Com 86% da população do Estado de São Paulo na faixa amarela do Plano São Paulo de retomada das atividades comerciais. A abertura de shopping centers, a retomada parcial na oferta de alguns serviços como bares, restaurantes, salões de beleza, e academias dão, nos próximos dias, seu start inicial.
Passados quase 5 meses da pandemia de Covid-19, havia uma certa ansiedade por parte da população por consumir grande parte desses serviços. Também pela maioria dos comerciantes e empresários em retomar suas vendas. Já que enfrentam uma crise econômica desde 2014, agravada ainda mais pela recente situação de isolamento forçado.
De acordo com estimativas da fundação Getúlio Vargas, haverá um impacto negativo de cerca de 68% nas finanças da indústria. Além de 59% no setor de comércio e de 49% no setor de serviços. Esses serão os setores que mais serão afetados negativamente em suas finanças.
O FMI (Fundo Monetário Internacional) prevê uma crise econômica global de grande proporção devido à pandemia. A recessão estimada pelo FMI, de 4,9% para o mundo, deve se confirmar. E, para o Brasil, o quadro é ainda mais alarmante, uma vez que estamos classificados na categoria de países em desenvolvimento. Ou seja, existe uma série de barreiras estruturais que ainda não foram superadas.
As medidas de fechamento e isolamento social afetam toda a economia, mas principalmente o consumo. Quando estávamos na fase vermelha, apenas itens essenciais eram possíveis de serem comprados presencialmente. Além disso, as pessoas ainda ficavam receosas de receber em suas casas entregas delivery – mesmo que os empresários fizessem as adequações necessárias e entrassem de cabeça na era digital.
Em um ambiente de extrema incerteza futura, como é o caso desta pandemia, o primeiro impacto sobre os agentes econômicos (famílias e empresas) é a retração na sua renda. A causa disso é o fato de que as próprias famílias ficaram mais cautelosas em relação ao consumo. Os empresários, por seu turno, interromperam os investimentos bruscamente. Uma indicação desse fenômeno é o aumento recente nas quantias depositadas em cadernetas de poupança, ou seja, o brasileiro está poupando e se preparando para o que há por vir.
A questão da reabertura parcial do comércio
Quanto ao plano de flexibilização e abertura parcial do comércio, temos, por um lado, lojas fechadas e com poucos clientes. Por outro lado, ruas lotadas com consumidores lutando pelo seu espaço – como observado no último sábado dia 7 de agosto, véspera do Dia dos Pais. Em relação à abertura do comércio, há algumas considerações que devem ser levadas em conta:
Muitas cidades que estavam na fase 4 regrediram para a fase 1 após medidas de flexibilização entrarem em vigor;
O índice de Intenção de Consumo das Famílias (ICF) atingiu o menor patamar desde o ano de 2010, segundo informações da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo;
Há uma melhora identificada na qualidade dos serviços e atendimentos, uma vez que cada cliente que entra no estabelecimento comercial é extremamente importante para a geração de receitas;
A queda do nível de renda tem empurrado compradores para o comércio popular, gerando aglomerações em áreas que possuem essa característica;
Vendedores relatam medo em se deslocar para o trabalho, pois os meios de transporte coletivo apresentam grande possibilidade de contaminação. Muitos estão mudando as suas rotas e realizando mais baldeações para evitar linhas que possam estar congestionadas – isso normalmente aumenta o tempo de trânsito até o trabalho;
Existe também o acúmulo de funções dentro dos estabelecimentos, já que houve demissões e poucos funcionários ficaram para desempenhar a atividade de atendimento, venda, faturamento, estoque, etc.;
Posto isso, o desafio é fazer com que parte importante do consumo seja retomada. Pois muitas famílias tiveram sua renda comprometida de alguma forma e as que foram menos afetadas estão bastante receosas em gastar.
Para muitas pessoas, a ajuda oferecida pelo governo federal foi insuficiente, sendo obrigadas a buscar outras alternativas para sobreviver, afinal as despesas não cessaram. Empresários e comerciantes, por sua vez, tentam recuperar as vendas mesmo com a insegurança de estar exposto a uma grande circulação de pessoas que movimentam os centros comerciais e shoppings.
Por fim, é importante ressaltar que o isolamento social, da maneira como foi praticado no país teve como resultado até o momento mais de 100.000 mortes. Além de um impacto psicológico sobre a população – seja pelo medo, seja pelo luto. Na economia, o isolamento afetou a renda de milhares de famílias e a sobrevivência de muitas empresas. Com este afrouxamento, o novo normal está por vir. Mas o problema da contaminação pelo Covid-19 não está ainda resolvido, nem com remédios nem com vacina. Para isso, é ainda necessário que toda a população tenha cuidado, tome medidas de segurança e tenha consciência sobre o uso correto de máscara. E sobretudo, se puder, que continue em casa.
A autora
Jamile de Campos Coleti é Administradora, Professora na Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG/FRUTAL) e Doutora em Desenvolvimento Econômico pela Unicamp.
** Texto publicado originalmente no blog Sobreeconomia
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
A ciência virou notícia cotidiana – já não consta apenas em partes específicas dos noticiários e jornais, em programas televisivos que se passam nos primeiros horários da manhã durante o final de semana. Desde meados de março, quando o SARS-CoV-2 desembarcou de vez no Brasil, temos visto curvas epidemiológicas, debates sobre eficácia de medicamentos, aprendido sobre proteína Spike, sobre diagnóstico por PCR e sorológico. Temos lido sobre pulmão com aspecto de vidro fosco, compreendido sobre a relação de algumas comorbidades e a infecção pelo novo coronavírus, lido mais e mais sobre transmissão comunitária, imunidade cruzada, diferentes tipos de anticorpos, dentre outros temas.
Também há todo um montante de informações que nos confunde, muitas vezes. Medicamentos como Cloroquina e Ivermectina – que já eram usados para outras doenças ou enfermidades, tornaram-se “drogas candidatas” e embora tenham sido descartadas, seguem sendo pauta no Brasil e no Mundo.
Semana passada a Ozonioterapia foi anunciada como tratamento em uma transmissão ao vivo, por um prefeito no Sul do país e pronto… Uma corrida por informações, memes, artigos publicados, declarações das sociedades relacionadas a isso.
A Vacina Russa, esta semana também têm causado furor em redes sociais. E muitos se perguntam se tomariam mesmo sem ela ter apresentado os resultados das fases 1 e 2, afinal “é melhor que nada, né?”
Um pouco é melhor que nada?
É aí que reside um grande perigo… Percebam que não temos nenhum interesse em acordar todas as manhãs e ver que não há cura, tratamento ou vacina eficaz anunciada. Não é pessimismo olhar para como as etapas da vacina precisam de tempo para serem analisadas. Sagan, em 1996, comentou que vivemos em um mundo em que precisamos da ciência e seus produtos em cada detalhe da sociedade. No entanto, não sabemos como a ciência funciona – e isso é uma receita para o desastre, afirmou um dos maiores nomes da divulgação científica de todos os tempos.
Pois bem, aqui temos uma série de questões fundamentais que precisamos entender (e talvez isso demore mais tempo do que a vacina, mas cá estamos aprendendo junto com vocês…). A ciência precisa de tempo. Ela é feita a partir de uma série de etapas, que expliquei na postagem que é a parte 1 deste texto. De maneira muito sucinta, o método científico é feito a partir das etapas desta imagem:
Cada uma destas etapas é feita de maneira colaborativa, com diálogo, debates em grupos de pesquisa, aprovações em comitês de ética nacionais e/ou internacionais (que precisam ser avaliados quanto ao risco aos seres vivos envolvidos). Enquanto estas etapas acontecem, elas também vão gerando outras perguntas e hipóteses (não são etapas estanques e lineares), realizamos análises enquanto estamos realizando experimentos, apresentamos dados parciais em eventos e publicações, etc.
Porque estou batendo nesta tecla com vocês?
Ora! Para dizer que na ciência o método científico INTEIRO é permeado de diálogos, debates, conversas. Compartilhar resultados em periódicos ou congressos é uma parte de tudo isso – uma parte importante, pois não é apenas uma exposição, mas é uma avaliação pública do nosso trabalho. Todavia, é também parte de uma prática de expor conhecimento para que outros grupos de pesquisa, outros cientistas, consigam acessar isto e fazer novas perguntas, hipóteses, propor novos experimentos – aumentando ainda mais nosso conhecimento sobre um fenômeno.
Isto leva tempo, demanda esforço, recursos financeiros, formação de cientistas ao longo de muito tempo, equipes inteiras que se debrucem sobre os problemas que aparecem no mundo. Não que cientistas sejam pessoas extraordinárias e mais inteligentes (o suprassumo de nossa espécie diriam algumas pessoas). Não é nada disso… É apenas demarcar que é uma atividade de médio e longo prazo – UM PROJETO DE UM PAÍS, para além de partidos e governantes.
Dizer que terapias sem comprovação científica é melhor que nada não é dar esperança às pessoas: é tapar o sol com a peneira e dizer que qualquer coisa vale para a vida do outro. E isso inclui possíveis prejuízos (como a piora do quadro de saúde, o abandono das terapias paliativas, o falecimento sem assistência adequada, o contágio de familiares…)!
Sobre terapias alternativas e seus resultados não publicados
(ou publicados para outras doenças que não aquela que estamos falando)
Veja que nem é afirmar que não existem estudos vinculados a estas terapias e indicações de tratamentos que vou falar a partir de agora. Mas é sobre como resultados específicos não foram obtidos para esta doença.
“A ozonioterapia é usada há 100 anos já!”
“A ozonioterapia têm tido ótimos resultados em tratamentos cutâneos e outras enfermidades”
“A cloroquina é usada há décadas para Lupus e malária! Como assim é tóxica?”
“Os resultados in vitro deram positivo, qual o problema então se eu tomar?”
“A ivermectina não têm comprovação, nem contraindicação, deixa as pessoas tomarem ué!”
“Se a vacina russa sair, eu vou tomar, mesmo sem comprovação!”
Estas são algumas das frases que vemos espalhadas nas redes sociais e expressam a opinião das pessoas.
Agora vamos lá…
Para afirmar que a ozonioterapia é eficiente como tratamento, não basta o ozônio ser um bom composto químico que reage com o vírus fora do nosso corpo. Também não basta a ozonioterapia ser eficiente há 50-100 anos contra doenças diversas. Além disso, uma terapia eficiente contra uma doença não a torna automaticamente eficiente contra qualquer outra.
Tratamentos para doenças muitas vezes necessitam de reagentes específicos (isto é: que quimicamente tenham ação contra o agente patógeno – vírus, bactérias, vermes, fungos…).
Em suma, para ozônio ou qualquer componente experimental, componentes químicos reagem de modo diferente dentro e fora do nosso corpo. Além disso, os componentes reagem de maneiras diferentes dependendo de como entram em nosso corpo (com introdução anal, intramuscular, intravenosa, pelo trato digestivo).
Ah, sim: o mesmo vale para a cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina e outras drogas candidatas(que já foram descartadas…). Ou seja: drogas candidatas e terapias em fase de pesquisa estão ainda cumprindo a sequência do método científico – não podem nem ser chamadas de tratamento. Assim, estes medicamentos em fase de pesquisa não poderiam ser administradas para as pessoas como tratamento sem que as pessoas fossem informadas sobre isso e consentissem formalmente!
E a vacina russa?
Sem transparência, não há segurança! Sem transparência no processo todo, não sabemos se houve ética no desenvolvimento desta vacina! E é por debatermos cada etapa da ciência que temos avançado não apenas em resultados mais precisos contra doenças, mas temos buscado meios de fazer isto de modos cada vez mais seguros, levando-se em conta questões étnicas, de gênero, de faixa etária, de classe social. Ou seja, levando-se em conta a diversidade humana em todos os seus aspectos – e isso é uma luta antiga e importantíssima dentro do meio científico. Que foi (e têm sido – pois ainda temos muito o que conquistar na igualdade e equidade das populações) pauta do que é ciência, como a fazemos e aplicamos o método científico e, mais importante do que isso, para quem fazemos isso – a sociedade.
Compreendem a diferença? Não é ser negativo. Não é nos negarmos a querer que todos vocês – e nós – tenhamos novamente uma vida de idas ao supermercado sem neuras, abraços sem restrições e uma vida sem medo.
É exatamente o oposto disso. E não é, também, deixar de olhar para tudo o que ainda temos a fazer e conhecer para que a transparência e a ética sejam alcançadas em cada etapa de nosso trabalho. É exatamente para isto que estamos aqui e trabalhamos com divulgação científica! Por uma maior transparência, diálogo, inclusão no (e pelo) conhecimento para debate socialmente éticos.
Em suma, para fechar:
Com ou sem coronavírus, lamber corrimão não parece ser uma boa ideia, ok? ERA MEME GENTE. Mas o diálogo é real.
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Dia 11 de agosto, pela manhã, mais uma notícia: a vacina russa vai chegar em outubro! O presidente Putin informou que a fase de testes de eficácia já iniciou (o que seria a fase 3 de testes clínicos da vacina). Segundo a OMS, no registro consta que esta vacina ainda está na fase 1 (que testa a segurança da vacina).
vacinação em massa, em outubro?
Tal afirmação surpreendeu parte da comunidade científica.
Mas por quê?
Cada vez que anunciamos – aqui no blogs ou em qualquer canal de divulgação científica – uma pesquisa em andamento ou medicamentos e tratamentos em fase de pesquisa, temos tido o cuidado de verificar as informações e tentar compreendê-las para divulgar.
Uma das questões que rondam toda esta divulgação é a falta de transparência de cada etapa. Não vou me alongar aqui neste texto sobre as etapas em si, pormenorizadamente. Pois elas estão bem explicadas pelo Instituto Butantã e já foram pauta de uma longa live do Atila Iamarino. Também não detalharei questões específicas de questionamentos sobre a vacina, pois a Mellanie Dutra, da Rede Análise Covid-19, abordou muito bem. Mas vou falar do quê então?
Sobre a transparência nas pesquisas científicas em tempos de pandemia.
Pode parecer exagero. Mas as críticas têm sido razoavelmente constantes. Não é que não queiramos acordar e ver estampado nas notícias e notificações que a vacina é um sucesso, que terapias alternativas funcionam, que medicamentos baratos e disponíveis a todos curam! Não temos divulgado milagres apenas porque a ciência não funciona deste modo…
Antes de falar de transparência na pesquisa, vamos entender um pouco sobre pesquisa, a partir de vacinas?
As vacinas precisam destas etapas mencionadas anteriormente – e elas levam tempo sim – pois cada uma destas etapas responde a uma série perguntas. Por exemplo: ela têm efeitos colaterais? Quais efeitos são estes? Quantas pessoas (em média) apresentam efeitos colaterais e o que isto representa em uma grande população?
Em princípio, uma vacina é um modo preventivo em que nós inoculamos um vírus – ou fragmentos de vírus – para que nosso corpo gere uma resposta imunológica. Isto é: nós “enganamos” nosso sistema imune. Assim, quando entramos em contato com o vírus “mesmo” já temos uma resposta imunológica pronta.
Porém na prática há vários detalhes que tornam as vacinas algo que não é tão simples assim de ser implementada. Isto não quer dizer que vacinas não são seguras… É exatamente o contrário, na verdade.
As vacinas são cada vez mais seguras. Por quê? Ora, por termos implementado protocolos de segurança que se baseiam em um aprimoramento de nosso próprio conhecimento sobre as doenças, suas reações com anticorpos produzidos, suas ações dentro do corpo, tempo de ação e desenvolvimento de anticorpos, sintomas, etc.
Também temos compreendido melhor os efeitos adversos (quando existem) e o limite de imunização em uma sociedade, ou como ela ocorre na sociedade. Isto é, nem todo mundo será imunizado pela vacina, algumas vacinas precisam de várias doses para provocarem a imunização, algumas são alergênicas (causam alergia) em pessoas e temos que ter estas informações antes de sairmos vacinando 7 bilhões de pessoas.
A eficácia das vacinas hoje diz respeito a um conjunto de conhecimentos acumulados sobre nosso organismo, as doenças, junto com testes, experimentos, análises – que geram ainda mais conhecimento sobre as doenças e o funcionamento do nosso corpo.
Tudo isto é feito baseando-se no método científico.
Método científico?
As inovações, invenções e compreensões advindas da ciência não são uma busca cega e desordenada. Muito menos fruto de ideias criativas que estavam à toa por aí, sem atentar-se a questões, debates e pensamentos que abordavam fenômenos naturais e sociais. A frase clássica de Newton “se enxerguei mais longe foi porque me apoiei em ombros de gigantes” é, exatamente, sobre isso. Para falar sobre objetos e fenômenos naturais e sociais, também nos apoiamos em quem estuda objetos e fenômenos naturais e sociais.
É o quê, afinal de contas o método científico? O que ele têm a ver com tudo isso? De forma ampla, costuma-se falar em etapas ou sequências do método científico. O que seria isto?
método científico e suas idas e vindas
Observação de um fenômeno, elaboração de perguntas, elaboração de hipóteses (respostas possíveis para as perguntas pensadas previamente), resolução das hipóteses (aqui acontecem os planejamentos, organização e execução das etapas experimentais, observacionais, de campo, etc.), análise dos dados obtidos e conclusões. Isto é, esta sequência descrita são procedimentos que formam e consolidam os conhecimentos científicos.
Embora pareça linear, ao longo de uma pesquisa, outras perguntas e hipóteses vão se somando, sendo pensadas, descartadas – gerando novas pesquisas, ou agregando novos elementos que, também, serão testados experimentalmente.
Tá bom, mas e o que isto tem a ver com o anúncio da vacina russa?
Em meio a uma pandemia tão grave como a COVID-19, temos sim uma corrida para ver quem consegue os melhores tratamentos – isto inclui vacinas. No entanto, as vacinas necessitam respeitar este conjunto de etapas a que chamamos comumente de método científico.
Parte do “pôr à prova” os resultados e conclusões relaciona-se a apresentá-los à comunidade científica. Debater cada parte dos procedimentos do método científico – desde as perguntas, passando pelas hipóteses, protocolos experimentais, obtenção dos dados e, por fim, como analisamos os resultados!
Grande parte dos debates sobre o método científico (que não se limita às etapas experimentais e de campo, como muitos acreditam) é sobre a transparência do seu desenvolvimento e execução.
Vocês podem estar pensando que tudo isso atrasa ainda mais a implementação da vacina e de tratamentos viáveis. Mas apesar de parecer “muita coisa” estamos falando de estabelecer, historicamente, critérios éticos e de segurança para a pesquisa não causar prejuízos em populações vulneráveis, não ter efeitos adversos e incontroláveis na população, não testar experimentos sem que as pessoas saibam que estão sendo cobaias – concordem com isto de maneira livre e esclarecida, dentre outros fatores.
É exatamente a partir da divulgação de resultados, compartilhando as etapas da pesquisa, protocolando em comitês de ética, apresentando publicamente o que estamos fazendo, que nosso trabalho cotidiano de pesquisa ganha transparência, pode ser não apenas compreendido pelos colegas, mas replicado se for necessário. Isto é, podemos repetir os experimentos, aferir resultados, inserir novas variáveis e levantar questões que não tinham sido feitas anteriormente.
O que inúmeros veículos oficiais, científicos e jornalísticos apontaram ontem, dia 11 de agosto, é exatamente neste quesito: transparência.
Ah, finalmente chegaste nisso! A transparência na ciência!!!
As principais perguntas levantadas por cientistas, divulgadores científicos, instituições oficiais (como a OMS) foram: Onde estão os dados sobre a vacina? Quantas pessoas participaram como cobaia? De que forma aconteceram estes testes? Quem eram os sujeitos testados? Quais foram os efeitos colaterais? Se a vacina formou anticorpos, em quanto tempo foram feitos os testes? O tempo em que tudo isto ocorre é uma das grandes questões, por exemplo.
Na Revista Nature foi apontado que a vacina Russa (Vacina Gamaleya) declarou ter 76 voluntários para as etapas 1 e 2 listadas no ClinicalTrials.gov, mas sem qualquer divulgação dos resultados ou quaisquer estudos pré-clínicos anteriores. E há preocupação acerca destes protocolos de segurança, protocolos éticos e, também, receio de tudo isso gerar medo da população quando uma vacina eficaz esteja pronta para ser aplicada na população.
Veja que não queremos questionar a veracidade da vacina em si: mas se estão anunciando que em Outubro teremos vacinas disponíveis em algum lugar do mundo, queremos saber se elas são seguras e de que modo podemos confiar nisto que estão nos dizendo!
Enfim, a próxima parte
Este texto ficou razoavelmente longo, então juntamente com ele, outros questionamentos foram sendo levantados. Especialmente sobre como lidamos com informações científicas e os cuidados que devemos ter ao receber estas informações – sem cairmos no pessimismo, mas também sem nos animarmos achando que tudo se resolverá em um passe de mágica!
A segunda parte do texto fala sobre isso, corre lá para ler também!
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Texto escrito por de Gildo Girotto Junior, Gian Carlo Guadagnin, Cyntia Almeida e Maria Luiza
Entender as consequências da administração de substâncias em nosso corpo vai além da pandemia de coronavírus. É uma questão de educação científica e de saúde pública. A desinformação que tem circulado tem gerado não apenas polarização, em um momento inoportuno, mas também colocado em risco a saúde coletiva.
Qual o impacto que a administração de uma substância provoca no organismo? Realmente conhecemos quais efeitos um determinado alimento, medicamento ou qualquer outro produto pode provocar quando o ingerimos?
Recentemente, não apenas medicamentos têm sido alvo do debate na prevenção e cura contra a COVID-19. Os limites da insensatez ou do desconhecimento foram ultrapassados ao ponto de encontrarmos recomendações totalmente insanas e irresponsáveis. Por exemplo, com a administração de desinfetantes e, agora, de soluções contendo ozônio no combate a doenças. É preciso esclarecer alguns fatos. Assim, propomos neste texto, trazer explicações sobre a prática da administração de ozônio via retal recomendada, dentre outros, por um administrador público de uma cidade brasileira.
Ozônio e seus diferentes “buracos”
É possível que muitos dos que estão lendo este texto já tenham ouvido falar da “Camada de ozônio” ou do “Buraco na camada de ozônio”. Provavelmente, é a situação mais comum associada a esta substância. Em um outro contexto, o ozônio pode ser associado ao tratamento de água. O processo comercialmente conhecido como ozonização consiste em uma alternativa, ou um tratamento complementar da água, para a eliminação de bactérias. Neste procedimento, o ozônio reage quimicamente destruindo microorganismos e, com o surgimento da pandemia, esse mesmo princípio passou também a ser utilizada para a sanitização de ambientes.
Mais recentemente, uma terceira situação associada ao ozônio (sendo esta mais problemática) é o processo de ozonioterapia, um procedimento experimental que consiste na aplicação do ozônio em partes do corpo com intuito de eliminar doenças. Para entender um pouco sobre esses três usos, primeiramente vamos esclarecer um pouco sobre a composição e propriedades da substância em questão.
O ozônio tem em sua composição o elemento químico oxigênio. Entretanto diferente do gás oxigênio que é vital, sua fórmula é um pouco diferente, o que faz com que sua atuação química também seja. Parece confuso? Vamos tentar entender.
O gás oxigênio é formado por moléculas em que dois átomos de oxigênio estão unidos, representamos esta substância pela fórmula O₂. Já o gás ozônio tem suas moléculas formadas pela união de três átomos de oxigênio, e o representamos pela fórmula O₃. Essa pequena modificação faz com que as substâncias sejam bastante diferentes em termos de atuação.
moléculas de Oxigênio (O₂) e de Ozônio (O₃)
Conhecendo um pouco mais de cada molécula
Enquanto o gás oxigênio, por exemplo, pode se ligar a moléculas em nosso sangue como a hemoglobina (proteína responsável pelo transporte de oxigênio no sangue) sendo levado a diferentes partes do corpo e alimentando reações que nos fornecem energia, o gás ozônio é uma substância extremamente tóxica para o nosso organismo uma vez que, ao invés de se ligar às moléculas, tem o poder de destruí-las.
De fato, o ozônio tem um grande poder de reagir com outras substâncias causando a degradação destas e ao mesmo tempo sofrendo transformações. Assim, quando as moléculas de O₃ encontram outras substâncias elas literalmente “atacam” esses compostos causando a degradação, ou seja, destruindo essas moléculas. Quimicamente, dizemos que esse comportamento do ozônio é relacionado a uma molécula oxidante e bastante reativa.
Há outros exemplos de moléculas parecidas que têm comportamento bastante distintos. Você já deve ter ouvido falar de água oxigenada, certo? Enquanto a molécula de água (H₂O) é pouco reativa e vital para os seres humanos, a água oxigenada, que tem fórmula H₂O₂, é uma substância bastante reativa e também oxidante. Percebam que, mesmo a alteração sendo de apenas um átomo a substância muda completamente de propriedades. Ou seja, substâncias diferentes têm atuações diferentes.
Podemos agora voltar a falar dos usos do ozônio, tudo bem?
A “camada de ozônio”
Na nossa estratosfera (uma das partes da atmosfera terrestre que se encontra a mais de 11 km de altitude, acima da maior parte das nuvens) as moléculas de ozônio se formam naturalmente devido às diferentes condições existentes nessa região e essa grande quantidade de moléculas de O₃ tem uma função importantíssima na vida do nosso planeta. Simplificadamente dizemos que ali há uma camada de ozônio. Como assim? O que queremos dizer é que é uma região que possui muitas moléculas desse gás.
A radiação do sol carrega uma grande quantidade de energia. Se toda a energia chegasse ao planeta seria capaz de destruir algumas espécies vivas e causar diferentes problemas incluindo riscos a nossa pele. Entretanto, quando essa radiação chega à estratosfera, uma parte da energia é absorvida pelas moléculas de ozônio que se transformam em moléculas de gás oxigênio. Deste modo, o ozônio se degrada após absorver parte da energia solar, como se formasse um verdadeiro filtro solar. Como resultado, apenas uma parte do conteúdo energético dos raios solares “entra” no planeta, possibilitando condições de vida adequadas.
Esse ciclo de formação e destruição do ozônio pela absorção de energia solar é contínuo e natural. Portanto, o ozônio lá na estratosfera é benéfico e fundamental ao planeta e a todos que o habitam.
O ozônio no tratamento de água
Como mencionado anteriormente, as moléculas de ozônio são muito reativas, o que significa que “atacam” outras moléculas e tem o poder de destruir principalmente os compostos orgânicos, como as proteínas, que compõem microorganismos, bactérias, nossa pele, nossas células, etc. Então podemos imaginar que se água estiver contaminada com agentes causadores de doenças (vírus, bactérias, protozoários, por exemplo) o gás ozônio borbulhado nesse sistema reagirá matando os microorganismos e contribuindo para a potabilidade da água.
De fato, isso ocorre e é possível utilizar o processo no tratamento de água para o consumo ou para ambientes como piscinas. Esse processo tem sido utilizado como uma alternativa ao uso de “cloro” e a vantagem é que após a reação, o ozônio se transforma em oxigênio, não deixando resíduos na água. Então, a água não fica com aquele “gosto ou cheiro de cloro”. Em larga escala esse processo ainda é mais caro do que o uso de “cloro” e, por isso, as empresas que cuidam da nossa água ainda não fazem esse tratamento.
Mas você deve estar se perguntando: o que tudo isso tem a ver com o tratamento para a COVID-19?
Finalmente chegamos lá.
A ozonioterapia é, na melhor das hipóteses, um método experimental que consiste na administração de ozônio de forma localizadaouintravenosa (aplicação nas veias) ou via retal (ânus) com objetivo de combater infecções diversas. (veja nosso texto sobre método científico e entenda a diferença entre hipótese e resultados científicos comprovados aqui)
Já mencionamos sobre a reatividade do ozônio e seu poder oxidante, certo? Desta forma, imaginemos que uma pessoa possua uma infecção superficial na pele. Diversos tratamentos poderiam ser realizados neste caso sendo um deles (ainda experimental) a aplicação de ozônio diretamente sobre a região. Assim, o ozônio reagiria destruindo possíveis micro organismos causadores da infecção. A depender do tipo de infecção e do grau de complexidade, uma intervenção desse tipo, considerada de forma localizadapoderia funcionar como têm sido apontado em estudos teste realizados¹. Seguindo a mesma ideia, outros estudos têm investigado a administração de ozônio diretamente em regiões internas no corpo que possuem células cancerosas e/ou infecções².
Um fator importante que deve ser destacado é que, sem exceções, os estudosafirmam que não há resultados 100% conclusivos (devido a fatores diversos) e a ozonioterapia é sempre considerada como tratamento experimental, ou seja, em fase de teste e ainda, nenhum dos casos mencionados têm relação com a administração retal de ozônio.
Mas então, como o ozônio por administração retal pode combater a COVID-19?
A resposta é bastante simples. NÃO PODE!
Vamos repetir aqui só para deixar bem evidente, caso tenha ficado alguma dúvida sobre o que estamos argumentando neste texto:
O OZÔNIO COM ADMINISTRAÇÃO RETAL NÃO COMBATE A COVID-19
Mas pode usar ozônio como tratamento para Coronavírus? Não! Não pode!
Ao injetarmos a molécula em qualquer parte do nosso corpo ela rapidamente reage degradando as substâncias que estiverem em contato, e ela mesma, a molécula de ozônio, sofre transformações produzindo novas substâncias.
Portanto é inimaginável que a substância injetada chegue às células onde o coronavírus se encontra (as quais estão espalhadas por todo o corpo), uma vez que ela teria que percorrer um longo percurso. Então, a menos que todo o vírus esteja concentrado na região onde se injetou o ozônio, não haveriam consequências benéficas e, mesmo nesta situação, não se têm estudos a respeito.
Para se ter ideia, a própria Sociedade Brasileira de Ozonioterapia afirmou que “O efeito da ozonioterapia em humanos infectados por coronavírus é desconhecido e não deve ser recomendado como prática clínica ou fora do contexto de estudos clínicos”. Isto é, não há qualquer evidência e comprovação científica de que isto pode ser usado para cura e/ou tratamento da Covid-19!
Ainda, o Conselho Federal de Medicina, em sua resolução 2.181, DE 20 DE ABRIL DE 2018, estabelece “a ozonioterapia como procedimento experimental, só podendo ser utilizada em experimentação clínica dentro dos protocolos do sistema CEP/Conep.”³, o que basicamente nos diz: “olha, isso precisa ser testado porque ainda não temos comprovação de qualquer efetividade”.
Mas, será que há efeitos prejudiciais? Sim. Basta pensarmos que estamos injetando uma substância extremamente agressiva em uma região relativamente sensível.
Enfim, entender as consequências da administração de substâncias em nosso corpo vai além da pandemia de coronavírus. Isto é uma questão de educação científica e de saúde pública. A desinformação que tem circulado gera não apenas polarização num momento inoportuno, mas também coloca em risco a saúde coletiva. Ou seja: sigamos e fiquemos atentos e informados. Afinal, Ozônio na COVID dos outros é refresco.
Gildo Girotto Junior é Licenciado em Química (UNESP), Doutor em Ensino de Química (USP) e atualmente é professor e pesquisador no Instituto de Química da Unicamp
Gian Carlo Guadagnin é estudante de graduação em Licenciatura em História (UNICAMP)
Cyntia Almeida é estudante de graduação em Licenciatura em Química (UNICAMP)
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Dia 11 de março a Organização Mundial da Saúde decretou que a COVID-19 tornou-se uma pandemia. Parece, hoje, distante o período em que escutávamos sobre uma doença que rapidamente se espalhou em uma cidade na China e tentávamos entender as ações de bloqueio e isolamento lá.
Também pareciam exageradas as ações ocorridas na Itália, em meio a um carnaval, com suspensão das festas e um fechamento de toda uma região do país. No Brasil, as atividades rotineiras se intensificavam na volta das férias e fim dos festejos – ainda que olhássemos para os números de doentes confirmados e buscássemos informações mais precisas.
Hoje, 8 de agosto, temos 150 dias de pandemia decretada. Neste meio tempo, a palavra pandemia não é mais desconhecida de nosso vocabulário mais mundano.
Pandemia
Pandemia:
“disseminação MUNDIAL de uma doença ou surto com transmissão comunitária”
Não foi a primeira vez, neste milênio, que uma pandemia fora decretada. Em 2009 a OMS anunciou uma “pandemia moderada”: a H1N1. Essa pandemia ficou conhecida como “Gripe Suína”. No Século XX foi causadora da pandemia estudada nos nossos livros de história como “Gripe Espanhola”.
A primeira pandemia foi registrada em 1580, iniciou-se na Ásia e espalhou-se em 6 meses. O Tifo (surgido no período das cruzadas) foi uma doença que de tempos em tempos têm suas marcas na história – mas não apresenta registro como pandemia. A Cólera teve 8 episódios pandêmicos registrados.
A palavra Pandemia vem do grego, quer dizer “de todo o povo”. É interessante pensarmos como algo com esse significado parece tornar uma mazela democrática.
Mas em se tratando de ciência, espantou-nos como em poucos dias alguns termos iam popularizando-se. Ficou comum, em março, falarmos em transmissão comunitária. Isto significa que pessoas que não tinham tido contato com pessoas estrangeiras já estavam transmitindo a doença.
Em pouco tempo outras palavras comuns ao meio científico da virologia começavam a se espalhar – mais lentamente que o vírus, mas ainda assim tomavam ares cotidianos. Também víamos a ascensão do debate sobre a prática do isolamento e distanciamento social sendo debatida e outros costumes tão fora da cultura brasileira – como o uso de máscaras – entrando na pauta do dia.
Por vezes parecia que a ciência teria seu momento e junto com a divulgação científica teriam o destaque que temos batalhado para ter. Não dizemos isso por uma ideia autocentrada e de autovalorização ou qualquer coisa que o valha (bem pelo contrário, na verdade). Mas por um trabalho de resistência de anos, construído no combate de fake news, de buscar a compreensão da ciência como ferramenta cotidiana de resolução de problemáticas mundanas.
Mas voltando a pauta da Covid-19, inicialmente em São Paulo, mas muito rapidamente em Manaus, tivemos o alastramento da doença. Enquanto acompanhávamos a Itália atingindo 827 mortes no dia, e um total de 13 mil contaminados confirmados em um país que assumiu o lockdown, o Brasil confirmava 69 pessoas. São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Bahia e Distrito Federal eram os locais com registro.
No entanto, o primeiro lugar a enfrentar o colapso de hospitais foi Manaus. Em pouco tempo vimos imagens de covas coletivas ocupando noticiários na televisão e nas mídias sociais. Dia 24 de março era anunciada a primeira morte na capital de Amazonas, dia 8 de abril as reportagens de falta de leitos de U.T.I. anunciavam o colapso.
Na América do Sul, Equador foi o primeiro país a entrar nos noticiários sobre o colapso. Em 1º de abril já havia informações sobre corpos sendo recolhidos em casa e hospitais lotados. A Argentina agiu rapidamente com ações de isolamento social instituídas pelo governo federal e, até hoje, tem um dos menores números de morte da América do Sul.
Balanço geral
No mundo, o coronavírus chega a quase 19 milhões de infectados e ultrapassa 700 mil mortos. Deste total, quase 100 mil mortes são brasileiras. São 100 mil pessoas, familiares de alguém, com nomes, sobrenomes, profissões, relações sociais.
Enquanto a doença parecia longínqua e estrangeira, o compadecimento com as imagens, talvez, parecesse maior. Atualmente vivemos um paradoxo entre o cansaço do isolamento social – aqueles ainda têm o privilégio de estar isolado e trabalhando em home office – e os riscos rotineiros de quem teve que abandonar a indicação mais segura de saúde que temos no momento, pois a escolha entre ter comida na mesa ou a possibilidade de contaminar-se não é, de fato, uma escolha.
Estamos completando 150 dias vivendo uma pandemia. A OMS também anunciou que a infodemia é um dos maiores agravantes da doença. Além disso, temos as fake news que vem assolando as possibilidades de alcançarmos a população de modo mais eficiente…
pandemia: e o Brasil?
Nestes 150 dias, já são 85 – mais da metade – com um Ministro da Saúde “provisório”. Tivemos episódios de apagão dos números oficiais. Temos uma avalanche de desinformação proveniente de instâncias oficiais. Protocolos que indicam medicamentos que cientificamente não são recomendados, planos de saúde que enviaram aos médicos “kits” anti-covid preventivos, com os mesmos medicamentos recomendados pelo governo – mas não pela Organização Mundial da Saúde. Fechamos o dia 07 de Agosto com 99.572 óbitos. Hoje, 8 de agosto, passaremos as 100 mil mortes, conforme a média diária que temos visto.
Há um quadro que temos visto ser debatido politicamente como Necropolítica. A morte normalizada e normatizada, quase triplicamos as mortes que nos assombravam na Itália – aquele país europeu, lembra? Pois é, soma cerca de 35 mil mortos.
As mortes tornaram-se parte de uma população, no Brasil, que não é mais proveniente das férias em países Europeus ou Norte Americanos. Em maio, foi noticiado um outro perfil de mortes em nosso país. Não mais a faixa etária, mas a classe social. Também há demarcação racial (40% pardos e pretos, frente à 26% de brancos). Entre mulheres grávidas, mais do que o dobro são de pretas, em relação às brancas na mesma condição.
Para além das comorbidades que vem sido estudadas cada vez mais, a PANDEMIA, aquela que é significada como “de todo o povo” e aparenta ser democrática no próprio nome, tem preferências cruéis. Definitivamente ter mais melanina em países como o Brasil, mais do que uma condição biológica e genética, demarca espaços sociais ocupados. A imensa maioria da população desassistida da condição de permanecer em casa em programas de home office são trabalhadores informais ou de baixa renda em que a negociação para condições humanas e de manutenção da saúde não são parte do cotidiano – mas a doença sim.
Por fim
Não há finalização amena de postagens em tempos de Covid-19, enquanto temos a centralidade das mortes causadas por descasos na condução das políticas públicas de saúde no país. Também é fundamental pensar o quanto se fala em retorno de atividades como aulas, quando há um evidente descontrole das transmissões no país – a marca de que temos pressionado pessoas e não instâncias e instituições – para mantermos a saúde dentro de todas as condições que temos o potencial de manter (mantendo pessoas, assim, a salvo!).
Por outro lado, mesmo sabendo que nem tudo são flores, há uma corrida pela vacina, há grupos de pesquisa desvendando mais e mais rotas de como este vírus nos contamina e se transmite. Bem como uma compreensão cada dia maior dos determinantes sociais da doença.
E de que serve tudo isto?
Compreender a doença, seus números e seus detalhes – dentro e fora do corpo, na sociedade, dentro das sociedades – é o que nos dá cada dia mais condições de vencê-la.
Assim, temos trabalhado cotidianamente buscando divulgar o conhecimento produzido, em uma rede coletiva e mundial de pesquisadores. Se não buscamos soluções milagrosas, não é por não querermos divulgar algo positivo.
Em 150 dias de pandemia (e destes temos 139 dias de Especial Covid-19 aqui no Blogs de Ciência da Unicamp), reafirmamos que nosso trabalho segue empenhado diariamente em entender melhor a ciência embrenhada em entender tudo o que envolve o novo coronavírus e a Covid-19 e apresentar todo o conhecimento possível em nosso tempo para a todos.
Em 150 dias de pandemia, não há cansaço, não há fake news e desinformação – de acidez do limão, à cloroquina e hidroxicloroquina, chegando no uso de ozônio (calma que em breve teremos algo sobre isso!!!) – não há necropolítica, não há normalização de mortes que nos afaste disto que assumimos como compromisso com a divulgação científica e com a busca cotidiana de diálogos estabelecidos entre cientistas e a população não especialista.
Foram 150 dias de pandemia, 145 dias afastados da Universidade (quem está em home office), 139 dias de Especial Covid-19. Não esperamos (ou não gostaríamos) de mais dias assim. Tampouco “não arredaremos o pé daqui”, enquanto isto for necessário.
Quem está acompanhando as notícias sobre o novo coronavírus, causador da Covid-19, deve ter visto sobre grupos de risco e associação com algumas doenças que várias pessoas têm. Muito se fala em grupo de risco, por exemplo. Isto em função de buscarmos, com isso, minimizar os impactos na saúde, destas pessoas que podem apresentar casos mais severos da doença. Assim, ao conseguirmos saber quais são os grupos de risco, conseguimos estabelecer quem deveria se expor menos ainda às possibilidades de contágio. Uma das doenças que muito cedo foi percebida como grupo de risco é a diabetes.
Mas você sabe o que é a diabetes?
De modo bem sucinto, a diabetes é uma doença caracterizada pela insuficiência da produção de insulina ou diminuição na sensibilidade e função da insulina. A insulina é um hormônio. Ela é produzida no pâncreas e têm como função controlar a quantidade de açúcar que está em circulação nos nossos vasos sanguíneos. Basicamente, uma das principais ações da insulina é se ligar em receptores que ficam nas membranas das células e promover, assim, a entrada do açúcar nestas células, retirando-o da corrente sanguínea.
Quando nosso corpo produz pouca insulina (insuficiência de produção deste hormônio) ou diminui à reação na presença de insulina (diminuição na sensibilidade à insulina), o que acontece é que o açúcar não é metabolizado corretamente, isto é: as células não conseguem retirá-lo do sangue e ele permanece em circulação, ficando em excesso. Este excesso, em si, causa uma série de problemas no funcionamento do nosso corpo.
E qual a relação entre a quantidade de açúcar no sangue e a Covid-19?
Icons made by DinosoftLabs / Flaticon
Pois esta é a pergunta que um grupo de pesquisadores aqui da Unicamp também se fez! E, mais do que isso, tentou compreender os mecanismos químicos e fisiológicos que fazem com que o excesso de açúcar no sangue aumente a probabilidade de pessoas infectadas com o SARS-CoV-2 apresentarem casos mais severos da doença Covid-19!
Esta pesquisa mostrou que o açúcar favorece a infecção pelo novo coronavírus e sua replicação no interior dos monócitos. (ah, ok, agora entendi tudo!). Como assim, monócitos? Calma, a gente vai chegar lá…
Os monócitos são células de defesa do organismo. Ou seja, eles circulam no sangue e são “recrutados” para irem até os tecidos infectados ou danificados – como os pulmões no caso da Covid-19, para combater a doença. Essas células de defesa são as mais abundantes no pulmão de indivíduos infectados com o novo coronavírus, de forma que é fundamental entender a resposta dessas células quando em contato com o coronavírus.
O que acontece é que o coronavírus usa a glicose (açúcar) como combustível para sua replicação no interior destes monócitos. Como um dos principais órgãos afetados pelo coronavírus é o pulmão, quando nosso corpo detecta a infecção, envia uma grande quantidade de monócitos até lá – pois é uma célula importante de defesa. Acontece que o pulmão é, também, um órgão altamente vascularizado! Isto é, além de monócitos, no sangue de pessoas que têm diabetes quando não está sob controle, há um excesso de glicose chegando ao pulmão também.
Assim, o coronavírus usa a célula que teria o potencial de nos defender contra a infecção para se replicar e aumentar a infecção ainda mais.
Espera que isso ainda não é tudo…
Uma vez infectados, os monócitos produzem grandes quantidades de proteínas que geram inflamação, chamadas de citocinas. Essas citocinas são importantes na resposta contra patógenos ou danos, principalmente na ativação de outras células de defesa, como linfócitos T. Já os linfócitos T são essenciais para eliminar células infectadas por vírus ou para auxiliar os monócitos a eliminarem esses patógenos quando eles precisam de um estímulo! Durante a infecção pelo SARS-CoV-2, no entanto, há uma produção excessiva de citocinas. Isto tem sido comumente chamado de tempestade de citocinas! E ela é danosa ao tecido e também aos linfócitos T. Nessa pesquisa, foi apresentado que as células epiteliais do pulmão quando entram em contato com essa tempestade de citocinas morrem. Os linfócitos, por sua vez, perdem a capacidade de proliferação e acabam se tornando “exaustos”.
Pareceu confuso? Isto foi só um spoiler do nosso próximo texto, em que vamos esmiuçar o que é essa “tempestade de citocinas” e sua relação com a infecção pelo coronavírus!
Por fim…
Falando assim, tudo isto, parece tudo muito trágico, não é mesmo? Esta pesquisa que apresentamos não fala de tratamentos possíveis. Tampouco nos indica a cura. Esta é uma pesquisa que costumamos chamar, na universidade, de “pesquisa básica”. Para além da aparente curiosidade que move uma pesquisa como esta que apresentamos, é fundamental em um momento como este que estamos vivendo entender detalhes químicos e moleculares desta doença. Saber como funcionam os tecidos, órgãos e células do nosso corpo (o que a biologia estuda há séculos) nos dá condições para termos, desde que percebemos esta nova doença, perguntas mais direcionadas para solucionarmos este grande quebra-cabeças que é a cura/tratamento para o novo coronavírus.
Assim, é a partir de pesquisa básica que entendemos de forma detalhada o processo químico, fisiológico, molecular da infecção. Toda esta pesquisa pode apontar possíveis alvos para, aí sim, conseguirmos alcançar tratamentos, ou diminuir o risco para pessoas que estão nestes grupos mais afetados.
Força Tarefa da Unicamp
O artigo que embasou esta postagem faz parte de um conjunto de postagens sobre as pesquisas científicas que a Unicamp vem fazendo desde o início da pandemia, no que chamamos “Força Tarefa”. O Especial Covid-19, do Blogs de Ciência da Unicamp, participa da Força Tarefa desde o início, com a divulgação científica sobre a doença. Mas também vai se dedicar à publicação destes conhecimentos produzidos especificamente pelos pesquisdores da Unicamp cada vez mais! Acompanhe as próximas postagens!
Ana Campos Codo – Farmacêutica-bioquímica de formação e apaixonada por Ciência, Imunologia e Star Wars. Atualmente faz mestrado em Genética e Biologia Molecular com ênfase em Imunologia e participa da Força-Tarefa da Unicamp, tem interesse em temas diversos
Ana Arnt – Bióloga, Mestre e Doutora em Educação. Professora do Departamento de Genética, Evolução, Microbiologia e Imunologia, do Instituto de Biologia (DGEMI/IB), do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM) e do Programa de Pós-Graduação em Genética e Evolução. Pesquisa e da aula sobre História, Filosofia e Educação em Ciências, e é uma voraz interessada em cultura, poesia, fotografia, música, ficção científica e… ciência! 😉
Há mais de 8 meses, um novo vírus surgiu na China e espalhou-se pelo mundo em poucos meses gerando uma pandemia em um nível que não víamos há mais de um século. O SARS-CoV-2 logo foi identificado e os sintomas de sua doença, nomeada de Coronavirus Disease 2019 (Covid-19) foram descobertos, com toda a comunidade científica se voltando para ele e avaliando os problemas respiratório que causava.
De lá para cá, muitas coisas foram descobertas tais como a porta de entrada do vírus nas nossas células, a chave que ele usa, sua possível origem e até sintomas que não esperávamos que ele pudesse causar a primeira vista.
Por exemplo, vocês já devem ter lido ou ouvido falar de pessoas que apresentam infecções renais ou no fígado por causa da Covid-19. Além disso, há relatos de problemas neurológicos, vasculares, no intestino… Se olharmos “de fora”, muitas vezes não parece haver qualquer sentido em um vírus que causa Síndrome Respiratória afetar estes órgãos e sistemas, correto?
Para entendermos melhor estas relações, na verdade, temos que entender um pouco mais sobre a fisiologia do nosso organismo.
No post de hoje eu vou falar um pouco sobre alguns hormônios e proteínas que estão relacionados à entrada do SARS-CoV-2, o novo coronavírus, nas nossas células, para em uma próxima postagem falarmos sobre como isso afeta diferentes órgãos no nosso corpo.
Como se dá uma infecção viral em uma célula?
Tudo começa com um vírus no ambiente, seja no ar, água, terra, ou alimentos. Nós ingerimos ou respiramos esse vírus e ele acaba entrando em contato com nossa mucosa (aquela parte do corpo que reveste o nosso interior) respiratória, gastrointestinal ou até mesmo urinária. A partir daí, o vírus tem um único objetivo: invadir nossas células. Mas fazer isso não é fácil, pois nossas células tem um controle rígido do que elas permitem entrar e sair. Dessa forma, cada vírus precisa desenvolver uma chave para uma fechadura das nossas células.
E essas chaves são as proteínas, um dos tijolos fundamentais que permitiu que a vida – como conhecemos – pudesse existir. Existem milhares de proteínas no nosso corpo, cada uma especializada em uma função diferente: transporte de oxigênio (a Hemoglobina), quebra do açúcar (chamado de Glicose) para a produção de energia (as chamadas Enzimas), contração muscular (Actina e Miosina), defesa contra patógenos (os Anticorpos), entrada e saída de substância pela membrana das células (os Transportadores), recebimento e envio de sinais químicos (os Receptores) e muitas outras funções.
Muito bem, uma vez que o vírus consegue desenvolver uma proteína que é reconhecida por uma célula, ele começa todo o processo de entrar nessa célula. Um detalhe que precisa ser dito aqui é que os vírus (assim como as células) não tem consciência própria e não desenvolve proteínas por que quer. Usamos esse vocabulário aqui simplesmente para conseguir explicar melhor. É preciso deixar claro que é por causa da Evolução que os vírus – e outros patógenos – desenvolvem formas de invadir nossas células e nosso corpo, assim como é pela evolução que nosso sistema imune desenvolve formas de combatê-lo. Todo esse processo é chamado Co-evolução.
Mas voltando para esses invasores microscópicos, quando eles conseguem ter uma chave para uma fechadura da célula, ele a invade. Algumas vezes ele deixa a sua “casca” para trás, injetando somente seu material genético (como aqueles famosos vírus com forma de aranha, os Fagos), enquanto outros fundem sua membrana com a da célula e liberam seu material genético e proteínas dentro da célula. Pois é nesse momento que o vírus começa a escravizar a célula para ela produzir milhares de novas cópias deles, até que a célula estoura e libera essas novas cópias no ambiente, para infectar novas células. E todo o ciclo recomeça.
Mas peraí, se um um vírus precisa desenvolver uma chave específica para entrar em uma célula de um tipo, como as células do pulmão, como ele pode entrar em outros tipos celulares, como as células do rim, intestino e cérebro?
A verdade é muitas das nossas proteínas são compartilhadas, a maioria delas. Assim, isso faz com que uma célula do pulmão expresse um mesmo conjunto de proteínas de uma célula do cérebro, ou do intestino. E isso abre porta para um vírus (ou outro patógeno) acabar se espalhando de um órgão para o outro, como o SARS-CoV-2.
Se os vírus precisam de portas de entrada para as células, quais são as chaves?
A principal porta de entrada para o SARS-CoV-2 é um receptor celular chamado ACE2, ou, Enzima Conversora de Angiotensina 2. Mas calma! Eu sei que este é um nome muito estranho! No entanto, o que esta molécula faz é muito “simples”: o ACE2 converte um hormônio em outro.
Resumidamente, esses dois hormônios – a Angiotensina 1 e Angiotensina 2 – são responsáveis por controlar a contração e dilatação dos vasos sanguíneos, o nível de fibrose, inflamação e trombose. Enquanto a Angiotensina 1 aumenta todos esses efeitos (levando a um quadro mais pró-inflamatório), a Angiotensina 2 diminui eles (levando a um quadro mais anti-inflamatório).
O que se sabe atualmente é que com o vírus se ligando ao ACE2, ele acaba retirando essa molécula da membrana das células, impedindo que ela cumpra sua função. Dessa forma, a Angiotensina 1 não é convertida em Angiotensina 2. Com um aumento da Angiotensina 1, o seu efeito no corpo prevalece: aumentando a vasoconstrição, risco de trombose e favorecendo um cenário mais pró-inflamatório. Assim, todos estes acontecimentos acabam levando à forma mais severa da Covid-19.
Além disso, há outros dois fatos interessantes e que foram descobertos recentemente: além do ACE2, o SARS-CoV-2 necessita de uma outra molécula para entrar nas células. (Respira que lá vem mais nomes estranhos!!!) O TMPRSS2 é uma sigla complicada para designar uma proteína simples: ela é como uma tesoura, que literalmente corta ao meio outras coisas. Como assim? Você já deve ter escutado sobre a famosa e tão falada Spike. A Spike é cortada após se ligar ao ACE2, o que acaba coincidindo com a liberação do material genético do vírus dentro da célula 1,2.
Mas ainda tem mais: a segunda descoberta é referente ao ACE2 e os famosos interferons (quem é mais velho por aqui pode reconhecer esse nome como um dos primeiros antivirais usados no combate ao HIV). Comparando informações de bancos de dados moleculares de camundongos, primatas e humanos, pesquisadores descobriram que um tipo de interferon liberado pelas células de defesa durante o combate ao coronavírus aparentemente é capaz de estimular as células a expressarem mais o ACE2, tornando elas mais suscetíveis à entrada do vírus e consequente contaminação 3.
Com esses conhecimentos em mãos, vários pesquisadores se perguntaram se o ACE2 também seria expresso em outras células. Assim, com essa ideia, viu-se que esse receptor era expresso em vários outros órgãos tais como o coração, rim, fígado, intestino, muitas vezes em níveis mais altos do que no pulmão 4-7.
E assim surgiu a grande pergunta: se o SARS-CoV-2 usa essa molécula para entrar nas células do pulmão que a expressam, ele seria capaz de infectar células de outros órgãos que também expressam o ACE2? É esta a pergunta que vou responder a vocês, leitores, na próxima postagem! Segue lá!
S Matsuyama, N Nao, K. Shirato, M. Kawase, S. Saito, I. Takayama, N. Nagata, T. Sekizuka, H. Katoh, F. Kato, M. Sakata, M. Tahara, S. Kutsuna, N. Ohmagari, M. Kuroda, T. Suzuki, T. Kageyama, M. Takeda, (2020) Enhanced isolation of SARS-CoV-2 by TMPRSS2-expressing cells. Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A. 117, 7001–7003
Kuba K, Imai Y, Ohto-Nakanishi T, Penninger JM (2010) Trilogy of ACE2: a peptidase in the renin-angiotensin system, a SARS receptor, and a partner for amino acid transporters. Pharmacol Ther; 128:119–28.
South AM, Diz D, Chappell MC (2020) COVID-19, ACE2 and the cardiovascular consequences. Am J Physiol Heart Circ Physiol 318(5):H1084–90.
Este texto é original e escrito com exclusividade para o Especial Covid-19
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Assim, os autores produzem os textos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e que são revisados por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Dessa forma, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Sem dúvidas, todos nós fomos pegos de surpresa com essa pandemia e com os impactos dela em nossa rotina diária. E qual foi o impacto de todas essas mudanças na sua pesquisa e na sua forma de fazer ciência?
Um grupo de pesquisadores, em sua maioria de Harvard, resolveram investigar como os pesquisadores estavam respondendo às mudanças ocasionadas pela pandemia e, para isso, distribuíram um questionário para diversos pesquisadores e professores universitários no dia 13 de Abril. A ideia deles foi espalhar esse questionário para cientistas de diversas áreas nos Estados Unidos e na Europa um mês após a declaração de pandemia pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Eles tinham o intuito de comparar o desempenho desses profissionais pré e pós pandemia, e identificar quais características estavam afetando mais o desempenho desses pesquisadores.
Com 4.535 respostas, durante a análise dos resultados eles identificaram um grande impacto na quantidade de horas trabalhadas, que foi reduzida de 61h para 54h semanais. Mas é preciso considerar que 55% dos participantes indicaram uma redução, e que uma parcela relativamente significante (18%) apresentou um aumento nas horas trabalhadas.
Com isso em mente podemos nos perguntar em seguida se as pessoas que estão nesses grupos têm alguma característica em comum. Quais foram as áreas mais afetadas? Qual foi o gênero mais impactado pela pandemia quando falamos em horas de pesquisa? Em qual desses grupos você se identifica?
Eles observaram nesse trabalho que as pessoas que mais tiveram redução no tempo dedicado à pesquisa (30% e 40%) foram cientistas que precisam estar em laboratório físico, englobando principalmente áreas de ciências biológicas, bioquímica, química e engenharia química. Enquanto áreas de economia, matemática e ciências da computação apresentaram uma redução menor.
Mas a parte mais interessante, na minha opinião, é que analisando esses dados eles identificaram que o trabalho de pesquisadores com dependentes jovens em casa (pelo menos um dependente de até 5 anos de idade) foi muito mais afetado pela pandemia, com uma redução de 17% de horas dedicadas a pesquisa quando comparados com outros grupos. E ao levarmos isso para a discussão de gêneros, as mulheres apresentaram um redução maior (~5%) nas horas dedicadas a pesquisa quando comparadas aos homens.
O trabalho apresenta diversos pontos fracos a serem considerados, que impedem a sua utilização para conclusões mais gerais acerca de quais grupos realmente tiveram sua pesquisa mais impactada, mas ao mesmo tempo, ele abre caminho para diversos outros questionamentos, inclusive sociais.
Nessa pesquisa, só foi considerado o impacto em pesquisadores e professores, mas qual o impacto que atingem os estudantes? Quantos moram longe da família e foram mantidos afastados totalmente de um convívio social? Quantos arriscam suas vidas todos os dias para desenvolverem pesquisas em COVID-19 nas bancadas? Quantos estão em desespero por terem prazos a cumprir ou por não saberem se terão bolsas no próximo ano? Como medir o real impacto causado pelo estresse e pela ansiedade da situação na pesquisa?
As perguntas são sempre muitas, e pra mim, a única que realmente devemos considerar nesse momento, é “Como reduzir os danos da pandemia na nossa saúde mental e na nossa rotina de trabalho dentro da pesquisa?”.
É preciso aprender a definir as nossas prioridades (de trabalho e pessoal) e a distribuir o nosso tempo de acordo com elas. É preciso nos olharmos com mais ternura e compaixão e entendermos que nós também somos humanos. É preciso buscar ajuda quando não damos conta. É preciso dizer não quando não nos fará bem. E é preciso decidir sempre, com consciência e com sabedoria, afinal, a única pessoa a arcar com a consequência das suas escolhas, será você mesmo. O lado maravilhoso disso? Ao decidirmos o que fazer com a nossa vida, nós podemos escolher o que nos faz feliz e o que nos faz bem, e ninguém NUNCA saberá mais o que você precisa, do que você mesmo.
E se eu puder dar algum conselho: Agarre essa oportunidade com unhas e dentes, decida tudo que você puder decidir, descubra quem está com você independente de quem você seja ou de que decisões você tome, divirta-se fazendo a sua pesquisa, agradeça sempre, ame muito e seja feliz, só por hoje.
Referências:
Myers, K.R., Tham, W.Y., Yin, Y. et al. Unequal effects of the COVID-19 pandemic on scientists. Nat Hum Behav (2020). https://doi.org/10.1038/s41562-020-0921-y
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
A resistência a antimicrobianos (RAM) é conhecida como um problema que não tem fronteiras e é um problema global. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a OMS, uma pandemia é caracterizada por sua disseminação e não necessariamente pela gravidade da doença. Indiscutivelmente, a RAM também pode ser considerada uma pandemia que embora seja mais insidiosa e com menos efeitos imediatos na vida cotidiana, possui impactos negativos potencialmente mais amplos. Vamos entender por que isso acontece nesse post. Vem com a gente!
Como falamos anteriormente, o uso de antimicrobianos está aumentado pelo uso dessas drogas no tratamento e na “prevenção “ da covid-19 tanto no ambiente hospitalar quanto na comunidade. Curiosamente, a resistência das bactérias aos antimicrobianos, que é sempre uma preocupação no meio hospitalar, parece não estar recebendo a devida atenção nesse momento. É por isso que muitos cientistas da área estão tentando chamar a atenção para a importância de um potencial agravamento da pandemia global de RAM.
As UTIs, locais onde concentram os pacientes mais graves da covid-19, são epicentros comuns para o desenvolvimento da RAM. O uso exacerbado de antimicrobianos pode, portanto ter grandes consequências em hospitais que já apresentam elevada prevalência de bactérias resistentes a múltiplas drogas, levando a um aumento de mortalidade devido ao reduzido arsenal de antibióticos para tratar as infecções ou coinfecções adquiridas. Portanto, há comprometimento também de pacientes pós-cirúrgicos, transplantados ou quimioterápicos, por exemplo. Como terminamos falando no post anterior, não estamos falando que não se deve usar antimicrobianos nem que as coinfecções devam ser subestimadas. Mas os profissionais de saúde devem considerá-las num plano integrado para limitar o fardo da morbimortalidade durante a pandemia da covid-19 e, ao mesmo tempo, evitar um possível agravamento da RAM.
Uma medida muito disseminada de proteção contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2) é a higienização das mãos… medida excelente, funcional e simples! Porém, muitas vezes realizada com o uso de sanitizantes ou sabões antibacterianos, que contém agentes químicos que, apesar de não adicionar muita coisa em termos de proteção, podem dar gatilho para a resistência antimicrobiana. E isso acontece porque um dos mecanismos de resistência das bactérias são bombas de efluxo que literalmente jogam os antimicrobianos para fora da célula. Muitas vezes, as bombas que conferem resistência a esses sanitizantes são as mesmas daquelas necessárias para conferir a RAM.
Esses agentes biocidas caem na rede de esgoto e chegam ao ambiente, onde acabam elevando as concentrações dessas drogas. Claro que no caminho essas drogas são diluídas, mas temos que considerar a concentração final desses agentes… Se muito elevadas, muitas bactérias vão morrer, isso pode impactar negativamente os ecossistemas e, ao mesmo tempo, evitar o desenvolvimento da RAM. Porém concentrações baixas (sub-inibitórias) podem aumentar a pressão seletiva e promover oportunidades para o surgimento e a seleção da RAM. De forma muito simplificada, concentrações sub-inibitórias dessas drogas ativam vias de respostas ao estresse que, por sua vez, aumentam a ocorrência de mutação nas bactérias. Isso está relacionado a uma maior taxa de variabilidade entre entre as células bacterianas e, portanto, a maiores possibilidades do surgimento e seleção de indivíduos resistentes daquela população. O fenômeno da seleção sub-inibitória é muito bem estudado para antibióticos, mas pouco para biocidas. Não podemos, portanto, desconsiderar os efeitos ambientais, uma vez que níveis aumentados de antimicrobianos são liberados no ambiente aumentando os níveis de resistência em animais (selvagens e de corte), na agricultura e nos ambientes naturais.
[atualização 27/07]: É importante ressaltar que resíduos dos antimicrobianos que tomamos são eliminados pelas fezes e pela urina, caindo na rede de esgoto e, consequentemente, no ambiente. É tudo um ciclo, uma grande bola de neve! É algo que, realmente, deve nos preocupar!
Falamos brevemente da ocorrência da RAM em hospitais e no meio ambiente. Mas por que devemos nos preocupar tanto!?
Nos últimos anos a RAM já é citada com a maior ameaça global à saúde pública e à economia global, mas agora está não só eclipsada pela covid-19, como também corre risco de ser agravada por essa nova pandemia. Ou seja: muitos especialistas agora temem que o esforço global para manter a RAM sob controle possa enfrentar um revés durante a pandemia
Vamos falar com números:
A RAM já mata cerca de 700.000 pessoas por ano. Numa estimativa grosseira, e considerando-se que a covid-19 mantenha as taxas de mortalidade pelo restante do ano, estima-se que a RAM resultará em 130.000 morte a mais neste ano. As mortes por COVID podem superar as mortes por RAM neste ano de 2020 e o uso de antimicrobianos em pacientes com COVID também pode até reduzir o aumento na mortalidade por COVID em curto prazo mas, por outro lado, a consequência é um provável aumento na mortalidade por RAM a longo prazo. Estima-se que até 2050, a mortalidade associada a RAM será aumentada para 10 milhões de mortes por ano! Tudo indica que que a covid-19 será controlada em um tempo consideravelmente menor.
A movimentação dos pesquisadores é para que os princípios da administração de antibióticos não sejam relaxados mesmo nesses tempos de pandemia. A necessidade do tratamento com antibiótico deve ser avaliada rapidamente e interrompida se não for necessária. Observe que não estamos advogando em favor do uso profilático (preventivo) desses medicamentos! Além disso, quem deveria informar o antibiótico de escolha é o laboratório de microbiologia e baseado no micro-organismo e no padrão de resistência observado.
Falamos anteriormente que a OMS já se manifestou contra o uso de antibióticos durante o tratamento inicial de covid-19. Essa cautela deve-se principalmente em relação a dois pontos: 1) o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos pode contribuir para a emergência da RAM, daí a necessidade de se reduzir o uso inapropriado e exacerbado de antimicrobianos (sim, a repetição aqui foi intencional!) e; 2) o uso de antimicrobianos no tratamento da covid-19 pode levar à população a assumir que todos os antibióticos são elegíveis para o tratamento de infecções virais.
A ocorrência de infecções por patógenos resistentes pode ser significantemente mitigada pela administração de antimicrobianos baseada em evidência em todos os setores (agricultura e medicina veterinária e humana). Embora tenhamos tempo, a RAM não será contida sem o desenvolvimento de novas vacinas, medicamentos e testes rápidos (assim como na COVID!).
Curiosamente, as estratégias de utilizadas para reduzir a transmissão da covid-19 (distanciamento social, lock-down, fechamento de fronteiras, lavar as mãos com água e sabão) podem, também, reduzir o espalhamento da RAM! Detalhe que a redução das viagens (fechamento de fronteiras) diminui a movimentação de genes de RAM entre países! Seria muito interessante ver estudos que comparem dados de prevalência de infecções causadas por bactérias RAM antes e depois da pandemia de covid-19, bem como dos perfis de resistência que estão surgindo…
Essa tabela aqui (modificada de Nieuwlaat et al., 2020) ajuda a comparar as duas pandemias:
Finalizando:
A resistência a antimicrobianos é uma pandemia que já preocupa cientistas e profissionais da saúde há um tempo, tem impactos relevantes e estima-se que nos próximos anos será ainda mais preocupante.
Ainda não sabemos o real impacto da pandemia da covid na pandemia da RAM, mas estamos preocupados e alerta para seu provável agravamento e suas possíveis consequências.
É importante uma estratégia multifacetada contra os organismos RAM que envolva: a) estudos prospectivos sobre coinfecções na covid-19 para orientar o tratamento com antimicrobianos; b) monitoramento e relato transparente dos padrões de RAM nas UTIS para guiar o uso adequado de antimicrobianos; c) esforço global coordenado para estabelecer uma estrutura de governança, vigilância e relatos de RAM, tanto agora como depois da pandemia da covid-19.
É comum pessoas acreditarem que antibióticos podem ser utilizados para infecções virais (gripe). Usar termos como antivirais pode ajudar a entender que existem diferentes tipos de medicamentos para diferentes tipos de infecção.
Referências:
Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098
Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.
Em cerca de 8 meses a covid-19 surgiu, espalhou por todo o mundo e se tornou uma pandemia de efeitos devastadores… O que talvez você não saiba é que, paralelamente à covid-19, uma outra pandemia vem ganhando cada vez mais importância trazendo muita preocupação dos cientistas da área. A relação entre as duas é importante, sendo um caso de uma pandemia impulsionando outra. E quando falamos de pandemia impulsionada não estamos falando da covid-19, mas sim da pandemia que já estava em andamento, a das bactérias multidroga resistentes (também chamadas de superbactérias).
Ainda não temos uma terapia licenciada ou uma vacina para o tratamento da covid-19 e cujo alvo seja o SARS-CoV-2 (o novo coronavírus). Essa situação tem levado diversos médicos a considerarem e testarem drogas baseadas na modulação da resposta imunológica (reduzindo a inflamação) observada em testes in vitro (como falamos no post anterior “Antibiótico contra vírus?”). Muitas vezes, esse hype prematuro em torno de possíveis terapias para a covid-19 é associado a relatos da mídia e de líderes políticos que amplificam o possível uso dessas drogas — apesar da falta de evidências clínicas de sua eficácia. Isso pode contribuir, ainda, para a escassez dessas drogas para quem efetivamente precisa; como, por exemplo, aconteceu com a cloroquina aqui no Brasil.
Sabemos que infecções respiratórias causadas por vírus podem fazer com que pacientes tenham mais chances de serem acometidos por coinfecções causadas por fungos e/ou bactérias. Da mesma forma, infecções prévias podem atuar agravando o quadro da infecção respiratória. Apesar de ainda estarmos aprendendo sobre a progressão da covid-19, acredita-se que esses cenários que envolvem coinfecção piorem o quadro da doença. Por exemplo, sabe-se que a infecção pelo vírus SARS-CoV-2 pode aumentar a colonização e a adesão bacterianas ao tecido, e que as infecções combinadas podem resultar no aumento da destruição tecidual que, por sua vez, pode facilitar a disseminação sistêmica dos patógenos, aumentando o risco de infecções da corrente sanguínea e sepse.
É relevante considerarmos essas questões, pois, além dos riscos relacionados aos vários efeitos colaterais, ao reduzirem a resposta imunológica, essas intervenções podem acabar aumentando o risco de infecções bacterianas secundárias e potencialmente fatais. Por isso, é sempre importante ressaltar a necessidade de se realizar análises cuidadosas acerca das dosagens e da forma de administração das drogas, além da importância de os pacientes estarem sendo acompanhados de perto pele uma equipe médica.
E aonde queremos chegar com isso tudo?
Apesar dos poucos dados disponíveis sobre o assunto, o que está sendo observado é que há um aumento considerável na prescrição de antimicrobianos, ainda que não seja observado um aumento proporcional no número de coinfecções durante as internações por covid-19. Só para você ter uma ideia, as estimativas sugerem que cerca 60-70% dos pacientes são tratados com antimicrobianos, ainda que de 1% a 10% tenham apresentado coinfecção fúngica ou bacteriana. Esses pacientes podem, portanto, estar recebendo desnecessariamente antibióticos com eficácia questionável ou ainda não comprovada. Sem contar que, inclusive, em alguns lugares, as terapias com antimicrobianos fazem parte do protocolo de tratamento clínico inicial ou até “preventivo”
Orienta-se que a administração de antimicrobianos seja feita, sempre que possível, com um antibiótico de espectro curto e direcionado ao patógeno primário, ou seja, aquele a que se quer combater. No caso da covid-19, os principais sintomas observados são tosse e febre – que já estão associados a um maior uso de antibióticos nos hospitais e na comunidade. E, além disso, quando os médicos não possuem todas as informações necessárias para entender realmente o que está acontecendo ao paciente, eles tendem a utilizar mais antibióticos —situação que parece ter se agravado ainda mais com os atendimentos remotos, que ocorrem a distância, via chamada pelo celular ou computador (telessaúde).
Claro que temos que lembrar que os hospitais estão lotados e que pacientes em estado crítico são, geralmente, intubados e ficam hospitalizados por semanas em UTIs. Essa situação cumpre praticamente todos os requisitos necessários para a ocorrência de infecções relacionadas à assistência à saúde (IRAS – esse é o nome chique do que chamávamos simplesmente de infecção hospitalar). E, ainda por cima, dados hospitalares mostram um aumento lento e constante da resistência a múltiplas drogas pelas bactérias Gram-negativas, que podem ser potencialmente mortais quando associadas à covid-19. Mais preocupantemente, existem evidências clínicas que sugerem que o uso empírico e inadequado de antibióticos de amplo espectro pode estar associado a maior mortalidade, pelo menos em casos de sepse.
Além de tudo isso que falamos, preocupa o fato de que é frequentemente observado o uso de antibiótico de amplo espectro (que são desenvolvidos para matar uma grade variedade de bactérias) nesses tratamentos. Isso é preocupante uma vez que o uso excessivo e inapropriado dessas drogas (uma vez que as terapias não são focadas para a eliminação de um único patógeno primário) podem acabar agravando os quadros de resistência a antimicrobianos.
Para terminar, é importante ressaltarmos que a Organização Mundial da Saúde, a OMS, desencoraja o uso de antibióticos para casos leves de covid-19, ainda que recomende o uso em casos graves com risco aumentado de infecções bacterianas secundárias e morte.
Vamos falar sobre resistência e porque pensar sobre ela é tão importante. Veja na continuação desse post!
Antimicrobianos estão sendo comumente prescritos para prevenção ou tratamento da COVID-19, mesmo sem a ocorrência de coinfecção bacteriana presumida ou confirmada diretamente relacionada ao covid-19, ou que coocorrem no momento da infecção, ou que seja associada aos cuidados de saúde (internação prolongada em UTI)
Evidências atuais sugerem que a coinfecção não-viral (bacteriana ou fúngica) em pacientes com covid-19 é baixa (1 a 10%). Contudo, as taxas de prescrição e uso de antimicrobianos de amplo espectro são altas (60 a 70%).
A utilização de antibióticos, principalmente de amplo espectro, pode contribuir para o agravamento da pandemia já em curso das superbactérias, que são resistentes a vários antibióticos e, portanto, difíceis de serem mortas.
Referências:
Antimicrobial resistance in the age of COVID-19. Nat Microbiol. 2020;5(6):779. doi:10.1038/s41564-020-0739-4
Bengoechea JA, Bamford CG. SARS-CoV-2, bacterial co-infections, and AMR: the deadly trio in COVID-19?. EMBO Mol Med. 2020;12(7):e12560. doi:10.15252/emmm.202012560
Hsu J. How covid-19 is accelerating the threat of antimicrobial resistance. BMJ. 2020;369:m1983. Published 2020 May 18. doi:10.1136/bmj.m1983
Murray AK. The Novel Coronavirus COVID-19 Outbreak: Global Implications for Antimicrobial Resistance. Front Microbiol. 2020;11:1020. Published 2020 May 13. doi:10.3389/fmicb.2020.01020
Nieuwlaat R, Mbuagbaw L, Mertz D, et al. COVID-19 and Antimicrobial Resistance: Parallel and Interacting Health Emergencies [published online ahead of print, 2020 Jun 16]. Clin Infect Dis. 2020;ciaa773. doi:10.1093/cid/ciaa773
Rawson TM, Ming D, Ahmad R, Moore LSP, Holmes AH. Antimicrobial use, drug-resistant infections and COVID-19 [published online ahead of print, 2020 Jun 2]. Nat Rev Microbiol. 2020;1-2. doi:10.1038/s41579-020-0395-y
Rawson TM, Moore LSP, Castro-Sanchez E, et al. COVID-19 and the potential long-term impact on antimicrobial resistance. J Antimicrob Chemother. 2020;75(7):1681-1684. doi:10.1093/jac/dkaa194
Rossato L, Negrão FJ, Simionatto S. Could the COVID-19 pandemic aggravate antimicrobial resistance? [published online ahead of print, 2020 Jun 27]. Am J Infect Control. 2020;S0196-6553(20)30573-3. doi:10.1016/j.ajic.2020.06.192
Yam ELY. COVID-19 will further exacerbate global antimicrobial resistance [published online ahead of print, 2020 Jun 13]. J Travel Med. 2020;taaa098. doi:10.1093/jtm/taaa098
Este post foi publicado originalmente no blog Meio de Cultura
Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores, produzidos a partir de seus campos de pesquisa científica e atuação profissional e foi revisado por pares da mesma área técnica-científica da Unicamp. Não, necessariamente, representam a visão da Unicamp. Essas opiniões não substituem conselhos médicos.