com níveis mais baixos de anticorpos foram assintomáticos, enquanto alguns com altos níveis de anticorpos, desenvolveram sintomas.

    Isso nos mostra que, mesmo compreendendo muito sobre nosso corpo e seu funcionamento, sempre há mais para entender e pesquisar. A COVID-19 têm nos mostrado isso bastante e, mais do que questionar a ciência, ela nos demonstra exatamente como a ciência funciona: sempre buscando encontrar respostas para os fenômenos naturais e sociais de nossos tempos…

    Entretanto, é necessário lembrar – novamente – que mesmo com um menor nível de anticorpos contra a variante Alfa, a chance de desenvolver Covid-19 severa não foi modificada e as vacinas continuam protegendo as pessoas contra essa forma da doença, e a morte na grande maioria dos casos, tal como indicavam os testes clínicos (fase 3 dos testes).

    Os dois surtos ocorreram em locais parcialmente restritos, onde a maioria das pessoas tinham idade avançada!

    Em março de 2021, a Vigilância Epidemiológica de Campinas começou a investigação de dois surtos, um em um convento e outro em um lar de idosos, em parceria com o LEVE, do Instituto de Biologia da Unicamp. Foram coletadas amostras de todos, incluindo moradores e funcionários, sendo um total de 26 pessoas do convento e 52 pessoas do lar de idosos. No convento, 14 pessoas testaram positivo para SARS-CoV-2, e já haviam recebido a primeira dose da vacina AstraZeneca. Enquanto no lar de idosos, 22 pessoas que já haviam recebido duas doses da vacina CoronaVac testaram positivo.

    A média de idade dessas pessoas variou de 73 (convento) a 77 (lar de idosos) anos. Foi possível, por meio de sequenciamento do genoma do vírus na amostra de swab de algumas dessas pessoas, detectar a variante Alfa. Nesses dois surtos, 12 pessoas tiveram sintomas leves, enquanto 26 pessoas foram assintomáticas. Felizmente, o nível de gravidade foi semelhante ao que já havia sido descrito nos estudos das vacinas. São informações importantes para todos nós, que estamos preocupados com a disseminação de variantes pelo mundo e pelo Brasil. 

    Este caso do surto, analisado via sequenciamento genômico, é importante exatamente por dois motivos. Em primeiro lugar, por conseguirmos rastrear as variantes que estão circulando em nosso país. Em segundo lugar, pelo modo como as vacinas respondem às variantes – um estudo que o mundo inteiro está fazendo!

    Tá, mas porque tão falando tanto dessa variante Alfa?

    Muitos dos estudos recentes avaliando a efetividade das vacinas vêm focando no impacto das variantes na imunidade justamente pelo fato delas poderem escapar da nossa imunidade. A variante Alfa foi uma das primeiras a aparecer e rapidamente tomar conta de vários países. É nesse contexto que se divide as variantes em duas categorias: as VOI ou Variantes de Interesse (Variants of Interest) e as VOCs ou Variantes de Preocupação (Variants of Concern). 

    Finalmente,

    A mensagem deste trabalho é mostrar que apesar das novas variantes (especialmente a variante Alfa, observada no trabalho) serem capazes de escapar do efeito neutralizante de parte dos anticorpos induzidos pelas vacinas, podendo nos infectar e serem transmitidas para outras pessoas, esta resposta imune ainda é capaz de nos proteger contra a forma grave da Covid-19.

    Entretanto, não é só a vacina que vai nos salvar. Assim como surgiram variantes que escapam da proteção conferida pelos anticorpos, em um cenário em que as campanhas de vacinação são lentas, as pessoas não fazem distanciamento social e não usam máscaras, a chance para o aparecimento de uma variante que pode escapar TOTALMENTE da proteção das vacinas é significativa. Atualmente as variantes Gamma (P.1), predominante no Brasil, e a Delta, têm gerado preocupação pelo tanto de mutações acumuladas, e capacidade maior de transmissão!

    Por isso, seguimos insistindo no investimento científico, para detectar as variantes, controlá-las e perceber a efetividade das vacinas nestes casos! A ciência brasileira segue buscando meios de se manter produzindo conhecimento técnico e científico de ponta, para combater a pandemia da COVID-19.

    Por fim, a mensagem que fica é que precisamos continuar nos protegendo, seguindo as medidas recomendadas pelos órgãos competentes, mesmo que nós e pessoas do nosso círculo já estejam vacinadas, até que toda a população esteja vacinada e quebrarmos a transmissão do SARS-CoV-2.

    Referências:

    de Souza, William M. (…) Proenca-Modena, Jose Luiz, Clusters of SARS-CoV-2 Lineage B.1.1.7 Infection After Vaccination With Adenovirus-Vectored and Inactivated Vaccines: A Cohort Study. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=3883263 or http://dx.doi.org/10.2139/ssrn.3883263            

    WHO (2021) Tracking SARS-CoV-2 variants

    Outros Materiais do Especial COVID-19:

    O que são Anticorpos?

    Imunidade Celular: um exército de soldados invisíveis

    Covid-19: um exército invisível combatendo a doença!

    E aqueles resultados das vacinas? – Parte 2: Memória Imunológica

    Anticorpos Monoclonais! Quê?

    Diversidade viral e surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2

    P.1 e a CoronaVac: é verdade que não precisa mais vacinar? (Spoiler, precisa sim!)

    Anticorpos neutralizantes e a variante P.1 Gamma

    Este texto foi escrito originalmente para o blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

  • Nosso normal: variantes, festas e aumentos de casos

    Talvez vocês tenham visto a notícia de um evento na Holanda, com 20 mil pessoas, “todos os protocolos” e resultou em, pelo menos, 1000 casos confirmados para COVID-19. Ao me deparar com esta manchete, fui ver alguns dados: como está a vacinação na Holanda, casos diários, entre outras coisinhas.

    Outra pergunta que me fiz foi: será que nunca mais poderemos fazer festivais ou grandes aglomerações, mesmo vacinados? E com a vacinação andando aqui no Brasil, estaremos finalmente a salvo? (a vacina não era, afinal, a solução que todos os divulgadores da ciência e cientistas nos venderam?).

    [pausa para recomendação de leitura com trilha sonora]

    Muitas perguntas… Sem embromação, vamos a alguns dados.

    O que podemos falar sobre a Holanda, neste momento da pandemia?

    • cerca de 17 milhões de habitantes;
    • 874 testes por milhão de habitantes;
    • 1.766.102 de casos totais;
    • 1.035 mortes por milhão de habitantes;
    • 17.773 mortes totais;
    • 67,38% da população tomou pelo menos 1 dose de vacina;
    Pessoas vacinadas com 1 dose, por país. Our World in Data

    Com base nestes dados, temos que 0,1% da população faleceu por COVID-19 e 10% da população contraiu COVID-19 ao longo de 2020 e 2021. Só a título de comparação, no Brasil temos 9% da população infectada e 0,25% de óbitos (em relação à população total do país). Isto levando-se em consideração que temos 253 mil teste por milhão de habitantes (próximo de 35% do que a Holanda faz de testes em sua população). Ou seja, temos dados bem mais complicados que estes e os testes e rastreios seguem sem serem feitos em nosso país, de forma adequada.

    O festival e as medidas de proteção

    A Holanda, desde 26 de junho (20 dias atrás, portanto) aboliu grande parte das medidas de proteção contra o coronavírus e isto envolvia grandes eventos no país.

    No dia 27 de junho foi o dia com menor quantidade de casos, desde meados de setembro de 2020 – registraram 499 casos no país. Além disso, dez dias depois da abertura, no dia 6 de julho, foram 2.209 casos registrados. Por fim, em 10 de julho, 10.299 casos novos de COVID-19.

    Dados compilados por SCHRARSTZHAUPT, Isaac e BRAGATTE, Marcelo. Painel Casos, óbitos e taxa de crescimento. Rede Análise Covid-19/Serrapilheira. Acessado em 16/07/2021. Disponível em: http://bit.ly/Rede_CasosObitosTaxa

    20 mil pessoas participaram do festival noticiado e somente pessoas vacinadas ou com o teste negativo poderiam entrar no local. Ele era em local aberto e aconteceu nos dias 3 e 4 de julho. Já tínhamos cerca de 40% da população holandesa vacinada com 2 doses. O que poderia ter dado errado, afinal?

    É bom apontar, antes de seguirmos no texto, que todas as vacinas têm indicado que a contaminação, mesmo com duas doses, é possível de ocorrer e há (nestes casos) uma diminuição da gravidade da doença. Isto é fundamental termos em mente: a vacinação protege em massa, é segura e é eficiente. Mas sempre corremos o risco de nos contaminarmos (em qualquer vacina da história, isto não é uma exclusividade destas vacinas de COVID-19).

    Sobre os testes de detecção do vírus SARS-CoV-2

    Não que seja recente este tipo de discussão, mas sempre é bom retomar. Cada vez que um evento como este ocorre, parece que temos que voltar lá para as primeiras postagens, textos e discussões que fazíamos em 2020 (parece tão longínquo, porém necessário!).

    Voltemos então

    Entre a exposição ao vírus (o dia que nos infectamos) e o momento em que conseguimos detectar a infecção em testes de PCR (que detectam material genético de vírus) ou testes de antígeno (que detectam proteínas do vírus) existe um tempo em que não conseguimos averiguar exatamente se estamos ou não contaminados.

    Em geral, para as linhagens de SARS-CoV-2 no início da pandemia, falávamos de um intervalo entre 5 a 7 dias para detectar o vírus, com teste de PCR (para testes de antígeno falamos deste mesmo intervalo mais ou menos).

    A Mellanie Fontes-Dutra lançou ontem um fio explicando que para a variante Delta este tempo pode cair para 4 dias, em função da alta carga viral desta variante… Recomendo fortemente a leitura

    Ao passo que a Delta é detectada mais cedo que as variantes anteriores ou a cepa original, ela também é mais transmissível. Há três dias atrás o diretor geral da OMS afirmou que a Delta está presente em 104 países e se tornará a variante predominante em breve.

    Esta onda de contágios na Holanda – assim como em outros países cuja vacinação está mais avançada e a pandemia parecia controlada – é, ao que tudo indica, consequência desta variante.

    Entretanto, voltando aos testes, uma questão fundamental aqui é relembrarmos algo fundamental: existe um intervalo de tempo sem sintomas e com muita transmissão do vírus.

    No caso da variante Delta, que causa uma carga viral tão alta a ponto da detecção acontecer no 4º dia após a exposição, a transmissão também está acontecendo de forma intensa. Dessa forma, repito: sem sintomas aparentes (ou discretos demais para nos protegermos e isolarmos).

    O que eu gostaria de frisar sobre testes é: o teste é um retrato do passado (entre 4-9 dias do contágio).

    Isto é importante pois temos falado o tempo inteiro sobre testes e rastreios desde o início da pandemia. E talvez neste momento alguém possa perguntar:

    – Mas Ana, se é um retrato do passado, o que adianta fazer testes?

    Ora… é fundamental para conseguirmos isolar pessoas, comunicar a possibilidade de contágio para quem tivemos contato e isolar estas pessoas também (e possíveis contatos destas pessoas neste meio tempo).

    Além disso, em casos em que pessoas têm se exposto no ambiente de trabalho, por exemplo, os testes frequentes permitem ir acompanhando e conseguem minimizar o impacto de uma infecção em todo um grupo que atua junto. 

    Teste e rastreio são uma das medidas mais importantes de controle, pois sua constância permite monitorar a situação de um grupo de pessoas.

    Nem começarei a falar aqui das medidas não farmacológicas como máscaras, distanciamento e evitar espaços fechados e sem ventilação, afinal todos sabemos que elas são super eficientes para diminuirmos a circulação do vírus, né?

    O festival, as vacinas e os intervalos dos resultados negativos

    Retomando: pois é. Aglomerar com medidas de segurança não funcionou. Quem poderia prever que “todos os protocolos” não funcionariam? 5% das pessoas do festival positivaram. Isto nos mostra que este “olhar para o passado” que os testes nos proporcionam não nos assegura de muitas coisas – a não ser quando feito de maneira frequente e com rastreios constantes. Sem o monitoramento frequente através dos exames, vacinação completa e em massa população e os protocolos de prevenção seguidos à risca (máscara, distanciamento, espaços ventilados, sem aglomeração) não há garantias de não infecção, principalmente com o surgimento de novas variantes…

    Nós temos visto as discussões acerca da variante Delta, sua transmissibilidade é altíssima, já falei isso anteriormente. Todavia, embora ela não escape da imunização das vacinas atuais, ao que tudo indica é fundamental termos as duas doses aplicadas. Mas retomemos os dados: 63,38% de pessoas com uma dose aplicada, 40% das pessoas têm as duas doses.

    E os casos na Holanda? Subindo – como o primeiro gráfico deste texto nos mostrou.

    Até quando? Até quando seguiremos dando estas oportunidades repetidas às variantes, exercendo pressão seletiva sobre as variantes e possibilitando mais e mais infecções por uma suposta volta à normalidade?

    Estes passaportes imaginários para adentrar em mundos seguros e livres de Covid precisam de muito mais estrutura, mudanças de comportamentos e, principalmente, levar a sério a noção de que nosso mundo mudou.

    Temos nos perguntado sobre o “novo normal” há 16 meses. Também perguntamos sobre quando voltaremos ao nosso normal.

    O que é normal?

    É um mundo que segue acreditando que a única possibilidade de felicidade, extravasar energia, viver bem é juntando-se com 20 mil desconhecidos. Tanto quanto um mundo com gente que frequenta restaurantes caros. Isto tudo dividindo o espaço com profissionais nos servindo ganhando pouco mais do que o suficiente para sobreviver. Além disso, claro, estas pessoas não tem outra alternativa a não ser aglomerar em metrôs e ônibus lotados para chegar ao nosso espaço de lazer. Nosso normal tem quase 8 bilhões de pessoas, com grande parte da população passando fome e sem condições mínimas de saúde. Isto em um mesmo lugar que alcançamos vacinas em menos de um ano contra uma doença avassaladora.

    Estamos em um mundo que passa fome e explora o espaço defendendo sua democratização para quem pode pagar fortunas difíceis de caber em ideias mundanas.

    Simultaneamente, nosso normal segue pensando um mundo que os protocolos de um país o isolaria dos demais que não estão seguindo os protocolos. Enquanto isso, as variantes circulam, aumentam, e a preocupação é quando poderemos, afinal, voltar ao normal.

    Caso estejas no Brasil (como grande parte dos que leem o Blogs da Unicamp estão), vivemos como se nossos escassos vacinados possam segurar variantes que chegam em campeonatos impensados ou em férias que não podiam ser reagendadas. Talvez os vacinados segurem estatísticas que não cessam de emergir e políticos que ignoram o que este vírus têm nos mostrado de maneira didática:

    Doenças são sociais, mesmo quando são um conjunto de sintomas fisiológicos causados por um agente viral.

    Uma doença como a COVID-19 nos esfrega na face, diariamente, que nosso normal não era aceitável e não sabemos o que fazer, frente à urgência de mudarmos – como indivíduos, sujeitos, coletivos, populações, humanidade.

    Dessa forma, podemos olhar dados passados e constatar que antes da pandemia, os metrôs paulistanos transportavam cerca de 200 milhões de pessoas por mês. Isto é, o equivalente a um país inteiro como o Brasil circulava em linhas de uma das maiores metrópoles do mundo. Como estamos neste momento? Cerca de 96 milhões de pessoas mensalmente. A pandemia diminuiu a mobilidade nos metrôs para pouco menos da metade, ainda assim, é como se fosse Vietnã inteiro andando de metrô mensalmente.

    Assim, me pergunto: o centro de São Paulo representam quantos festivais de Amsterdã diariamente? De pessoas sem vacinas suficientes, nem testes possíveis, o que dirá rastreios de nossas mazelas?

    O nosso normal nos trouxe ao descaso com vidas e desapreço pelas possibilidades de a ciência ser exercida com empatia para todos e por todos (no Brasil e no mundo).

    Pensando sobre Humanidade em tempos de pandemia

    Krenak diz que “nosso tempo é especialista em criar ausências: do sentido de viver em sociedade, do próprio sentido da experiência da vida” (p.26). Esta passagem (o livro todo) nos propõe a pensarmos em Ideias para adiarmos o fim do mundo que se vinculam a novos conceitos de humanidade para podermos viver. Uma humanidade que se pense não como produto para consumo, não como objeto para trocas, não como idealizações que culminam em mortes em massa. É preciso repensar o que nos trouxe até aqui, antes de querermos voltar ao que, supostamente, existia antes.

    “Assim como nós estamos hoje vivendo o desastre do nosso tempo ao qual algumas seletas pessoas chamam de Antropoceno. A grande maioria está chamando de caos social, desgoverno geral, perda de qualidade no cotidiano, nas relações, e estamos todos jogados neste abismo” (p.72)

    Em suma, pergunto: queres voltar ao nosso normal?

    Nosso normal nos trouxe até aqui. 

    Para saber mais

    DW (2021) Quase mil pessoas se infectam em festival de música na Holanda e Premiê da Holanda se desculpa por relaxar medidas anticovid

    El Pais (2021) A variante delta do coronavírus, mais contagiosa, se espalha por países da América Latina

    Dados mundiais sobre vacinação, testes, casos e óbitos: Worldometer Coronavírus, Our World in Data

    Krenak, Ailton (2020) Ideias para adiar o fim do mundo, São Paulo: Companhia das Letras.

    Textos do Blogs sobre o tema:

    Solidariedade: saúde para todos

    Sobre o período de incubação da doença e suas relações com a quarentena…

    Passaporte Nacional de Imunização e Segurança Sanitária – Faz sentido isso?

    Este texto é original e foi produzido com exclusividade para o Especial COVID-19

    Agradecimento especial ao Isaac Schrarstzhaupt que debateu sobre os dados e ajudou a organizá-los para este post, Erica Mariosa, Carolina Frandsen e Graciele Oliveira que revisaram o texto, e minha mãe, que falou “nosso normal nos trouxe até aqui” (obrigada por tudo sempre, inclusive).

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Anticorpos neutralizantes e a variante P.1 Gamma

    Texto escrito por Mariene Amorim, Ana de Medeiros Arnt, Marcelo Mori, Alessandro Farias e José Luiz Proença-Modena

    Hoje nós vamos falar sobre um estudo que saiu quentinho do forno de pesquisadores aqui da UNICAMP! Como é um tema difícil e cheio de nuances, vamos começar aos poucos. Primeiro falaremos de conceitos do estudo. Após isso, vamos abordar sobre a metodologia. Só depois disso, vamos falar dos resultados em si.

    Nosso corpo e suas defesas: o nosso sistema imunológico

    Nosso corpo possui um sistema de defesa sofisticado e complexo, composto por diferentes tipos de barreiras, células e proteínas. Todos esses componentes juntos formam o nosso sistema imunológico, nosso sistema de defesa frente a invasores.

    Nosso sistema imune sempre está vigilante a tudo que entramos em contato. Quando algo considerado não-próprio (isso é, que não pertence ao nosso corpo) entra em contato conosco, o sistema imune identifica aquilo como “externo”, buscando destruir e algumas vezes guardando uma memória dessa ameaça. Mas algumas vezes precisamos de reforços. Nesses casos, além do sistema imune chamar mais células de defesa, este induz a liberação de várias proteínas que vão ajudar a combater a ameaça, resultando em uma Inflamação. 

    Entretanto, nosso corpo tem limites. Um longo período de inflamação (por exemplo, combatendo um patógeno) pode resultar em dano às células e órgãos do nosso corpo. Em outras palavras, podemos “exagerar” enquanto estamos tentando proteger nosso corpo de elementos externos (como vírus ou bactérias). Assim, acabamos gerando respostas que em certa medida também dão uma “bagunçada geral” no sistema. Como vocês podem ver a imunologia (e já temos falado disso em nossos textos) é bem complexa. Ao longo dos anos, esse tem sido foco de estudos e tem se desvendado mais e mais sobre o tema. Isto para a nossa melhor compreensão e para que possamos combater muitas doenças.

    Ensinando o corpo a se proteger

    Entender o sistema imunológico e como ele funciona não é algo fácil para compreendermos. No entanto, graças a muitos estudos, muitas noites sem dormir e experimentos sem fim, aprendemos um pouco mais sobre como o sistema imune funciona. Mas melhor do que isto, hoje também somos capazes de “ensinar” ao nosso sistema imune sobre um patógeno. Ou seja, quando, ou se, entrarmos em contato com este patógeno, ele não consegue se espalhar abundantemente e causar muitos danos. É o que fazemos quando tomamos vacinas!

    Quando a humanidade ainda estava desvendando as doenças e como preveni-las, há muito tempo atrás (século XVIII e antes), na tentativa de combater a varíola, pessoas eram inoculadas com uma versão mais branda da doença (uma varíola de vacas) e se tornavam imunes ao desenvolvimento da varíola humana, que era mais grave. A história das doenças e vacinas é fascinante, mas não é o que vamos discutir nesse texto!

    Hoje, já existem diversas maneiras de elaborar uma vacina, de forma que sejam muito mais seguras. A depender da técnica utilizada na produção de uma vacina, nós vamos apresentar ao nosso corpo o patógeno inativado, ou uma pequena parte do patógeno, para que o nosso sistema imune reconheça e guarde aquela informação em forma de memória imunológica.

    Vacinas, vírus e variantes

    Atualmente existem diversas vacinas contra vírus, que ajudaram a extinguir doenças em várias partes do globo. Porém, não é um processo fácil e não funciona para todas as doenças. Se um vírus, por exemplo, sofre muitas modificações genéticas (mutações) e consequentemente estruturais, à medida que ele se espalha em uma população, se torna difícil, produzir uma vacina eficiente, como é o caso do vírus da imunodeficiência humana HIV. É como se esse vírus fosse mudando com o tempo, de forma que a memória gerada pelo nosso sistema imune não irá reconhecê-lo mais. Além de outros fatores relacionados ao desenvolvimento da doença, que podem inviabilizar o uso de uma vacina. 

    Para nossa sorte, muitas doenças são causadas por vírus que não sofrem tantas mutações com muita rapidez, para as quais já temos vacinas eficientes, como a varíola, a rubéola, a poliomielite, entre outras. No cenário atual da pandemia de COVID-19, nos deparamos com um vírus de RNA que não sofre tantas mutações como outros vírus com genoma de RNA, como HIV e influenza. Entretanto, essa história não é tão simples como parece, como podemos ver com as notícias de surgimento de tantas variantes.

    Então não têm tanta mutação assim o tal do Corona??

    Mas o SARS-CoV-2 não é, de fato, um vírus que muta tanto assim. Todavia, ele se espalha muito rapidamente e o número gigantesco de pessoas infectadas juntamente com a alta taxa de transmissibilidade, tem favorecido não somente o aparecimento de mutações nesse vírus, como também a seleção de mutações mais favoráveis à infecção fixando-as na população. Ao longo da história da pandemia, foram surgindo variantes virais com mudanças significativas em algumas de suas estruturas, preocupando pessoas no mundo inteiro.

    Novamente, graças a conhecimentos acumulados ao longo de décadas de estudos, a humanidade conseguiu produzir não só uma, como vários tipos de vacinas contra esse vírus, e é claro que o aparecimento das novas variantes colocou o mundo inteiro em estado de alerta. A pergunta que não quer calar é:

    As vacinas ainda irão funcionar?

    Temos pesquisado muito a fim de desvendar como acontece a nossa resposta imune frente ao SARS-CoV-2, e as variações que têm aparecido. Será que produzimos memória imunológica quando entramos em contato com esses vírus? Por quanto tempo? Podemos pegar um tipo de vírus e depois pegar novamente uma variante? Como podemos investigar se temos alguma proteção?

    São muitas perguntas, pouco tempo para desenvolver os estudos e obter respostas enquanto tem muita gente adoecendo, muita gente morrendo, variantes surgindo… Mas vamos lá, temos muito ainda a percorrer sobre o tema!

    O que podemos fazer no âmbito científico para obter algumas respostas?

    Muita coisa tem sido feita. Primeiramente, nunca tivemos tanto sequenciamento de genoma completo de um vírus anteriormente na história. Temos conseguido acompanhar a evolução desse vírus em muitos países, identificar o surgimento das variantes e acompanhar seu desenvolvimento epidemiológico, inclusive no Brasil.

    Segundo, nós podemos isolar as partículas virais de uma amostra de paciente infectado, para que possamos estudar o vírus em cultura de células no laboratório (in vitro). Conseguimos fazer isso com as diferentes linhagens do SARS-CoV-2, as mais antigas e as novas variantes.

    Os vírus isolados podem ser utilizados, por exemplo, para investigar a presença de anticorpos neutralizantes circulando no sangue de pessoas que já tiveram algum contato com o vírus, seja por infecção natural ou vacinação. Um desses ensaios se chama PRNT, do Inglês Plaque reduction neutralization test. Nesse ensaio, utilizamos amostras de soro ou plasma, para investigar a presença de anticorpos capazes de neutralizar o vírus. Ou seja, anticorpos capazes de fazer com que o vírus não seja mais capaz de se replicar numa célula e causar dano no organismo.

    Como fazemos isso? Em nossa pesquisa, realizamos uma diluição seriada de uma amostra de soro ou plasma. Logo depois, incubamos as diferentes diluições com uma quantidade fixa de partículas virais viáveis. Ressaltamos este ponto aqui, pois é uma questão metodológica importante:

    Há diferentes concentrações de soro, mas com a mesma quantidade de partículas virais.

    Depois de um tempo, colocamos essas misturas em pocinhos contendo células que são facilmente infectadas pelo vírus. As partículas virais que ainda continuam viáveis em cada mistura de vírus+soro/plasma, serão capazes de infectar as células. Caso o soro/plasma da pessoa contenha anticorpos neutralizantes, estes irão neutralizar (ou seja, bloquear a capacidade do vírus infectar) as partículas virais que não serão capazes de infectar as células nos pocinhos. As células infectadas acabam morrendo depois de um tempo, formando uma pequena plaquinha no fundo do poço. Parece mais uma história triste essa parte né? Mas na verdade são estas plaquinhas que nós conseguimos contar, montar gráficos e realizar testes estatísticos.

    E o quê elas representam?

    Estas plaquinhas são exatamente o que nos indicam a quantidade de células que foi infectada e morreu. Portanto, indicam que o meio em que elas estavam (a mistura com soro/plasma) tinha poucos (ou nenhum) anticorpos neutralizantes. Assim, não houve bloqueio da ação dos vírus.  

    Nosso estudo sobre Neutralização da linhagem P.1 por anticorpos 

    Recentemente um estudo realizado pelo grupo do professor José Luiz Módena, aqui da UNICAMP, analisou diferentes amostras de pacientes para realizar exatamente este tipo de ensaio que comentamos anteriormente, com a variante P.1 – também conhecida como variante Gamma. 

    O estudo foi publicado ontem na revista The Lancet Microbe! Sim! Como dissemos, recém saído do forninho da publicação!

    Neste estudo, analisou-se a quantificação de anticorpos neutralizantes presentes em amostras de soro/plasma de pessoas previamente expostas ao SARS-CoV-2. Quando falamos em “previamente expostas” estamos falando de “exposição natural” (pessoas que se infectaram pelo vírus) ou por vacinação com vírus inativado – no caso, Coronavac.

    Ao analisar estas amostras, percebeu-se que a neutralização por anticorpos diminui quando incubadas com essa variante em relação à linhagem mais antiga do vírus. O que isto quer dizer?

    Resumidamente, observou-se diminuição da capacidade de neutralização dos anticorpos em relação à variante P.1 Gamma. Ou seja, percebemos que houve uma menor capacidade de bloquear a infecção em relação à variante P.1 Gamma, quando comparamos as mesmas amostras usando as linhagens originais de SARS-CoV-2.

    Então a vacina não funciona, e isto que vocês estão me dizendo?

    Calma lá! Longe disso… Estamos dizendo que uma das defesas estimuladas por esta vacina, tanto quanto por infecção natural de linhagens “originais” – que é a produção de anticorpos neutralizantes – diminui sua capacidade de nos defender quando encontra a P.1 Gamma pela frente.

    Mas há um porém, vamos a eles…

    Primeiramente, os anticorpos neutralizantes não são a única defesa do nosso sistema imune. Existem outras defesas, como a imunidade celular, que também atuam no combate à infecção. E a imunidade celular não foi testada e analisada nesta pesquisa!

    Em segundo lugar, diminuir a capacidade de anticorpos neutralizantes não é “não ter ação alguma de anticorpos neutralizantes”. É, como a palavra diz: diminuir. Além disso, os anticorpos podem atuar por outros meios que não a neutralização, como a indução de fagocitose de partículas virais recobertas de anticorpo e a indução de morte celular em células infectadas. Isto é, existe resposta imune produzida pelo nosso corpo.

    E as outras vacinas?

    Outros grupos de pesquisa, em outros países, têm realizado testes semelhantes em relação aos diferentes tipos de vacinas que temos disponíveis atualmente, frente às diferentes variantes de SARS-CoV-2. E temos observado que algumas variantes tem maior capacidade de escape de anticorpos do que outras. Vamos detalhar este tema em um próximo texto, aguarde!

    Enquanto isso, 

    É fundamental este tipo de pesquisa ser feita e ser divulgada, sempre! Tal como é sempre fundamental apontar que sua divulgação precisa ser feita com cautela e sem alarmismos. Precisamos compreender a ação das vacinas em relação às novas variantes e, sim, pode ser que em algum momento existam escapes das variantes. As vacinas precisam (e provavelmente precisarão) ser “atualizadas” para conseguir nos defender das variantes que forem surgindo.

    Por isso, claro, vacinar é FUNDAMENTAL, não escolher vacina é primordial – lembrando que a vacinação é um fenômeno de massa e, mais importante do que isto, precisamos seguir protocolos e medidas de segurança mesmo depois de vacinados! Quais medidas? Uso de máscara, distanciamento social, higienização das mãos, diminuir ao máximo a circulação, especialmente em locais não ventilados!

    Por fim,

    É um texto trocando em miúdos os resultados que vocês querem? Pois esperem que vamos fazer também! Este artigo vai ter várias postagens sobre: metodologia, obtenção de resultados, análises e ponderações! Mas é claro que não podíamos deixar passar o tempo e precisávamos conversar com vocês sobre os resultados hoje mesmo!

    Para Saber Mais

    Estudo de referência:

    Souza, Willian … Modena, José Luiz (2021) Neutralisation of SARS-CoV-2 lineage P.1 by antibodies elicited through natural SARS-CoV-2 infection or vaccination with an inactivated SARS-CoV-2 vaccine: an immunological study The Lancet Microbe, 08 de Julho de 2021.

    Primeiro texto feito sobre este estudo:

    P.1 e a CoronaVac: é verdade que não precisa mais vacinar? (Spoiler, precisa sim!)

    Outras referências

    O Que são Anticorpos?

    História das vacinas (em inglês)

    Imunidade Celular: um exército de soldados invisíveis

    E aqueles resultados das vacinas? – Parte 2: Memória Imunológica

    Estudo sobre a CORONAVAC no Chile (Texto de Mellanie Fontes-Dutra)

    Este texto foi escrito originalmente no blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


    editorial

  • Diversidade viral e surgimento de novas variantes do SARS-CoV-2


    O que isso tem a ver com as “escapadinhas” da quarentena

    Texto escrito por Mariene Amorim

    Vírus. Nunca houve tanto interesse sobre o significado dessa palavra antes. O conceito de vírus é simples, em comparação com a complexidade do seu significado na natureza. Os vírus são partículas muito pequenas, formadas apenas por proteínas e ácido nucleico (material genético que pode ser DNA ou RNA), e alguns possuem ainda um envelope lipoproteico recobrindo a partícula.

    Todos os organismos vivos são compostos por células, às vezes por uma única célula, como as bactérias, e às vezes por milhares de células, como nos animais e nas plantas. Os vírus, por sua vez, não possuem células e dependem totalmente de componentes das nossas células para se replicarem.

    Sendo assim, enquanto as células possuem uma maquinaria específica responsável por corrigir eventuais mutações à medida que replicam seu DNA, esse processo não acontece nos vírus. Portanto, quanto mais os vírus se replicam e se espalham pela população, mais eles vão sofrendo alterações em seu material genético as quais não são corrigidas.

    As mutações

    Essas alterações são mudanças na sequência de nucleotídeos, que são as moléculas que compõem o DNA e o RNA, e são conhecidas como mutações. No entanto, o acúmulo de mutações, com o tempo, permite o surgimento de partículas virais um pouco diferentes umas das outras, que seriam as variantes virais. E vale ressaltar que essas mutações acontecem por acaso, e não propositalmente.

    Dessa forma, esse é um processo natural na história evolutiva dos vírus, e é esperado que aconteça. Todavia, alguns vírus sofrem mutações com mais frequência do que outros, devido a uma diversidade de fatores.  

    Os vírus de RNA costumam sofrer muitas alterações em seu material genético à medida que se replicam e se espalham. O SARS-CoV-2 é um vírus que possui como material genético uma fita simples de RNA, e acumula cerca de 1 a 2 mutações a cada mês. A pandemia do novo coronavírus começou em dezembro de 2019, e diversas variantes já foram reportadas por todo o globo. Entretanto, várias destas mutações não alteram significativamente a ação do vírus.

    As mutações e as infecções

    Já sabemos também da existência de algumas mutações específicas que acabam favorecendo a infecção de alguma forma. Por exemplo, uma alteração que proporciona uma melhor ligação do vírus com o receptor celular para a entrada do vírus na célula que ele precisa infectar, que chamamos de célula hospedeira.

    Mas, o que isto quer dizer? Apenas para relembrar o que já vimos em textos anteriores. O vírus entra na célula a partir de um receptor – uma proteína que se localiza na membrana de nossas células. No caso do SARS-CoV-2, esta molécula presente nas nossas células chama-se ACE2. Já a proteína do vírus que se encaixa na ACE2 é a “famosa” Spike. A Spike funciona como uma chave, que consegue acessar a fechadura (a proteína ACE2) para entrar nas células.

    Recentemente, duas variantes do SARS-CoV-2 têm chamado muito a atenção das autoridades e da população mundial, devido ao acúmulo de várias mutações em seu RNA, que aparentemente favorece sua dispersão, ou seja, essas variantes se espalham mais rapidamente do que as outras variantes locais. São elas a B 1.1.7 reportada pela primeira vez no Reino Unido, e a 501.V2, ou B 1.351, reportada pela primeira vez na África do Sul, que já são encontradas em outros países. 

    A análise filogenética da variante B 1.1.7 mostra uma alta taxa de evolução molecular.

    O que isto quer dizer?

    Bom, “análise filogenética” é como se fosse uma análise dos “antepassados”, na biologia. Só que neste caso, analisamos a evolução dos seres e populações a partir de sua genética. Neste tipo de análise, conseguimos estabelecer o acúmulo de mutações e como elas vão dando origem a seres ligeiramente diferentes – até tornarem-se (por exemplo) outro ser completamente diferente. 

    Claro que vírus não são considerados seres vivos! Todavia, eles têm RNA ou DNA e, assim, é possível traçar também uma linha que explica e nos ajuda a analisar as mutações e as variações.

    Dito isto, vamos à variante B 1.1.7.

    Essa variante possui um acúmulo significativo de mutações (no total de 17 mutações!). Aparentemente, a grande questão desta variante é que as mutações podem estar proporcionando maior transmissibilidade. Dito de maneira mais simples: esta variante se espalha mais e de maneira mais eficiente do que a “versão anterior” do coronavírus. 

    É importante ressaltar que até o momento, esse conjunto de mutações apresentadas pela B 1.1.7 não está diretamente relacionado ao desenvolvimento de casos mais graves da doença. Todavia, é necessário que seja feita uma vigilância genômico- epidemiológica para acompanhar os casos, além de investigações laboratoriais para verificar antigenicidade e mecanismos de patogênese.

    Calma! Como assim?

    É fundamental, neste momento, acompanharmos como esta nova variante está se espalhando, fazendo sequenciamento genético destes vírus, para avaliar a situação epidemiológica da doença – que diz respeito à velocidade que se espalha, em que situações, como se diferencia da “variante de coronavírus original”. Isto é: precisamos monitorar esta variante e analisar seu impacto na população.

    As investigações laboratoriais dizem respeito ao sequenciamento, mas também a como esta variante reage no nosso organismo e como nosso organismo responde a esta nova variante (se o agravamento da doença passa a existir, se conseguimos nos defender desta variante como da anterior etc.).

    Reino Unido… África do Sul… São países distantes, de outros continentes… Isso nunca vai acontecer no Brasil, certo? Errado!

    Dois casos da variante B 1.1.7 já foram reportados no Brasil, em dezembro do ano passado, aproximadamente na mesma época em que essa linhagem foi reportada no Reino Unido. Encontrar essas variantes não é uma tarefa fácil, e demanda árduas horas de trabalho dos pesquisadores, investimento, e parcerias com unidades de saúde. Porém, apenas assim é possível identificá-las.

    Foi no intuito de investigar as variantes circulantes em Manaus, atualmente uma das cidades que mais tem sofrido com o avanço da pandemia em nosso país, que pesquisadores identificaram uma nova variante, ou linhagem, que recebeu o nome de P1, descendente da B 1.1.28.

    Foi visto que a P1, encontrada em Manaus, tem mutações em comum com a B 1.1.7 e com a B.1.351, em regiões do material genético que codifica a proteína Spike que comentamos anteriormente. Ou seja, essa variante também pode ter maior transmissibilidade. Estaria ela associada ao recente aumento de casos em Manaus e às reinfecções?

    Mas, vamos guardar essa pergunta para os próximos capítulos!

    Os vírus são partículas muito pequenas, de constituição simples, mas que podem ser complexos na sua maneira de existir no mundo, e gerar problemas globais. O número de casos de COVID-19, e a pandemia na qual nos encontramos é, de fato, algo que ficará marcado na história.

    A maneira como esse vírus se espalha tão facilmente, e o crescente número de casos, resulta no aumento da diversidade do vírus, e podemos a qualquer momento nos deparar com um vírus mais facilmente transmissível, mais perigoso, mais mortal. Portanto, sim, variantes virais importantes também podem surgir no Brasil, bem debaixo (ou dentro) do nosso nariz. Bem como, a transmissão está diretamente relacionada a maneira como nos comportamos diante dessa grande tragédia, e da nossa responsabilidade social.

    Por fim

    É sempre importante retomar a necessidade dos cuidados básicos de higiene e distanciamento social. Neste momento, claro que as novas variantes nos assustam. Mas não é “culpa” delas tudo o que estamos vivendo agora. Assim, é fundamental seguirmos cobrando políticas públicas que possibilitem que o máximo de pessoas fiquem em casa com segurança.

    As novas variantes também são decorrentes da enorme circulação dos vírus que temos. Em suma, é necessário que a gente diminua a circulação dos vírus – e todas as suas variantes – da maneira mais urgente e imediata possível.

    #maisresponsabilidadesocial #menoscoronavirus

    Mais textos sobre coronavírus neste blog:

    Como é que um vírus que ataca o sistema respiratório, causa danos no cérebro?

    Para saber mais

    1. Rambaut, Andrew et al (2020) Preliminary genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in the UK defined by a novel set of spike mutations. Virological org Dezembro de 2020

    2. Faria, Nuno R (2021) Genomic characterisation of an emergent SARS-CoV-2 lineage in Manaus: preliminary findings. Virological org Janeiro de 2021.

    3. Candido, Darlan S et al (2020) Evolution and epidemic spread of SARS-CoV-2 in Brazil Science, Vol369 (6508), p. 1255-1260, 2020

    4. Voloch, CM et al (2020) Genomic characterization of a novel SARS-CoV-2 lineage from Rio de Janeiro, Brazil medRxiv.

    5. Tegally, H et al (2020) Emergence and rapid spread of a new severe acute respiratory syndrome-related coronavirus 2 (SARS-CoV-2) lineage with multiple spike mutations in South Africa, medRxiv.

    6. Duchene, Sebastian, Leo Featherstone, Melina Haritopoulou-Sinanidou, Andrew Rambaut, Philippe Lemey, and Guy Baele (2020) “Temporal Signal and the Phylodynamic Threshold of SARS-CoV-2” Virus Evolution 6 (2): veaa061.

    A autora

    Mariene Amorim Natural de Salvador, Bahia, e biomédica formada pela Universidade Tiradentes – Aracaju, Sergipe. Mestre em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, na área de Virologia. Trabalha com vírus emergentes desde 2015. Atualmente é doutoranda em Genética e Biologia Molecular pela Unicamp, e participa de um estudo genômico-epidemiológico e de multi ômicas do novo coronavírus (SARS-CoV-2), a fim de acompanhar a evolução molecular do vírus, entender o desenvolvimento da COVID-19 e acompanhar o avanço da pandemia na cidade de Campinas e região metropolitana. Mariene também é membro da Força-Tarefa contra a COVID-19 da Unicamp.

    Nossos sites institucionais:

    Força Tarefa da Unicamp

    Unicamp – Coronavírus

    Este texto foi escrito originalmente no blog EMRC

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, os textos foram produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.


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