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  • O Brasil tem a maior carga tributária do mundo?

    Por Victor Augusto Ferraz Young

    No Brasil, nos mais variados meios de comunicação, assim como em conversas informais, quando o assunto é economia, algumas frases sempre se repetem: “No Brasil, paga-se muito imposto!”; “O Brasil tem a maior carga tributária do mundo!”; ou “Se não fosse o tamanho da carga tributária, o Brasil já teria se tornado um país desenvolvido!”. Estariam estes diagnósticos corretos? Baseiam-se em dados econômicos concretos? Neste texto, pretendemos verificar estas afirmações, discutir de um modo geral a questão do peso dos tributos sobre a nossa sociedade e responder com algumas informações a estas perguntas.

    A princípio, temos que ter claro que a maioria dos tributos (também chamados de impostos) correspondem a um valor que se subtrai da renda gerada no país a partir do processo produtivo, ou seja, uma parte da renda gerada com a produção de todos os bens e serviços produzidos em nosso território será sempre retida pelo governo no sentido de custear a infraestrutura estatal e a oferta de bens e serviços públicos. Para esta discussão, utilizaremos com frequência o conceito de carga tributária, isto é, o percentual correspondente ao valor dos impostos cobrados em relação ao valor do PIB a preços de mercado (% de carga tributária sobre o PIB) [1]. Também usaremos o conceito de base de incidência de impostos que é, grosso modo, um certo percentual que se cobra sobre determinada renda ou valor de atividade econômica. Para fundamentarmos nossa análise, nos utilizaremos de tabelas e gráficos produzidos pelo Centro de Estudos Brasil Século XXI que se baseiam em dados e informações de instituições oficiais.

    A carga tributária brasileira é a mais alta do mundo?

    Para responder a esta primeira pergunta, podemos dizer que a carga tributária bruta, no Brasil, entre 2002 e 2019, esteve em média em 32,7% do PIB (os valores para cada ano estão na tabela abaixo, na coluna CTB. Se descontarmos os valores referentes aos repasses desses impostos por parte do governo para a Previdência, Assistência Social, Subsídios e Juros da Dívida Pública, teríamos um valor ainda menor conforme as linhas azul e vermelha do gráfico que se segue).

    Sabendo, portanto, que o valor da carga tributária no Brasil gira em torno de 33% do PIB, podemos considerar isso um valor alto ou baixo? Uma forma plausível de se fazer essa avaliação é comparando o Brasil com outros países que tenham uma economia de tamanho parecido[2]. Vejamos então, no gráfico seguinte, a carga tributária de outros 27 países desenvolvidos e em desenvolvimento que fazem parte da OCDE mais a média de todos os países dessa mesma organização (OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento. Organismo constituído predominantemente por países ricos).

    Podemos verificar que, no ano de 2018, entre os 28 países mais a média da OCDE, o Brasil está na 18ª posição em termos de carga tributária, estando, por exemplo, mais de 10% abaixo da carga mais alta, registrada na França no patamar de 46,1% sobre o PIB. Se dividirmos este apanhado de nações em duas partes, o Brasil se encontra entre os países com a menor carga tributária em relação a outra metade que tem a carga maior ou igual a 35%. Os Estados Unidos, que é sempre mencionado por comentarista econômicos, registraram uma carga menor, de 24,3% sobre o PIB. Todavia, a economia norte-americana é 15 vezes maior do que a economia brasileira, fornecendo, portanto, uma base maior para a arrecadação de impostos[3]. A Alemanha e a Itália, que também têm economias maiores do que a do Brasil, registram cargas tributárias de 38,2% e 42,1% respectivamente. Neste conjunto, apenas 9 países tem uma carga tributária menor do que 33%. Os países ricos e em desenvolvimento que fazem parte da OCDE registram em média 34% de carga tributária sobre o PIB. Nossa primeira conclusão, portanto, é a de que a carga tributária brasileira não é a mais elevada do mundo. Ela não está sequer entre as mais altas, considerando um conjunto significativo de economias próximas a do Brasil. Outra constatação é a de que, entre os países desenvolvidos, se estes não têm uma carga tributária parecida com a brasileira, usualmente têm um percentual tributário bem maior. A única exceção neste caso, seriam os EUA, país que, contando com 24,4% de carga tributária, tem uma arrecadação de impostos maior do que qualquer um dos outros países aqui considerados. Podemos afirmar, dessa maneira, que a carga tributária brasileira não é a mais baixa, mas definitivamente não é a mais alta.

    Os brasileiros pagam muitos impostos?

    Esta outra questão se refere à sensação de que no Brasil, os preços dos bens e serviços seriam muito altos em função de uma carga tributária muito alta. Seria esta uma sensação real? Sim e não. Podemos dizer que no Brasil, tudo depende de como cada indivíduo obtém sua renda e de como a utiliza depois que a recebeu. Se, por um lado, tudo o que um cidadão recebe é gasto por ele no consumo de bens e serviços, como é o caso dos indivíduos que fazem parte de classes sociais de renda média e baixa, então os impostos para estes incidem com maior peso. Por outro lado, se o gasto realizado com bens e serviços não é pouco, mas é comparativamente pequeno em relação ao total da renda recebida, então os impostos são sentidos com intensidade muito menor, ou seja, no Brasil, a maior parte dos impostos são cobrados sobre o consumo e não sobre a renda recebida ou sobre a propriedade privada. Assim, as classes sociais que não utilizam toda a sua renda para o consumo tendem a pagar uma proporção menor de impostos em relação a sua renda. Esta renda que não é utilizada para consumo é usualmente aplicada em outras atividades rentáveis que tendem a não sofrer o mesmo impacto tributário que o consumo. Grosso modo, no Brasil, os contribuintes pagam mais impostos sobre o consumo do que sobre eventuais rendimentos de sua poupança[4]. O resultado é o de que a carga tributária que recai sobre uma parcela social mais abastada acaba sendo relativamente menor do que aquela que recai sobre a parcela social mais humilde.

    Para que esta afirmação fique mais clara, primeiramente iremos separar os impostos cobrados no Brasil da seguinte maneira:

    • Imposto sobre a Renda de Capital (juros, lucros, dividendos, aluguéis, etc.): IR; IOF; etc.
    • Imposto sobre a Renda do Trabalho (salários e rendimentos autônomos): IR.
    • Impostos sobre o consumo de bens e serviços: IPI; ICMS; ISSQN; PIS; COFINS; etc.
    • Impostos sobre propriedade: IPTU; IPVA; ITR; ITBI; etc.

    Em segundo lugar, definiremos dois indivíduos hipotéticos que se encontram, cada um, em um extremo da pirâmide social.

    • João é um indivíduo sem muitas posses que no Brasil ganha um salário mínimo (R$1.212,00 no ano de 2022), e deverá, em grande medida, utilizar praticamente todo seu salário para o sustento próprio e o de sua família. Em função do valor de sua renda João paga pouco, ou praticamente nada, de imposto sobre a renda do trabalho (IRPF)[5]. Os impostos sobre os seus ganhos recairão, dessa maneira, predominantemente sobre os bens e serviços que consome.
    • Antônio, por outro lado, recebe rendimentos de capital provenientes de lucros, de aplicações financeiras e do aluguel de propriedades que possui. Sendo o montante de sua renda mensal elevado, somente uma parte pequena de toda a renda se destina ao consumo pessoal e o de sua família. Antônio paga, assim, relativamente menos impostos sobre consumo e mais impostos sobre rendas de capital e sobre rendas de propriedade.

    Vejamos então, na tabela a seguir, como os impostos tendem a incidir sobre a renda destes dois indivíduos no caso do Brasil[6]:

    Conforme a tabela, os impostos incidem com mais força sobre o destino da renda (a compra de bens e serviços) do que sobre as origens das rendas. Em 2019, os impostos sobre consumo incidiram, em média, em 43,3% sobre o valor dos bens e serviços, tendo sido esta incidência ainda maior em anos anteriores. De outra maneira, mesmo que a incidência do imposto de renda chegue a 27,73% para os trabalhadores que recebem as melhores remunerações, a incidência sobre as rendas de capital e aplicações financeiras foi de 22,45% para estas, de 4,82% sobre a propriedade e de 1,7% sobre as transações financeiras. Podemos constatar preliminarmente que a incidência de impostos sobre a renda, os salários, a propriedade e as transações financeiras é, em todas elas, muito menor do que sobre o consumo de bens e serviços.

    Grosso modo, para João e toda a população que depende totalmente do salário e gasta todo ele em consumo, a tributação é alta. Para Antônio e as famílias que dependem de rendimentos de suas posses em termos de propriedades, de capital e de aplicações financeiras – consumindo bens e serviços com parte proporcionalmente muito menor de sua renda total – a tributação só em termos de incidência é quase a metade.

    Nossa segunda constatação é a de que parcelas mais humildes da sociedade entregam ao fisco uma parte maior de sua renda total do que parcelas sociais de renda mais elevada.

    Se não fosse o tamanho da carga tributária, o Brasil já teria se tornado um país desenvolvido?

    Verifiquemos então esta última questão. Podendo já afirmar que a carga tributária brasileira está longe de ser das mais altas do mundo, podemos verificar como se distribui a carga no Brasil comparando esta aos países desenvolvidos. Analisemos os gráficos a seguir:

    No gráfico acima, referente a 2017, podemos verificar que em termos de carga tributária o Brasil impõe um peso de 14,3% do PIB sobre a sociedade no que se refere ao consumo de bens e serviços. Entre os 32 países analisados, verificamos que a carga tributária brasileira sobre o consumo de bens e serviços é uma das mais altas do mundo, ficando atrás apenas de Hungria, Grécia e Dinamarca. Quatro pontos percentuais a mais do que a média dos países que compõem a OCDE.

    Neste outro gráfico acima, também em 2017, a carga tributária brasileira sobre os rendimentos do salário (incluindo recolhimento previdenciário) está entre os países que menos oneram as remunerações, estando 1% abaixo dos países da OCDE e com pelo menos a metade do percentual do primeiro colocado, a França.

    A carga de tributos cobrados em relação ao conjunto renda, lucros e ganhos de capital, no Brasil em 2017, conforme este outro dado acima, é, por outro lado, uma das mais baixas (7%) frente aos outros 32 países da comparação. Junto com Chile, Polônia, Hungria e Eslovênia, a carga tributária brasileira é de apenas 7% sobre esses rendimentos, estando quatro pontos percentuais abaixo da média da OCDE.

    Quanto aos tributos cobrados sobre a propriedade, novamente o Brasil está entre os países que impões relativamente menos impostos sobre a propriedade privada de seus contribuintes, ou seja, de acordo com o gráfico acima, a carga é de 1,5% do PIB. Esta é maior do que a da República Eslováquia (0,4%) – a mais baixa carga tributária neste quesito -, mas é bem menor do que a da França, que impõe uma carga de 4,4% do PIB em impostos sobre propriedade.

    O que se confirma novamente é que, no Brasil, os impostos recaem com muito mais peso sobre o consumo de bens e serviços do que sobre a origem das rendas em geral. Na comparação com os chamados países desenvolvidos que compõem a OCED, o Brasil faz exatamente o inverso, ou seja, cobra mais impostos dos mais pobres e menos impostos dos mais ricos. Isso perpetua a má distribuição de renda existente no país e impede uma expansão do consumo que poderia dinamizar a economia.

    Dessa forma, talvez não seja a carga tributária total sobre o PIB, mas a distribuição desta entre as camadas sociais o que perpetue no Brasil a concentração de renda e, tendo como consequência a manutenção da desigualdade social e do subdesenvolvimento econômico.

    Conclusão

    Nossa análise buscou fazer uma aproximação geral do quadro de tributação no Brasil. Para isso, fizemos uma comparação desse panorama brasileiro com países desenvolvidos e em desenvolvimento. Utilizamos como parâmetro a carga tributária percentual sobre o PIB e a base de incidência dos impostos. Esta análise poderia ser ainda mais profunda, mostrando diferenças entre cada faixa de renda, o que tornaria este texto muito extenso para nossos propósitos[7]. Com o que levantamos, contudo, já podemos responder com segurança que a carga tributária brasileira, na atualidade, depois de comparada com 27 países da OCDE, está abaixo da média destes e abaixo da média de todos países da OCDE em conjunto. A incidência, todavia, é a que parece ser a grande injustiça do sistema tributário brasileiro, comparando-a com outros países. Em função da forma como os tributos são cobrados no Brasil, famílias de renda mais baixa pagam um montante muito elevado de impostos, enquanto as de renda mais elevada pagam um montante relativo muito menor. Conforme nosso exemplo, a injustiça se faz presente e se perpetua com o fato de que João, de baixa renda e de poucas posses, paga muito imposto sobre o que ganha, enquanto que Antônio, de renda alta e de muitas posses, paga relativamente muito menos sobre aquilo que recebe. Este infortúnio é, a nosso ver, um dos elementos que atrapalham nosso pleno desenvolvimento social e econômico.

    Referências

    Para o acesso aos dados utilizados neste texto, ver:

    [1] O PIB corresponde a soma do valor de todos os bens e serviços finais produzidos dentro de uma economia nacional no período de um ano. Geralmente, os meios de informação utilizam o conceito de PIB a preços de mercado, tendo em conta que no valor do PIB estão inclusos os impostos e descontados os subsídios concedidos pelo governo.

    [2] Em 2019, o Brasil estava posicionado como o 12ª PIB mundial em termos de dólares depois dos EUA, China, Japão, Alemanha, Reino Unido, Índia, França, Itália, Canadá, Coreia do Sul e Rússia. Ver: World Economic Outlook Database. International Monetary Fund. Outubro de 2019.

    [3] Também não podemos deixar de mencionar que os Estados Unidos são os emissores do dólar, moeda reserva de valor internacional. Podem, dessa maneira, cobrir seus gastos governamentais com um endividamento crescente sem que isso provoque maiores prejuízos a sua economia.

    [4] O conceito econômico de poupança refere-se a parte da renda das famílias que não é gasta no consumo de bens e serviços. A teoria econômica dominante considera que a maior parte da poupança das famílias é usualmente emprestada aos agentes financeiros na forma de compra de papéis financeiros em troca de rendimentos futuros na forma de juros. Não podemos, portanto, confundir poupança com caderneta de poupança que é apenas um tipo de aplicação financeira.

    [5] Dependendo da faixa de salarial, o trabalhador brasileiro é isento do pagamento de imposto de renda de pessoa física (IRPF) ou paga alíquotas que sobem conforme se eleva o valor de sua renda. Ver: https://www.gov.br/receitafederal/pt-br/assuntos/orientacao-tributaria/tributos/irpf-imposto-de-renda-pessoa-fisica#c-lculo-anual-do-irpf.

    [6] Salientamos que o conceito, base de incidência, que mostra o percentual de imposto incidente sobre uma renda especificada é diferente do conceito de carga tributária sobre o PIB, que se refere ao valor total arrecadado de determinado imposto em relação ao valor total do PIB.

    [7] Não fizemos uma abordagem mais profunda sobre isenções sobre aplicações financeiras, por exemplo. Tal análise pode expor as diferenças que existem entre grandes aplicadores e pequenos aplicadores.

  • A política e as histórias em quadrinhos

    Texto por Dani Marino

     

    Sabemos que nenhuma manifestação humana é dissociada do contexto em que foi produzida. Das artes plásticas, passando pelo cinema, pela literatura e outras expressões como as histórias em quadrinhos, essas expressões representam não só a visão de um artista sobre algo, mas indicam também quais são as condições sociais, políticas, culturais que possibilitaram a existência de suas obras.

    Painel da HQ “Vingadores: A cruzada das crianças” Foto: Reprodução

    Crivella manda recolher HQ dos Vingadores com beijo gay; Bienal se recusa – Prefeito disse estar ‘protegendo os menores da nossa cidade’; advogada diz que decisão é ‘censura’

    Ao mesmo tempo, o apagamento sistêmico da produção de determinados grupos, hoje entendidos como minorizados (a saber: mulheres, negros, LGBTs…), causa ausências que também são melhor compreendidas quando conhecemos o contexto político e social de cada época e de cada cultura.

    Nos quadrinhos, a política sempre esteve presente.

    Às vezes de maneira mais explícita, reforçando certos discursos e às vezes de maneira menos explícita, contrariando os discursos hegemônicos vigentes. Esses discursos podem ser examinados a partir de diversos vieses e é nas áreas como História e Ciências Sociais que estas análises encontram terreno muito fértil.

    Por exemplo, um dos marcos do desenvolvimento dos quadrinhos é o personagem Yellow Kid, de Richard Outcault. O garoto careca e de orelhas grandes já havia aparecido em outras publicações antes de se tornar o primeiro personagem colorido dos jornais estadunidenses.

    Suas tiras exerciam grande apelo ao púbico por reproduzir um tipo de humor carregado de estereótipos e era facilmente compreendida por imigrantes que não compreendiam bem a língua inglesa. Ou seja, por mais inocente que possa parecer, há uma série de elementos que podem ser observados a respeito do momento que os Estados Unidos atravessavam (MOREAU; MACHADO, 2020).

    Os códigos de ética e censura nos quadrinhos

    Com o surgimento dos quadrinhos de super-heróis no final dos anos 1930, o sentimento de nacionalismo inflamado pelas histórias de personagens como Capitão-América, Mulher-Maravilha e tantos outros tomou conta do dos EUA e contribuiu ainda mais com o sucesso das histórias em quadrinhos que enfrentariam um duro golpe nos anos 1950, quando o Comics Code Authority (código de ética dos quadrinhos) foi implementado pelas editoras (MOREAU; MACHADO, 2020).

    Em sua forma original, o código impõe, entre outras, as seguintes regras:

    • Qualquer representação de violência excessiva e sexualidade é proibida.
    • As figuras de autoridade não devem ser ridicularizadas ou apresentadas com desrespeito.
    • O bem deve sempre triunfar sobre o mal.
    • Personagens tradicionais da literatura de terror (vampiros, lobisomens, ghouls e zumbis) são proibidos.
    • Anúncios de tabaco, álcool, armas, pôsteres e cartões — postais nus são proibidos nas histórias em quadrinhos.
    • Zombarias ou ataques contra qualquer grupo racial, ou religioso são proibidos.

    o Código Hays que se trata do Código de Produção de Cinema aplicava entre outras regras as abaixo.

    Não era permitido:

    • Profanidade — uso de palavras como “Deus”, “Senhor”, “Jesus” ou “Cristo” (a não ser no contexto de cerimônias religiosas), “inferno”, “droga” e outras palavras profanas e expressões vulgares de qualquer forma;
    • Nudez — de facto ou insinuada
    • Tráfico de drogas
    • Insinuação de perversões sexuais
    • Escravidão de brancos
    • Miscigenação — relações sexuais entre brancos e negros
    • Higiene sexual e doenças venéreas
    • Cenas de parto — de facto ou insinuada
    • Órgãos sexuais de crianças
    • Ridicularização do clero
    • Ofensa deliberada a qualquer nação, raça ou credo

    Esse código impunha autocensura aos autores de quadrinhos a partir de critérios que foram acordados por editores após uma série de audiências no senado, após os estudos fraudados do psiquiatra Fredric Wertham em seu livro Sedução do Inocente (1954) terem ganhado popularidade. Com isso, vários temas e representações passaram a ser proibidos de serem retratados nos quadrinhos. Esse período coincidiu com o backlash (retrocesso) que as mulheres sofreram após o fim da Segunda Guerra Mundial, quando toda indústria cultural reproduzia valores e discursos que pregavam a submissão da mulher ao marido, entre outras coisas.

    Paralelamente, em outros países do mundo também se observava esse movimento de constante entrelaçamento dos quadrinhos e da política. Fosse na censura da antologia de quadrinhos produzidos por mulheres na França, como o que ocorreu com a revista Ah! Nana! (NOGUEIRA, 2015), fosse na representação cômica dos gauleses e romanos nos quadrinhos de Asterix, que sempre representou uma crítica ao imperialismo britânico ou mesmo em nas caricaturas que Nair de Teffé fazia de personalidades brasileiras na primeira metade do século XX.

    Ainda sobre os quadrinhos mainstream, podemos citar os X-Men, que surgiram nos anos 1960 como uma alegoria para a situação de negros, mulheres e LGBTs nos EUA e que cujas causas ganharam visibilidade com os movimentos sociais que clamavam por direitos iguais na época. Com a equipe mais diversa de super-heróis já criados atém então, suas histórias inspiraram filmes, jogos e animações que traziam em seus discursos questionamentos sobre o ódio a quem era diferente. Porém, foi no final dos anos 1960 e durante os anos 1970 que os quadrinhos independentes, muitos deles com narrativas autobiográficas, definiram o tom de um estilo de quadrinhos que é publicado até hoje.

    Nomes como Robert Crumb, Art Spielgeman, Justin Green, Trina Robbins, Aline Kominsky-Crumb e tantos outros, encontraram no meio underground a chance de abordar temas tabu como sexualidade, aborto, direitos civis… e, em 1992, com o reconhecimento da HQ Maus, de Art Spielgeman (1986), contemplada com o prêmio Pulitzer, pessoas do mundo todo conheceram a história biográfica que narrava os horrores do Holcausto.

    Sem dúvida alguma, é por meio das publicações independentes que os autores alcançam maior autonomia para abordar temas como guerras, conflitos políticos, sexualidade, luta por direitos, como é o caso também da premiada HQ Persépolis (2000), da iraniana Marjani Satrapi, que aborda a revolução islâmica, ou de Fun Home (2006), de Alison Bechdel e que fala sobre sua homossexualidade e seu relacionamento com sua família enquanto tenta lidar com seus conflitos internos.

    E no Brasil?

    Com o golpe militar no Brasil nos anos 1960, a imprensa alternativa atingiu seu auge e entre os veículos de maior expressão na época, estava o periódico Ovelha Negra, editado pelo cartunista Geandré.

    Sua relevância é tamanha que o pesquisador e professor Osvaldo da Silva Costa decidiu registrá-la em sua dissertação de Mestrado, onde entendemos porque o humor gráfico teve um papel tão importante na propagação de ideais de oposição à Ditadura, fazendo com que muitos artistas que contribuíram com o jornal fossem perseguidos pelos militares.

    Capa do jornal Ovelha Negra fundado pelo cartunista Geandré (Foto: Divulgação)  

    Nos anos 1970, desenhistas e jornalistas que colaboravam com edições como O Pasquim, entre eles Ziraldo e Henfil, foram presos e várias publicações passaram a sofrer censura. Esta censura resultou na proibição de publicação de caricaturas durante o período de dez anos:

    “A censura proibia a publicação de caricaturas de autoridades nacionais e estrangeiras. Havia a censura prévia, que consistia na presença de um censor junto às redações até 1977”. (DA COSTA, 2012, p.73).

    Laerte Coutinho, uma das mais influentes cartunistas brasileiras, colaborou com muitos dos periódicos alternativos que circularam no Brasil e ainda hoje, seja em suas tiras como Piratas do Tietê ou em cartuns e charges encomendadas especialmente para ilustrar colunas de política em jornais, seu trabalho continua irreverente e provocativo.

    O cartum abaixo é um exemplo do diálogo entre o humor gráfico e a crítica político-social. Reflexo de temas recentes como os 50 anos do Golpe Militar no Brasil e uma pesquisa feita pelo Instituto de Pesquisa econômica aplicada havia apontado que 65% das pessoas entrevistadas acreditavam que mulheres que usam roupas curtas devam ser atacadas/estupradas, o cartum chama a atenção para os dois fatos diferentes e promove uma reflexão sobre ambos.

    Apesar da vocação dos quadrinhos para o entretenimento, não podemos negar sua importância no que se refere à crítica social e política através da História de diversos países. Muitas delas desempenharam um papel significativo na articulação de ideias durante regimes ditatoriais em países como Brasil e Argentina. Hoje, embora o Brasil viva um regime democrático, problemas como corrupção, escândalos políticos, desigualdade social, falta de investimento em programas de saúde e educação são temas recorrentes em tiras e charges de todo país.

    Nem só de humor vive a crítica

    Sabemos que nem todos os cartuns e tiras utilizam humor em sua linguagem, porém, é através do riso que grande parte dos artistas cria uma conexão com seu público. Tendo isso em mente, vale lembrar que não faltam estudos filosóficos, psicológicos e antropológicos acerca do poder do riso e suas funções, entre as quais podemos ressaltar a de atuar como arma de contestação política, como afirma Da Costa em sua pesquisa:

    A linguagem do humor – arma política contra regimes repressivos – é também considerada subversiva e de contracultura – pode ser narrada por meio do teatro, da música, da literatura, da imprensa, do cinema e do desenho de humor. Tem como finalidade provocar o riso ou o sorriso. O risível nas piadas e paródias, como imitação burlesca, era um dos recursos mais populares entres os bufões na Antiguidade. Rir de si mesmo e do seu semelhante, seja em tom jocoso ou de escárnio, é um traço marcante da natureza humana desde os tempos mais remotos. (DA COSTA, 2012, p.18).

    O escritor e semiólogo Umberto Eco, conhecendo o poder inquietador do riso, dedicou uma das de suas maiores obras a ele. Em O nome da Rosa, thriller ambientando na França medieval, a luta dos monges beneditinos do mosteiro de Melk para proteger um manuscrito nunca publicado de Aristóteles acaba causando inúmeras mortes e deixando um rastro de sangue.

    De acordo com as convicções dos monges mais conservadores do romance, o riso seria algo muito próximo da morte e da corrupção do corpo, mas o filósofo grego, em seu livro que só existiu na ficção, alertava para o poder libertador do riso como um veículo da verdade.

    O riso desvia, por alguns instantes, o vilão do medo. Mas a lei impõe-se através do medo, cujo nome verdadeiro é temor de Deus. E deste livro poderia partir a centelha luciferina que transmitiria ao mundo inteiro um novo incêndio: e o riso designar-se-ia como a arte nova, ignorada até de Prometeu, para anular o medo. Ao vilão que ri naquele momento, não importa morrer: mas depois, cessada a sua licença, a liturgia impõe-lhe de novo, segundo o desígnio divino, o medo da morte. E deste livro poderia nascer a nova e destruidora aspiração a destruir a morte através da libertação do medo. E que seríamos nós, criaturas pecadoras, sem o medo, talvez o mais provido e afetuoso dos dons divinos? (ECO,1980, p. 359)

    Sendo então o riso capaz de nos guiar no caminho de descobertas sobre verdades que talvez nossos governantes prefiram que não tomemos conhecimento, não é de se espantar que tantos cartunistas tenham sido ameaçados, torturados ou mortos durante regimes ditatoriais ocorridos na América Latina, como foi o caso do autor de El Eternauta. Héctor Germán Oesterheld foi sequestrado, assim como quatro de suas filhas, duas delas grávidas, durante o regime militar da Argentina.

    Porém, engana-se quem acredita que essa tendência à crítica política mais explícita possa ser encontrada exclusivamente em charges e cartuns. Quadrinhos mainstream como V de Vingança ou Watchmen, por exemplo, são produções que também viraram filmes e que fazem críticas explícitas ao autoritarismo e à corrupção por exemplo. E até mesmo nos quadrinhos de Batman, cujos quadrinhos nos anos 1930 traziam forte propaganda dos esforços de guerra, é possível pensar sobre como Bruce Wayne se beneficia do capitalismo e contribui para a degradação de Gotham, como alerta a pesquisadora e especialista no personagem, Laluña Machado.

    V de Vingança – Filme

    No entanto, é por meio das charges que um tipo de humor costuma chamar os leitores à reflexão de maneira mais contundente, o que tem gerado consequências envolvendo censura e perseguição de artistas desde a eleição do atual presidente do Brasil ou até mesmo morte, como o que ocorreu com os cartunistas do jornal francês Charlie Hebdo.

    Também não muito tempo atrás, que o projeto de quadrinhos Políticas, produzido por mulheres e dedicado a compartilhar charges e cartuns produzidos exclusivamente por mulheres (cis ou não) fez uma convocatória para homenagear a vereadora carioca Marielle Franco , brutalmente assassinada em 2018. Mais recentemente, a HQ da socióloga sueca Liv Stromqüist explorou a história da vulva a partir de inúmeras referências históricas, filosóficas e sociais em A Origem do Mundo (2018), enquanto artistas brasileiras como Carol Ito e Helô D’Ângelo exploram temas políticos em suas tiras online.

    Assim, não só artigos, como teses e dissertações sobre quadrinhos costumam explorar os aspectos políticos apresentados nas HQ e independentemente de os discursos políticos estarem explícitos, eles atravessam as obras em maior ou menor grau.

    Para saber mais:

    Podcast Confins do Universo com o professor Silvio Almeida: Tem política nos quadrinhos sim!

    Narrativas distópicas em quadrinhos

    Elas fazem política, cartuns e charges

    Referencias:

    DA COSTA, Osvaldo. Uma Ovelha Negra na Cultura Midiática: Inovações do Humor Gráfico na imprensa alternativa brasileira. Santos, Ateliê de Palavras. 2015.

    ECO, Umberto. O nome da Rosa. São Paulo. Record. 2009
    MARINO, Daniela; MACHADO, Laluña. Mulheres e Quadrinhos. Skript, 2019.
    MOREAU, Diego; MACHADO, Laluña. História em Quadrinhos EUA. Skript, Florianópolis, 2020.

    NOGUEIRA, Natania. Ah! Nanah! As mulheres e os quadrinhos na França. XXVIII Simpósio Nacional de História. Florianópolis, 2015. Disponível em: http://www.snh2015.anpuh.org/resources/anais/39/1435888872_ARQUIVO_AhNana_artigo.pdf

  • Por que aborto é um tema de Saúde Pública?

    Texto por Ana Arnt

    O Brasil vive um cenário de eterno retorno à questão do aborto entre debates morais, criminais, de saúde, planejamento familiar e educação sexual e reprodutiva. Assim, não é incomum estas falas aparecerem em períodos eleitorais, como palco de intensas disputas entre grupos religiosos, feministas, acadêmicos e científicos, de saúde, dentre outros.

    Além disso, é usual, também, apontar que o aborto deve ser tratado como um tema de saúde pública e que isso independe de opiniões individuais sobre ser favorável ou não à prática do aborto. Vamos compreender um pouco mais sobre o tema, pensando acerca de diferentes abordagens?

    Saúde é um conceito

    Sempre é bom conceituar o que é saúde e o que é saúde pública. O conceito de saúde não é simples ou definitivo. Em geral temos duas grandes ideias usuais (que não são muito compatíveis em vários sentidos):

    • Ausência de doença;
    • Completo bem estar físico, mental e social.

    Enquanto o primeiro conceito olha para pessoas a partir apenas de suas características físicas (anatômicas e fisiológicas), ignorando fatores sociais amplos que podem contribuir para adoecimentos ou estados saudáveis; o segundo conceito aponta para a necessidade de olharmos para fatores psicológicos e sociais, traz a implicação do Estado para a manutenção da saúde (via questões sociais, mais amplas e que fogem ao controle de indivíduos), bem como insere a subjetividade no conceito, tendo em vista que diz respeito ao modo como lidamos com doenças, sintomas e muitos aspectos de nossa vida. Todavia, este segundo conceito insere, também, uma saúde inalcançável, tendo em vista que o conjunto “físico, mental e social” estando em completo bem estar não é, exatamente, a situação mais simples que existe.

    Saúde Pública

    Saúde Pública diz respeito a uma prática, que deveria ser embasada em dados técnicos e científicos, para direcionar políticas públicas que aumentem qualidade de vida, diminuam mortes, possibilitem uma vida sadia a uma população.

    Lembrando que quando falamos de população, estamos falando de um conjunto de pessoas que vivem em um determinado território. Portanto, a Saúde Pública diz respeito a um conjunto de políticas públicas, direcionadas a uma população de um determinado lugar (município, estado, país, continente, mundo, por exemplo).

    A Saúde Pública busca a saúde de uma população a partir de dados complexos, estatísticas de curto, médio e longo prazo, análises epidemiológicas e vigilância sanitária constantes.

    E o que isto têm a ver com Aborto???

    Tratar o aborto como temática de saúde pública é olhar, sem julgamento de valor, para a saúde de pessoas com útero, que estão gestando um feto e ver quais são as causas de adoecimento e morte destas pessoas. Dessa forma, ao constatar que aborto é uma destas causas, também procura-se interferir neste fator, diminuindo ele como causa de morte.

    Quando eu falo de saúde pública, estamos falando sobre a diminuição de causas de mortes e adoecimentos em uma população, em modos de interferir em causas de mortes e adoecimentos. Não é, necessariamente, uma interferência médica, mas sim de interferências que podem abranger diversas áreas, em um trabalho interdisciplinar que diminua estes números de adoecimentos e mortes.

        Entretanto, é claro que não é tão simples assim. Como podemos interferir em algo como o aborto? Primeiro devemos caracterizar a população que aborta. A segunda questão é perceber alguns dos fatores que levam ao óbito, mulheres que abortam. De maneira simples, parece óbvio: são complicações com o procedimento do aborto.

        Ao olharmos com mais cuidado, um dos problemas é a busca por instâncias de saúde, quando estas complicações acontecem. Em função do aborto ser ilegal em nosso país, estas mulheres correm o risco de serem acionadas juridicamente, para responder pelo crime, previsto no código penal. Neste caso, a falta de assistência, por um receio de prisão, é uma das consequências sofridas por estas mulheres, que podem falecer.

    Pensando a partir de dados públicos

    Os dados trazidos a seguir são de Bonfim e colegas (2021), a partir de um levantamento e análise do banco de dados DataSUS. Entre 2010 e 2019, o Brasil teve cerca de 650 mil casos de abortos (procedimentos legalizados ou não), segundo dados do DataSUS. Destes casos, 44.70% tem entre 20-29 anos, 48.59% se autodeclara parda; 38.91% tem apenas ensino fundamental e 62.56% declara-se solteira. Em relação às internações durante uma gestação, nosso país registra cerca de 500 por dia, causadas por aborto (espontâneos/naturais ou provocados). Ao longo dos anos de 2009 e 2018, o Brasil registrou mais de 700 óbitos em decorrência de aborto, sendo 60% destas mulheres, pardas ou negras. Por fim, mas não menos importante, entre 2010 e 2019 o país registrou 24 mil internações por aborto, crianças entre 10 e 14 anos. 

    E aí?

    Em suma, a questão, olhada como saúde pública, é buscar entender o que leva a um abortamento da gestação e atender a estas pessoas, diminuindo os efeitos na saúde delas. Assim, a proibição legal, neste caso, fragiliza exatamente por expor a riscos de complicação, sem busca de socorro especializado, além do risco do aprisionamento.

    Dessa maneira, a preocupação imediata é que estas pessoas tenham atendimento seguro, com procedimentos que acolham e atendam às necessidades de manutenção de suas integridades físicas, psicológicas, por ações sociais.

    Além disso, o custo do SUS para remediar, cuidar e salvar mulheres que chegam aos hospitais a partir de procedimentos de risco, é altíssimo. Aliás, isso não é sobre ideias aleatórias, novamente é bom lembrar que esta defesa se faz por dados públicos. Por exemplo, segundo estudo recente, quase metade de gestantes (48%) precisa de internação para finalizar o procedimento de abortamento. Neste sentido, há risco de denúncia e, consequentemente, prisão. Além do risco de agravamento da saúde e possibilidade de óbito.

    Todos estes dados constroem esta compreensão de que oferecer um serviço seguro de aborto diminui os riscos e a vulnerabilidade destas pessoas. E aqui, novamente, estamos falando de saúde pública. Isto é, diminuição de casos de morte e agravamento de riscos de saúde

    – Ah, mas eu acho que o aborto não deveria ocorrer

    Olhar o ato do aborto, como saúde pública, não é julgar os motivos pelos quais ele ocorre, mas assegurar que pessoas que precisem recorrer a este serviço, não se exponham a riscos à sua saúde. Dessa forma, neste caso, uma das medidas de saúde pública também é investir em educação sexual e reprodutiva desde períodos escolares e planejamento familiar em espaços de saúde pública, como postos de saúde, com distribuição de preservativos e contraceptivos.

    Todavia, tratar deste tema como saúde pública, é mais do que apenas isso. Uma vez que precisamos trabalhar com campanhas reais, sem debates morais ao estilo “não transem”, que geram culpabilização e fragilização destas pessoas que podem engravidar. Ou seja, trabalhar com prevenção ao aborto, como medida de saúde pública, é trabalhar não na responsabilização de indivíduos, mas ações efetivas de educação, planejamento, prevenção.

    Assim, o aborto, neste caso, é a última saída ou subterfúgio para assegurar a saúde das pessoas que precisam abortar.

    É preciso encarar como saúde pública este dado, pois todos os anos pessoas morrem por falta de acesso a práticas seguras. É fundamental encarar o aborto como saúde pública, pois é tarefa deste setor social garantir saúde, minimizar mortes, promover vidas sadias, especialmente àquelas vulneráveis.

    Finalizando

    O aborto, como questão moral, pode e deve ser debatida publicamente. Mas é fundamental e emergente que tomemos estas questões como fundamentais para salvar vidas de pessoas vivas, mantendo sua integridade, sem expor a riscos desnecessários, causados por falta de políticas públicas de saúde eficientes para estas pessoas.

    Ainda não concorda com o aborto? Ora, nos parece que a questão tangencia uma abordagem moral, de construção familiar, de aspectos sociais específicos e individuais. Mas aqui estamos falando de saúde pública, e a saúde pública trabalha com dados populacionais, proporcionando base para práticas para promoção à saúde – e não em detrimento desta.

    Por fim, quer saber mais sobre questões individuais? O nosso próximo texto abordará estas relações! Por hoje, seguimos batendo nesta tecla: aborto, como prática em debate público, precisa analisar dados públicos e promoção à saúde.

    Para saber mais

    BOMFIM, VVB da S; ARRUDA, MDIS; EBERHARDT, EdaS; CALDEIRA, NV; SILVA, HFda; OLIVEIRA, ARdo N; SANTOS, ERdos; SILVA, LRMda; SOARES, LL; BEZERRA, MELdeM; OLIVEIRA, MPde; ANJOS, GFde PFdos; CAVALCANTE, RP; FERREIRA, PdeF; SILVA, JFT (2021) Abortion mortality in Brazil: Profile and evolution from 2000 to 2020, Research, Society and Development, [Sl], v10, n7.

    BRASIL (2021) Mortalidade proporcional por grupos de causas em mulheres no Brasil em 2010 e 2019, Boletim Epidemiológico n29, v52

    CARDOSO, BB, VIEIRA, FM (2020) dos Santos Barbeiro e Saraceni, ValeriaAborto no Brasil: o que dizem os dados oficiais? Cadernos de Saúde Pública, v36, nSuppl 1.

    LICHOTTI, C, MAZZA, L, BUONO, R (2020) Os abortos diários do Brasil, Revista Piaui

    MAIA, G; ZANLORENSSI, G, GOMES, L (2020) O direito ao aborto e a legislação ao redor do mundo, Jornal Nexo.

    Este texto foi publicado originalmente no blog PemCie.

  • Vidas negras importam – Black lives matter

    Texto por José Felipe Teixeira da Silva Santos

    Após o homicídio de George Floyd, asfixiado em público pelo policial Derek Chauvin, no dia 25 de maio em Minneapolis nos Estados Unidos, uma onda de protestos violentos se desencadeou em todo o País. Os manifestantes protestam pedindo a condenação do policial por homicídio em 1° (quando o autor do crime tem a intenção de matar) e, mais do que isso, esses manifestantes clamam pelas vidas de pessoas negras que, constantemente, são alvo de uma política de extermínio racista.

    Já no Brasil, o recente homicídio do menino João Pedro, alvejado pela Polícia do Rio de Janeiro dentro de seu próprio lar, mostra novamente que em nosso país, o Estado segue uma política de extermínio da população negra, semelhante aos Estados Unidos. Isto quer dizer que não foi um caso isolado. Apontar que existe uma política de extermínio é afirmar que não foi o primeiro caso, não será o último e, mais do que isso, é prática rotineira e em muitas medidas legitimadas publicamente.

    Os números têm nome e cor

    Casos de pessoas negras que tiveram suas vidas interrompidas, como o de João Pedro, de Ágatha Félix, de Marielle Franco, mortos pelas mãos do Estado, permanecem sem resolução até hoje, compondo uma dolorosa e cruel estatística. A maior parte das justificativas compreende a Guerra às drogas e ao Tráfico, mas ao que fica evidente, esta guerra na verdade é declarada a somente uma parcela da população, a que possui cor e endereço bem determinados. Estas guerras acabam com balas perdidas que coincidentemente são sempre encontradas em corpos de comunidades de favelas ou de bairros de periferia, negros.

    Essas situações não são novidade, mas têm inflamado ainda mais o descontentamento dos cidadãos brasileiros com o panorama atual do país. Similar aos protestos em Minneapolis, aqui também houve protestos e chamados para sairmos às ruas, exigindo justiça pelas mortes e igualdade racial nas políticas públicas e na vida em sociedade. Desse modo, as ameaças pelo contágio da doença COVID-19 causada pelo novo coronavírus, parece não serem suficientes para conter uma população que morre por tantos outros motivos, incluindo um período de isolamento social. Tais atos apresentam, assim, o lado cruel de políticas, de vivências, de rotina em que a morte é um enfrentamento cotidiano – dentro ou fora de casa. 

    Nas redes sociais não é diferente, pessoas das mais diferentes posições e crenças criaram filtros para destacar o seu compromisso com uma luta antifascista, têm postado questionamentos assertivos, cobrando posicionamentos de celebridades, intelectuais e veículos de comunicação.

    Todos estes momentos e movimentos são fundamentais, pois tornam visíveis os problemas da sociedade. Exaltar a ideia de que “vidas negras importam”, tanto quanto o nome e as vidas que estão sofrendo, tornando-os símbolos não é apontar isoladamente um problema que aconteceu, nem deve ser tomado desta forma. É, sim, buscar empatia de quem não vivencia isto como cotidiano (a população branca, por exemplo), tornar evidente a questão como parte da vida de muitos brasileiros. A luta contra o racismo não deve, portanto, estar restrita aos momentos de solidariedade às vítimas. A luta e o engajamento devem ser diários, pois para as famílias de sangue retinto, muitas vezes esse momento já é tarde.

    A famosa a frase da escritora Angela Davis segue apontando para o quanto é preciso protestar contra a desigualdade racial: não basta não ser racista, é preciso ser anti racista. 

    Você não acredita ou ainda tem dúvida que pessoas negras e suas vidas são as principais vítimas de violência no Brasil? Abaixo seguem estatísticas que retratam parte desta realidade.

    Genocídio da juventude Negra no Brasil

    Homicídio de pessoas negras no Brasil

    O informativo de Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil mostra que a população negra tem 2,7 mais chance de ser morta do que a população branca.

    Segundo dados do Sistema de Informação de Mortalidade do SUS, de 2012 a 2017, foram registrados 255 mil mortes de pessoas negras por assassinato

    Segundo a analista de indicadores sociais do IBGE – na série de 2012 a 2017, houve aumento da taxa de homicídios por 100 mil habitantes da população preta e parda (categorias adotadas pelo IBGE), passando de 37,2 para 43,4. Enquanto para a população branca esse indicador se manteve constante no tempo, em torno de 16.

    Em 2017, para jovens brancos, de 15 a 29 anos, a taxa de mortalidade era de 34 em cada 100 mil habitantes. Para pessoas pretas, 98,5 mortes por assassinato a cada 100 mil habitantes; o recorte apenas para homens negros nessa mesma faixa etária, alcança a taxa de 185. No recorte para mulheres, a taxa é de 5,2 para brancas e 10,1 para pretas.

    Crianças negras mortas nos anos de 2019 e 2020 vítimas de bala perdida

    No Brasil, crianças negras são vítimas de balas perdidas, dentro ou fora de suas casas, no trajeto para escola ou onde quer que estejam. A seguir, lista de nomes de crianças negras que tiveram suas vidas interrompidas por esta causa nos anos de 2019 a 2020:

    João Pedro Matos Pinto, 14 anos. Preto. 19/05/2020.

    Luiz Antônio de Souza Ferreira da Silva, 14 anos. Preto. 06/02/2020.

    Anna Carolina de Souza Neves, 8 anos. Preta. 29/01/2020.

    João Vitor Moreira dos Santos, 14 anos. Preto. 09/01/2020.

    Ketellen Umbelino de Oliveira Gomes, 5 anos. Preta. 13/11/2019.

    Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos. Preta. 20/09/2019.

    Kauê Ribeiro dos Santos, 12 anos. Preto. 08/09/2019.

    Kauã Rosário, 11 anos. Preto. 16/05/2019.

    Kauan Peixoto, 12 anos. Preto. 17/03/2019.

    Jenifer Cilene Gomes, 12 anos. Preta. 14/02/2019.

    PM’s negros lideram as estatísticas de mortes em serviço

    Mesmo estando em menor número dentro da corporação (37% do efetivo policial), entre os anos de 2017 e 2018, 51,7% dos policiais mortos em serviço eram negros.

    #vidasnegrasimportam

    Vidas negras importam, seja aqui, seja nos Estados Unidos, seja em qualquer outro lugar do mundo. José Felipe Teixeira da Silva Santos (autor deste texto), em conjunto com toda a equipe do Blogs de Ciência da Unicamp, manifestamos com este documento nossa posição anti racista e antifascista, mais do que não apoiar, nos contrapomos à conivência a qualquer tipo de ação, ato ou política que se articule ao racismo e a antidemocracia, hoje e sempre.

    Para saber mais

    ARAUJO, Taís.. Como criar crianças doces num país ácido | Taís Araújo – TedxSaoPaulo, TEDx Talks. 14 de nov. de 2017. Acesso em 01 de jun. de 2020.

    CERQUEIRA, Daniel RC; MOURA, Rodrigo Leandro de. Vidas perdidas e racismo no Brasil. 2013. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    COELHO, Leonardo. João Pedro, 14 anos, morre durante ação policial no Rio, e família fica horas sem saber seu paradeiro. El País, 19 de mai. de 2020.. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    DIEB, Daniel. Anonymous volta à ativa contra Bolsonaro e Trump; conheça o grupo hacker. Tilt, 02 de jun. de 2020. Acesso em 02 de jun. de 2020.

    DUAS novas autópsias afirmam que George Floyd foi morto por asfixia. Portal G1, 01 de jul. de 2020. Acesso em: 01 de jul. de 2020.

    IBGE: População negra é principal vítima de homicídio no Brasil. Exame, 13 de nov. de 2019. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    IBGE. Tábua completa de mortalidade para o Brasil. Acesso em: 01 de jul. de 2020.

    MARREIRO, Flávia. Marielle Franco, vereadora do PSOL, é assassinada no centro do Rio após evento com ativistas negras. El País, São Paulo, 15 de mar. de 2018. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    MENINO de 14 anos morre atingido por bala perdida na Baixada Fluminense. O Globo, Rio de Janeiro, 08 de fev. de 2020. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    MORRE adolescente de 14 anos baleado em Vila Kosmos. Portal G1, 02 de fev. de 2020. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    NITAHARA, Akemi. Negros têm 2,7 mais chances de serem mortos do que brancos. Agência Brasil, Rio de Janeiro 13 de nov. de 2019. Acesso em: 01 de jul. de 2020.

    OLIVEIRA, Leonardo. Da fatalidade epidemiológica à ferramenta de extermínio: a gestão necropolítica da pandemia. Blogs de Ciência da Unicamp – Especial Covid-19. 2020.

    SANTOS, Guilherme; SOARES, Paulo Renato. Em 10 meses, Rio tem 6 crianças mortas por bala perdida e poucas respostas para as famílias. Portal G1, Rio de Janeiro, 13 de nov. de 2019. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    TABU, Quebrando o. O dia que Brooklyn Nine-Nine explicou em um minuto o privilégio branco, Quebrando o Tabu, 01 de jun. de 2020. Acesso em: 01 de jun. de 2020.

    José Felipe Teixeira da Silva Santos é estudante de Biologia da Unicamp, membro da equipe técnica, administrativa e científica do Blogs de Ciência da Unicamp.
    O texto tem apoio total e incondicional de toda a equipe técnica, administrativa e científica do Blogs de Ciência da Unicamp.

  • 2 anos de Pandemia de Covid-19

    Imagem de Clorofreela

    Hoje completamos 2 anos de Pandemia de Covid-19. No início de 2020, ainda em janeiro, víamos as notícias percorrendo o mundo, acompanhávamos atentos aos acontecimentos recentes acerca de uma pneumonia cujo patógeno era considerado novo, para nós.

    No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde finalmente decreta que o Coronavírus, SARS-CoV-2, tinha se tornado uma pandemia. Isto é, um vírus que atinge todos os países do mundo (ou quase todos).

    Enquanto buscávamos informações seguras para realizar nosso trabalho, aqui no Blogs de Ciência da Unicamp, também víamos proliferar desinformações vindas dos locais em que mais deveríamos confiar e que ocupam postos destinados ao cuidado de nossa população. 

    Em 2 anos, enfrentamos mais de 450 milhões de casos notificados no mundo e 6 milhões de óbitos confirmados registrados. Destes, ainda que com uma subnotificação enorme, quase 11% ocorreu aqui em solo brasileiro (cuja população total é 2,6% da população mundial…). 

    Vidas que não sofrem sozinhas ao virem a termo. Foram pessoas, famílias inteiras, sofrendo com desde a infecção, até internações, cuidados paliativos e descaso ou falta de leitos hospitalares – o que aconteceu em grande parte do mundo. (Podemos analisar isto aqui, aqui, aqui, aqui e mais recentemente, aqui).

    Primeiro ano da Pandemia

    Aqui no Brasil, após um primeiro ano nitidamente marcado pela desinformação, o colapso veio junto com o início de uma lenta vacinação e muita apreensão. Nosso março de 2021 foi marcado com perdas e exaustão, que nublavam a esperança pela chegada da vacina. Uma vez que víamos despedidas de pessoas queridas que não conseguiram se afastar da infecção, semanas antes de sua tão esperada data de vacinação chegar. Este foi o maior colapso sanitário e hospitalar já vivenciado em nosso país.

    O Especial COVID-19, aliava-se ao Todos Pelas Vacinas e também ao Consulado Geral da França em São Paulo para informar sobre vacinas, Covid-19, efeitos sociais da pandemia, surgimento de variantes e muito mais temas necessários para entendermos e enfrentarmos esta doença que se agravava no cenário brasileiro.

    Assim, completamos 1 ano de pandemia no auge do colapso, após uma virada de ano literalmente sem ar, em Manaus, em um ato de descaso sem igual na história de nosso país.

    Segundo ano de Pandemia

    Iniciamos 2021 com 200 mil óbitos. Rapidamente chegamos a marcas mais tristes e devastadoras, que só desaceleraram em função da vacinação que ampliou sua cobertura ao longo do primeiro semestre, ainda que com velocidade menor do que a capacidade brasileira de negociação, compra e distribuição destas vacinas.

    Passamos por uma dolorosa CPI, que escancarou esquemas de corrupção e planejamentos que em nada relacionam-se com princípios de uma gestão pública para salvar vidas, frente a uma crise sanitária que vivenciávamos.

    Debatemos inúmeros medicamentos que não tinham efeito algum para Covid-19, enquanto notícias falsas sobre vacinas brotavam em mensagens instantâneas de aplicativos e causavam hesitação vacinal.

    Fechamos o ano de 2021 com mais de 600 mil mortes em nosso país, muitas delas evitáveis. Vimos, ainda neste final de 2021, o apagão de dados públicos do DATASUS. Sem explicações plausíveis, o que prejudicou muito o monitoramento da doença no Brasil.

    Todavia, a esperança da vacina infantil aprovada pela Anvisa trazia alento para nós, também.

    Junto com a vacina infantil, um novo levante de desinformações era visto, mais cruel e ardiloso: a frequente ameaça que, supostamente, as vacinas causavam miocardite e mal súbito em crianças é uma avalanche constante em nossos meios de comunicação de redes sociais.

    Sem qualquer fundamento ou dados concretos, causam hesitação vacinal em um grupo ainda vulnerável. Piorando, ainda, nosso cenário em que caem as últimas barreiras de cuidados básicos individuais. Por exemplo, as máscaras faciais. Além disso, acentua-se a situação em função de estados e municípios retirando a obrigatoriedade de uso em crianças em fase escolar, sem esquema vacinal completo.

    Seguimos atentos, junto a outros grupos de divulgadores científicos e cientistas, olhando atentamente números, pesquisas, casos pelo mundo, tentando compreender o momento em que estamos vivendo da pandemia. Além disso, com esperança de dias melhores e mais amenos (como acreditamos realmente estarmos alcançando), ainda cientes de que a pandemia não acabou. Não estamos em uma endemia e temos reiterado que tornar-se uma endemia não é algo bom, se negligenciarmos mortes por Covid-19.

    Longe de alarmismos, temos tentado observar a pandemia com um otimismo atento e alerta.

    E com radares ligados para novidades que possam ser importantes para seguirmos divulgando ciência, todos os dias.

    A todes que seguem juntes a nós, nessa toada, nosso muito obrigada.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • SARS e Neo-Cov: sobre morcegos, pangolins e a família dos coronavírus

    Texto por Mellanie Fontes-Dutra, Lívia Okuda Santos e Ana de Medeiros Arnt

    Coronavírus: é uma família de vírus? De onde vêm? A quem infecta? Tem vírus novo? Os morcegos têm culpa no cartório? Pois bem, hoje vamos responder estas e mais algumas dúvidas no texto do Especial de hoje.

    O que é Coronavírus?

    O Coronavírus é uma família de diferentes vírus existentes na natureza. Alguns infectam humanos e outros não. Assim, nesta família viral, existem alguns vírus que causam resfriados e outros que podem causar síndromes respiratórias graves, como COVID-19. Mas temos um novo integrante, recém descoberto, nessa grande família e vamos falar mais dele neste texto!

    Olhando para nossa história, já tivemos pandemias ou risco de pandemias com os coronavírus: pelo SARS-CoV-1 (2002), MERS-CoV (2012) e SARS-CoV-2 (2019). Aliás, as pandemias, como sabemos agora, são eventos causados por patógenos (como vírus ou bactérias) que atingem o mundo inteiro, causando preocupação e danos à saúde da população de muitos países.

    Pode parecer novidade para muitas pessoas, mas existe monitoramento epidemiológico no mundo inteiro de possíveis patógenos pandêmicos, incluindo os diversos coronavírus que encontramos em espécies selvagens ou domésticas. Isto nos ajuda a saber se são ou estão se tornando perigosos para os humanos.

    Então, depois desse background, podemos falar sobre o nosso tema de hoje: Sars e os Neo-Cov. Sendo o primeiro o grupo do nosso conhecido e odiado COVID-19, e o segundo um tipo de coronavírus encontrado recentemente na África.

    Origem do SARS-COV-2: hipótese zoonótica.

    Análises filogenéticas recentes identificaram que os SARS-CoVs provavelmente divergiram de um coronavírus ancestral derivado de morcego entre 1948 e 1982. Filogenia é a área da biologia que estuda a “ancestralidade” dos vírus e seres vivos, a partir de análises genéticas e moleculares, traçando assim sua “história evolutiva”.

    Este estudo sugere que os vírus tipo os SARS-CoVs têm circulado em espécies selecionadas de morcegos há algum tempo. Existem trabalhos que mostraram uma grande semelhança de coronavírus que infectam morcegos com o SARS-CoV-2, apresentando até 96,1% semelhança no material genético, como no caso do estudo recente em Laos.

    Assim, é possível que a linhagem originária do SARS-CoV-2 tenha circulado despercebida em morcegos por décadas. 

    Em outro estudo constatou-se a ocorrência de uma frequente troca de coronavírus entre morcegos. Aliás, é sempre bom lembrar que eles são animais que podem viver aglomerados, podendo gerar uma grande diversidade genética e novas versões de vírus.

    Também é possível que um SARS-CoV tenha evoluído para SARS-CoV-2 em humanos após o chamado spillover de um animal (transbordamento, ou quando um vírus de uma espécie passa a infectar outra espécie diferente) seguido pela rápida transmissão desta cepa (tipo de vírus) adaptada a humanos. Portanto, é um desafio para a comunidade científica estimar a frequência do transbordamento zoonótico.

    Vamos entender melhor como uma pesquisa assim pode ser feita?

    Pesquisadores, em um estudo ainda em preprint, criaram um mapa detalhado de habitats de 23 espécies de morcegos conhecidas por abrigar coronavírus relacionados ao SARS. Nesta pesquisa, sobrepuseram dados sobre onde os humanos vivem para criar um mapa de potenciais pontos de infecção. Visto isso, cerca de 500 milhões de pessoas vivem em áreas onde podem ocorrer spillovers, incluindo o norte da Índia, Nepal, Mianmar e boa parte do Sudeste Asiático. Logo, esta informação pode nos dar pistas de locais em que essa vigilância precisa ser frequente e fortificada.

    Interessante, não? Uma pesquisa que vai não só analisar habitats de animais infectados, mas relacionar-se às populações humanas que podem ter contato frequente com estes animais. Este é um dos modos de realizarmos monitoramentos e termos dados mais precisos (e constantes) de riscos para nós.

    Quer dizer que o vírus não foi feito pelos laboratórios chineses comunistas?

    É isso mesmo, ao que tudo indica a origem do SARS-CoV-2 é natural, de morcegos ou outros animais. 

    Essa afirmação pode ser compreendida melhor com o artigo que relata um vírus muito relacionado ao SARS-CoV-2 já circulava desde 2010 em Camboja. Este artigo adiciona mais uma evidência da origem natural desse vírus. Além disso, mais recentemente, foi descoberto que no norte do Laos alguns vírus muito parecido com o SARS-CoV-2 circulam em morcegos, os quais apresentam particularidades que os relacionam muito proximamente ao vírus da COVID-19.

    E esse spillover não dá em nada?

    Segundo o preprint  já citado, e tendo cuidado com as limitações do dado obtido, cerca de 400.000 pessoas estão provavelmente infectadas com coronavírus relacionados à SARS todos os anos, em transbordamentos que nunca se transformam em surtos detectáveis. 

    “Mas por que, se temos todas essas infecções anualmente, não vemos muitos surtos?” 

    Porque a maioria das infecções ocultas têm vida curta e não levam à transmissão, em razão de os vírus não serem bem adaptados aos humanos. Em geral, alguns humanos podem se infectar diretamente do contato com animais, mas acabam não transmitindo a outros seres humanos, acabando ali mesmo com a infecção. O problema é se a frequência delas se tornar alta, o que pode propiciar a transmissão entre seres humanos.

    Ainda, existe outro risco! Muitas dessas infecções, exatamente por serem “novas”, podem gerar diagnósticos errados, exatamente por sintomas que se assemelham a outras doenças. No caso da COVID-19, por exemplo, os primeiros diagnósticos saíam como gripe ou pneumonia, até que se percebesse que existia um novo patógeno infectando ali! Isto também adiciona um viés ao dado. Soma-se a isso toda uma discussão sobre o acesso à saúde que pessoas de regiões rurais possuem, e isso é uma questão importante.

    Só morcego pode passar doença para humano?

    Na verdade não. Em geral, o monitoramento de vírus que podem fazer o spillover aponta que existem vários vírus – de Influenza por exemplo – que indicam outros animais, especialmente aves. A gente já ouviu falar da gripe aviária e gripe suína, que são vírus da família Influenza. Portanto, tanto espécies ditas como “domésticas”, quanto espécies que vivem em ambientes selvagens podem estar envolvidas em spillover

    Mas em se tratando de coronavírus, apesar de os morcegos serem fortíssimos candidatos a reservatórios desta família, não podemos afirmar com certeza se existem ou não outros animais possíveis. No caso do surto de SARS-CoV em 2002, as Civetas foram um provável candidato, por exemplo.

    E aquele bichinho da China, o pan… pe… pebolim?

    Ah, quer dizer o Pangolin? SIM! Existe a possibilidade de o pangolin ter entrado de bobo nessa história. Ou seja, ser um hospedeiro intermediário entre o possível reservatório do vírus (morcego) e nós. Mas ainda precisamos de mais análises para entender se sim, e como isso ocorreu. 

    Essa situação não seria algo improvável, já que algumas famílias de morcegos (como o Rhinolophidae) compartilham algumas dietas com os pangolins na natureza. E por fim, temos fatores ecológicos que propiciaram esses spillovers. Urbanização, deflorestamento, redução de habitats selvagens forçam uma proximidade dessas espécies conosco, favorecendo contatos e exposições.

    Entretanto, analisando os SARS-CoVs, nota-se uma semelhança de mais ou menos 85,5 -92,4% ao SARS-CoV-2 em seu material genético. Além disso, possuem semelhanças intrigantes com o vírus em regiões que são fundamentais para a interação com nossas células. Especificamente, existe uma região do vírus, conhecida como RBD (sigla para receptor-binding domain), que é exatamente onde o vírus se liga com o ACE2 de nossas células, para entrar nelas. Esta região de um SARS-CoV de pangolim tem 97,4% de semelhança com o do SARS-CoV-2, o que é muito intrigante e mostra que existe muito ainda para conhecermos e, também, que a identificação filogenética destes vírus não é tão simples, tendo em vista que pode haver troca de materiais virais em animais hospedeiros. Isto é, os diferentes tipos de coronavírus que infectam um animal, podem trocar materiais genômicos (que conhecemos como recombinações).

    Imagem retirada de: https://www.cell.com/trends/ecology-evolution/fulltext/S0169-5347(20)30348-7

    Mas o Mercado de Huanan tem alguma coisa a ver?

    Vamos falar disso agora! Vimos anteriormente que os morcegos eram o reservatório do ancestral do SARS-CoV-2, certo? Também sabemos que este mercado é conhecido por ter bancas que vendem animais vivos, como o cão-guaxinim, que já foi associado a emergência do SARS-CoV-1 e que é não só suscetível ao SARS-CoV-2, como capaz de transmiti-lo. 

    Aliás, por meio de análises espaciais, um artigo demonstrou que os primeiros casos relatados de COVID-19 em dezembro de 2019 foram distribuídos geograficamente próximos e centrados no mercado de Huanan, em Wuhan. Assim, os autores comentam que essa proximidade de casos ao mercado de Huanan foi, em Dezembro de 2019, maior que o esperado, dada a densidade populacional de Wuhan ou a distribuição espacial dos casos de COVID mais tarde na epidemia, sugerindo o epicentro no mercado.

    Todavia, o mais interessante é que, considerando o próprio mercado, os dados desse trabalho sugerem que um grande número de casos estava ligado ao setor oeste do mercado, onde a maioria das bancas que vendiam animais vivos se concentravam. Somando os dados, é plausível que várias espécies de mamíferos suscetíveis ao SARS-CoV-2 e que poderiam ser hospedeiros intermediários de seus “parentes ancestrais” foram vendidos vivos no mercado de Huanan em novembro de 2019 e podem ter contribuído para a transmissão.

    Pois é! Há indícios de que não foi “uma só infecção”!

    Deste modo, é provável que houvesse vários animais infectados no mercado de Huanan e pode ter havido pelo menos duas “entradas” do SARS-CoV-2 (linhagens A e B) em humanos, com a entrada da linhagem B e algumas semanas após, a linhagem A.

    A linhagem A do vírus, a qual não havia sido encontrada no mercado de Huanan, tem uma associação geográfica imensa com esse mercado, sugerindo que “as linhagens A e B surgiram nesse mercado e começaram a se espalhar para a comunidade residencial de Wuhan”. Dessa forma, os autores dizem que

    “Amostras positivas para SARS-CoV-2 estavam fortemente associadas à venda de mamíferos vivos, particularmente no canto sudoeste do mercado de Huanan, onde amostras ambientais positivas provavelmente foram derivadas de animais infectados”

    Outro artigo concluiu que a circulação de um vírus ancestral em morcegos, que passou a ser capaz de ligar em ACE2, “pulou” para hospedeiros intermediários (animais suscetíveis) que foram comercializados vivos no mercado de Huanan, surgindo as linhagens A e B pouco tempo depois e a infecção em humanos.

    A importância de monitoramentos ambientais e pesquisa básica!

    Sim, voltaremos a este tema, pois além de informações interessantes e fundamentais para compreendermos melhor o mundo que vivemos, também usamos estas informações para entender a importância da pesquisa científica! Recentemente, o vírus Neo-CoV foi encontrado entre morcegos na África do Sul. Cientistas chineses alertaram para esse vírus, no entanto, falta ainda um entendimento maior sobre seu potencial infeccioso. 

    Neo-Cov: quem é e o que sabemos dele?

    Primeiro, um spoiler: não é uma nova variante do vírus da COVID-19, e não é algo novo no geral!

    O Neo-CoV é um outro tipo de coronavírus que foi relatado pela primeira vez em 2012 e em 2015 durante o surto de MERS-CoV que pode usar receptores ACE2 de morcegos, mas não os receptores ACE2 de humanos. E, até o presente momento, não se observou infecção em humanos em sua forma atual, espalhando-se exclusivamente entre os morcegos.

    De acordo com especialistas, as descobertas feitas pelos cientistas de Wuhan não representam um risco para a humanidade no momento atual. Apenas apontam para a necessidade de se acompanhar mais um tipo de coronavírus e sua evolução.

    O Neo-CoV ganhou a atenção da mídia pelo fato de os cientistas chineses disponibilizarem esses dados recentes (e importantes) em um preprint. Assim, este vírus é na verdade um vírus intimamente relacionado ao MERS-CoV que entra nas células através dos receptores DPP4 e pode usar o ACE2

    Finalizando

    Por fim, imagino que não seja possível negar a importância do monitoramento epidemiológico e do investimento nesta ciência, não é? É muito provável que, para praticamente qualquer patógeno zoonótico da vida selvagem, o transbordamento é mais frequente do que anteriormente reconhecido. E precisamos de mais investimento em ciência e vigilância genômica para monitorá-los de maneira pública para que possamos controlar epidemias e evitar que novas pandemias, como COVID-19, apareçam.

    Além disso, também é sempre bom lembrar que não é culpa dos animais estas infecções. Portanto, não deveríamos interferir ainda mais nos habitats deles e causar danos e diminuição das populações silvestres. Os monitoramentos devem ser no sentido de compreendermos quais são os vírus presentes nestes animais e, também, estabelecermos formas de preservação e diminuição de interações que sejam prejudiciais para nós, enquanto espécie, e para estas espécies silvestres.

    Parte das infecções ocorre (e pode ocorrer) especialmente pela invasão de habitats destes animais, aumentando o contato entre seres humanos e espécies de ambientes naturais.

    Para saber mais: 

    LAM, Tommy Tsan-Yuk; JIA, Na; ZHANG, Ya-Wei; et al (2020) Identifying SARS-CoV-2-related coronaviruses in Malayan pangolins Nature, v 583, n 7815, p 282–285, 2020. 

    ‌XIAO, Kangpeng; ZHAI, Junqiong; FENG, Yaoyu; et al (2020) Isolation of SARS-CoV-2-related coronavirus from Malayan pangolins Nature, v583, n7815, p 286–289. ‌

    ZHANG, Yong-Zhen ; HOLMES, Edward C (2020) A Genomic Perspective on the Origin and Emergence of SARS-CoV-2 Cell, v 181, n 2, p 223–227.

    BONI, Maciej F.; LEMEY, Philippe; JIANG, Xiaowei; et al (2020) Evolutionary origins of the SARS-CoV-2 sarbecovirus lineage responsible for the COVID-19 pandemic Nature Microbiology, v5, n11, p 1408–1417. 

    BANERJEE, Arinjay; DOXEY, Andrew C.; MOSSMAN, Karen; et al (2021) Unraveling the Zoonotic Origin and Transmission of SARS-CoV-2 Trends in Ecology & Evolution, v 36, n 3, p 180–184. 

    KUPFERSCHMIDT, ‌SARS-like viruses may jump from animals to people hundreds of thousands of times a year. Science.org. 

    SÁNCHEZ, Cecilia A; LI, Hongying; PHELPS, Kendra L; et al (2021) A strategy to assess spillover risk of bat SARS-related coronaviruses in Southeast Asia. ‌

    FORATO, Fidel (2021) NeoCoV: tipo diferente de coronavírus chama atenção, mas não chegou em humanos Canaltech.

    KUMAR, Ajeet (2021) NeoCov: What is WHO saying about newly discovered coronavirus found in bats? Republic World. 

    WOROBEY, Michael; LEVY, Joshua I; MALPICA, Lorena M; et al (2022) The Huanan market was the epicenter of SARS-CoV-2 emergence, Zenodo, 2022. 

    PEKAR, Jonathan E; MAGEE, Andrew; PARKER, Edyth; et al (2022) SARS-CoV-2 emergence very likely resulted from at least two zoonotic events Zenodo, 2022. 

    Observação 1:

    Este texto foi organizado com informações complementares às publicações de Mellanie Fontes-Dutra

    1. E se eventos zoonóticos como o que provavelmente gerou o SARS-CoV-2 estiverem acontecendo centenas de milhares de vezes por ano?
    2. Sobre o Neo-CoV
    3. Origem do SARS-CoV-2

    Observação 2

    Há trechos desta postagem que são traduções livres de artigos, com adequações de linguagem para melhor compreensão do tema.

    As Autoras

    Ana Arnt é licenciada em biologia, doutora em educação, professora do Instituto de Biologia da Unicamp, coordena os projetos Blogs de Ciência da Unicamp e o Especial COVID-19.

    Livia Okuda é estudante de Farmácia na Unicamp e divulgadora científica do Especial Covid-19 do Blogs Unicamp.

    Mellanie Fontes-Dutra é biomédica, doutora em neurociência e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Divulgadora Científica na Rede Análise COVID-19. Autora convidada no Especial COVID-19 e parte do projeto Todos Pelas Vacinas.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Vacinação, Transmissão e Variantes: o que aprendemos nesse um ano?

    Vacinação, Transmissão e Variantes: o que aprendemos nesse um ano?

    Por meses e meses, o que mais tínhamos em nossas mentes quando o assunto Pandemia vinha à tona eram perguntas e mais perguntas. Por exemplo, o vírus é mortal? Como sei que estou infectado? Há uma cura? Quanto tempo será de lockdown? Preciso usar máscara e álcool em gel? Quando vai haver uma vacina? Tem algum remédio? Como as vacinas funcionam? Quanto tempo dura a proteção gerada por elas? E as variantes? Posso me infectar e transmitir mesmo vacinado? Como acontece a transmissão?

    Mês a mês, pesquisa após pesquisa, fomos aprendendo e descobrindo um pouco mais sobre o SARS-CoV-2, a COVID-19, as variantes e as vacinas.

    Mas ainda assim, duas perguntas ressoavam no fundo de nossas mentes, nos fazendo repeti-las a cada nova descoberta: por quanto tempo a imunidade das vacinas dura e, mesmo vacinado, ainda posso infectar novas pessoas?

    Bem, logo de cara posso lhes dizer que ainda não temos certeza de quanto tempo a imunidade total das vacinas dura em nosso corpo. Temos algumas noções, vários estudos avaliando o número de anticorpos, com muitas pesquisas mostrando a redução dos anticorpos após vários meses (o que é algo totalmente normal olhando do ponto de vista imunológico), mas ainda um baixo número de artigos avaliando a resposta imune celular, isso é, a porção do nosso sistema imune que nos defende utilizando células. 

    Entretanto, quanto ao impacto das vacinas na transmissão, temos cada vez mais informações que nos auxiliam em montar um panorama geral sobre esse assunto. E é sobre isso que vamos falar aqui hoje.

    O que se sabe até o momento sobre a influência das vacinas na transmissão da COVID-19?

    Pouco tempo após as primeiras campanhas de vacinação ao redor do mundo terem começado, os primeiros estudos avaliando sua capacidade de reduzir os sintomas da COVID-19, hospitalizações e mortes eram publicados. Nessa época, muitos desses estudos chegavam a comentar sobre a possibilidade das vacinas estarem reduzindo a transmissão do SARS-CoV-2 entre as pessoas. Contudo, esses primeiros estudos não focaram em avaliar exatamente a transmissão entre as pessoas. Por causa disso, muitas dessas suposições sobre o impacto na transmissão ficavam no campo das ideias.

    Entretanto, já passou um ano de vacinação mundo afora. Assim, vários estudos foram feitos focando especificamente no impacto da vacinação na transmissão, avaliando e mostrando efeitos bem positivos. Tudo isso reafirma a necessidade do uso de vacinas (mas não exclusivamente o uso delas) para se chegar ao fim da pandemia. 

    Entre muitas coisas, esses são os principais pontos que sabemos no momento:

    • As vacinas reduzem a infecção inicial causada pelo SARS-CoV-2. Isto é, os sintomas sentidos por uma pessoa totalmente vacinada infectada tendem a ser mais leves, do que em uma pessoa não vacinada infectada;
    • O tempo levado pelo vírus para gerar uma cópia de si mesmo dentro das nossas células (chamado de tempo de replicação) é menor em pessoas totalmente vacinadas que se infectaram. Isto quando comparado com pessoas não vacinadas infectadas. Consequentemente, a quantidade de vírus no organismo (a carga viral) de uma pessoa totalmente vacinada infectada é menor;
    • Pessoas totalmente vacinadas infectadas emitem uma quantidade menor de partículas virais através de tosse, espirro ou mesmo a fala. Além disso, as partículas virais emitidas por essas pessoas têm uma infecciosidade menor. 
      • Em outras palavras, uma pessoa totalmente vacinada e que foi infectada joga para fora do seu corpo uma quantidade menor de vírus, e esses vírus têm também uma menor capacidade de infectar outra pessoa;
    • Pessoas totalmente vacinadas que foram infectadas pelo SARS-CoV-2 conseguem limpar o vírus do seu corpo mais rapidamente. Isto é, o sistema imune desses indivíduos é mais eficiente em matar os vírus e as células infectadas por ele, em um intervalo de tempo menor.

    Ok, em um grande resumo, o que isso quer dizer? 

    Todos esses dados nos mostram que vacinas foram e são capazes de reduzir o tempo que o vírus fica dentro de nosso corpo, a partir de várias formas que é REDUZINDO:

    • a multiplicação do vírus;
    • a sua emissão;
    • o tempo que o vírus fica dentro do corpo;

    Assim sendo, de forma indireta, é possível dizer que as vacinas impactam e reduzem sim a transmissão do SARS-CoV-2 em pessoas totalmente vacinadas.

    E se você chegou aqui e ainda tem dúvidas sobre isso, vamos pensar o seguinte: 

    “Se uma pessoa com COVID-19 têm menos vírus dentro do corpo (por esse não estar conseguindo se multiplicar rapidamente), tal pessoa emite menos vírus para o ambiente ao seu redor (por tossir e espirrar menos, por exemplo) e fica menos tempo com o vírus dentro do corpo (por seu sistema imune estar matando o vírus e as células infectadas mais rápido). Assim, essa pessoa tem uma chance menor de transmitir o vírus para outros indivíduos, quando comparada com um indivíduo que se infectou sem estar vacinado.”

    Aqui é o momento em que faço algumas ressalvas. Note bem a palavra que foi usada anteriormente: indivíduos vacinados têm uma chance MENOR de transmitir para outras pessoas. Isso não quer dizer que, se você foi vacinado com duas ou três doses, você não terá chance alguma de pegar e transmitir o SARS-CoV-2. 

    Além disso, uma segunda ressalva que devo fazer aqui é sobre esses mesmos estudos que citei: as pesquisas mais completas avaliaram a transmissão de pessoa para pessoa em contatos domiciliares, e não em grandes ambientes abertos ou com grandes aglomerações. Para essas situações, novamente, ainda é estritamente necessário que nós continuemos a utilizar medidas não farmacológicas, como o uso de máscaras e de distanciamento social, em ambientes fechados ou com grandes quantidade de pessoas. 

    O grande ponto da discussão aqui é: uma pessoa com o esquema vacinal completo tem uma menor PROBABILIDADE de conseguir transmitir o vírus para outra pessoa. As vacinas não param a transmissão, mas sim reduzem esta.

    Além disso, como tem se falado muito, as vacinas também garantem outras vantagens como:

    • A redução da chance de desenvolver doença grave, hospitalização e morte por COVID-19;
    • A intensidade dos sintomas sentidos após o fim da COVID-19 de longa duração (que também têm sido chamadas de Sequelas Pós-COVID)
    • E também mas não menos importante, a frequência que variantes de preocupação surgem;

    Ué, mas ouvi dizer que as vacinas ajudam no surgimento de novas variantes

    Pois bem, já vou dar a resposta mais simples, curta e direta para esse tipo de boato que foi veiculado recentemente: Não. Vacinas não ajudam no surgimento de novas variantes. Ponto. 

    Agora que já deixamos isso certo, vem entender melhor comigo o motivo.

    Durante uma infecção, seja por um vírus, bactéria, fungo, ou qualquer outro parasita, nosso corpo trava um cabo de guerra: nosso sistema imune contra o parasita em questão (no caso, o SARS-CoV-2). Para fugir das diversas defesas que o sistema imune possui, os vírus possuem utilizam de sua maior arma: sua alta capacidade de mutação. 

    A mutação é nada menos que uma troca em alguma das bases nitrogenadas (as famosas “letrinhas”) no material genético, durante o processo de replicação. Entretanto, esse processo é caro, pois somente poucas mutações serão benéficas, enquanto que a grande maioria das mutações que surgirem irão ser, de alguma forma, ruins para o organismo em questão (no caso, o vírus). 

    O modo de se contornar esse problema é relativamente simples: infectando mais pessoas, ou, em outras palavras, se transmitindo mais. Quanto mais pessoas são infectadas (alta transmissibilidade), mais vírus são mutados, e maior é a chance de aparecer uma mutação que seja boa para ele (e, consequentemente, ruim para nós). Quando uma mutação boa aparece, esse vírus consegue se transmitir mais fácil, infectar mais pessoas, ganhar mais mutações, e isso acaba se tornando um ciclo eterno. 

    Dessa forma, surge a pergunta: como reduzir o número de mutações?

    E a resposta mais simples (que, a propósito, já temos falado há bastante tempo) é: reduzindo a transmissão do vírus entre as pessoas. Para isso, precisamos utilizar tanto medidas farmacológicas quanto não farmacológicas. Por isso a importância do uso combinado de máscaras, álcool em gel, distanciamento social E vacinas. As três primeiras medidas vão atuar logo no começo de uma cascata de eventos (citada logo mais), enquanto a vacina atua a partir do meio dela. A seguir exemplificamos como todas essas medidas auxiliam na redução da transmissão e, consequentemente, reduzem o surgimento de novas variantes. 

    Vacinação em massa e uso de medidas não farmacológicas → Menos pessoas se infectando → pessoas que foram infectadas tendo um tempo de infecção menor → Com o tempo de infecção menor, o vírus fica menos tempo no corpo do indivíduo  → Quanto menor o tempo que o vírus fica no corpo do indivíduo, menor a quantidade de vírus se multiplicando ali → Quanto menor a quantidade de vírus se multiplicando, menor a quantidade de mutações aparecendo → Quanto menor a quantidade de mutações aparecendo, menor a chance de surgir uma variante mais transmissível.

    Finalizando

    O ponto central aqui é mostrar que somente uma medida (como a vacinação de parte da população), não será o suficiente para acabarmos com a pandemia. Se quisermos que ela realmente chegue ao fim, precisamos todos fazer um esforço em conjunto para reduzir a transmissão do vírus, com a vacinação de TODA a população global, aliado ao uso de máscara, distanciamento social e – quando necessário – quarentena. Somente assim seremos capazes de diminuir o surgimento de novas variantes e superar a pandemia de uma vez por todas.

    Para saber mais:

    Outros Materiais:

    • Mellanie Fontes-Dutra

    Vacinas impactam na transmissão;

    Vacinas podem produzir variantes mais resistentes? Não!

    Dados de Harvard (NBA) com tempo menor de transmissão e recuperação mais rápida da infecção entre vacinados x não vacinados

    Vacinação reduz transmissão de delta e individuos vacinados transmitem menos

    Totalmente vacinados contrair e transmitir COVID-19 em casa, mas em taxas MUITO MENORES do que indivíduos não-vacinados e as vacinas reduzem o risco de infecção pela variante #Delta e acelera a depuração viral

    Dados REACT-1 Imperial College London proteção vacinados (delta) e possivel redução da transmissão em vacinados (medidas seguem sendo necessárias enquanto transmissão for elevada).

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Vacinação Infantil contra Covid-19: desinformação, miocardite e outros alarmismos

    Muito tem se falado e discutido sobre a vacinação infantil, com informações que causam receio, medo por miocardite e mal súbito, dentre tantos temas. Já soltamos aqui o spoiler: as vacinas infantis são seguras! E neste texto explicaremos melhor o tema.

    Recentemente tivemos uma campanha do grupo Todos Pelas Vacinas para explicar algumas coisas sobre tal assunto, principalmente aos pais dos pequenos. A partir dessa ideia, preparamos mais esse material, voltado agora para mostrar as diferenças entre as vacinas adultas e infantis da Pfizer, detalhes que vocês (pais) podem se atentar na hora de levar seus filhos para se vacinar e alguns outros dados sobre informações que correm solta sobre as vacinas infantis. Segura na minha, respira fundo e vêm comigo entender um pouco melhor isso.

    Quais as diferenças entre as vacinas infantis e adultas?

    Para começar, já vamos tirar esse elefante branco da sala. A  primeira coisa a se avisar é que as doses recebidas pelas crianças, no caso da vacina Pfizer, são menores – aproximadamente ⅓ – do que as doses aplicadas em adultos e terão um intervalo de 21 dias entre a primeira e segunda dose. Por causa disso, não é necessário se preocupar com falas alheias como “meu filho vai receber uma dose muito grande da vacina e por isso vai passar mal”.

    Todas essas vacinas passaram por rigorosas fases de testagem (já comentadas aqui no Especial e vamos falar de novo no decorrer desse texto), a fim de causar a melhor proteção possível e o menor número de efeitos colaterais nos pequenos. Inclusive, é importante dizer que durante a fase de testes, nenhum efeito colateral (também chamado de efeito adverso nos estudos) grave foi visto em qualquer uma das crianças submetidas aos testes.

    Outros detalhes verificáve na hora da aplicação da vacina são referentes ao frasco desta e a dose injetada. Cada criança recebe 0,2 mL. Ou seja, diferente dos adultos que recebiam 0,3 mL. Todavia a maior diferença é, provavelmente, quanto ao frasco da vacina: este é de cor laranja, diferindo significativamente do frasco roxo das vacinas adultas. Por fim, para matar a curiosidade, cada frasco contém 10 doses da vacina infantil (os frascos adultos continham 6 doses) e podem ser armazenados por até 2 meses e meio.

    E o tal risco de causar inflamação no coração, a miocardite?

    Voltando então para os efeitos colaterais, vamos agora falar da chance de causar miocardite. Muito tem se falado, comentado e alarmado sobre isso. Mas nos estudos feitos até o momento não foi visto qualquer caso de inflamação no coração (miocardite) e dois outros efeitos relacionados (pericardite e arritmia) em crianças entre 5 e 11 anos. Entre as faixas de idades já estudadas, foi verificado que homens entre 12 e 24 anos tinham uma maior chance de desenvolver esse efeito após a vacinação. Contudo, essa chance ainda é muito menor comparado a probabilidade de desenvolver estas inflamações após contrair a COVID-19. 

    Assim, considerando que a chance de contrairmos o SARS-CoV-2, sem vacinação, é muito grande, especialmente por causa da circulação de variantes mais transmissíveis, a chance de desenvolver miocardite após COVID-19 é muito maior do que após se vacinar contra a própria COVID. 

    Para exemplificar melhor isso, trarei aqui os dados de uma pesquisa publicada recentemente na revista Nature, uma das revistas científicas mais conceituadas em todo o mundo. Os pesquisadores avaliaram cerca de 38 milhões de pessoas, de ambos os sexos e com mais de 16 anos, buscando entender se havia alguma relação entre uma maior chance de desenvolver miocardite e as vacinas contra COVID-19 da Pfizer (~17 milhões de vacinados), Astrazeneca (~20 milhões) e Moderna (~1 milhão). Colocando em termos numéricos,os cientistas descobriram o seguinte:

    • A cada 1 milhão de pessoas vacinadas, até 28 dias após a aplicação da primeira dose:
      • Astrazeneca: houve 2 casos de miocardite;
      • Pfizer: houve 1 caso de miocardite;
      • Moderna: houve 6 casos de miocardite;
    • A cada 1 milhão de pessoas vacinadas, até 28 dias após a aplicação da segunda dose:
      • Tanto para Astrazeneca quanto para Pfizer: não se viu casos de miocardite;
      • Moderna: houve 10 de miocardite;
    • A cada 1 milhão de pessoas não vacinadas que testaram positivo para COVID-19: houve 40 casos de miocardite.

    Colocando em termos mais práticos, o que isso quer dizer?

    Se considerando o maior índice de miocardite em pessoas vacinadas, que foi com segunda dose da Moderna, em que a cada 1 milhão de indivíduos, 10 desenvolviam miocardite, a chance de desenvolver a doença era 4 vezes menor do que em pessoas não vacinadas que se infectam com o SARS-CoV-2. Uma vez que a cada 1 milhão de pessoas não vacinadas que se infectaram, 40 desenvolviam a inflamação no coração. 

    Isso nos mostra, novamente, que as vacinas além de serem muito seguras também protegem contra outros riscos que muitas vezes não associamos com a COVID-19, por se tratar de um vírus respiratório. Além disso, é importante lembrar que mesmo se a vacina da Moderna for contra indicada para alguns grupos de risco, ela não está sendo usada aqui no Brasil, assim, não precisamos nos preocupar com isso.

    “Ok, mas quais são os efeitos a longo prazo desta vacina?”

    Falando dos efeitos de longa duração, a primeira coisa que precisamos deixar claro aqui é:

    Não! as vacinas de RNA mensageiro (como as da Pfizer e da Moderna) NÃO IRÃO alterar o seu DNA ou se integrar à ele.

    Não, não iremos virar jacarés. Não vamos desenvolver câncer, doenças autoimunes ou infertilidade. Dito isso, vamos entender um pouco melhor essas questões.

    Deixando vários detalhes (um tanto quanto complicados) de lado, nossas células possuem duas principais barreiras ou membranas: a membrana plasmática (ou celular) e a membrana nuclear. A primeira envolve e protege toda a célula, enquanto que a segunda realiza separa e protege o núcleo da célula. E é neste espaço dentro do núcleo que se encontra o nosso material genético, o DNA.

    Ambas as barreiras são feitas a partir de gordura (mais especificamente, componentes chamados Lipídeos) e proteínas com pequenos açúcares ligados a elas (as Glicoproteínas). Isso torna tais barreiras seletivas, em outras palavras, a célula e o próprio núcleo permitem que somente alguns componentes entrem e saiam. 

    Um grande exemplo disso são os próprios RNAm (ou RNA mensageiro). Todos nós produzimos RNAm, pois estes são as instruções que nossas células usam para produzir proteínas, tais como a Insulina (relacionada ao consumo de glicose), Mielina (presente nos neurônios) e Colágeno (presente na pele e em vários outros lugares do corpo). Entretanto, dentro do núcleo, as moléculas de RNAm duram pouquíssimo tempo pois possuímos várias enzimas que destroem elas. Por causa disso, uma vez que esses RNAm são produzidos, eles são transferidos rapidamente para o citoplasma das células.

    No Citoplasma (a parte do células onde estão todas as suas organelas e componentes, como o próprio núcleo), o RNAm consegue durar um pouco mais de tempo, o suficiente para ser utilizado por outras organelas e produzir nossas proteínas. Aqui é importante apontar um detalhe: uma vez que o RNAm sai do núcleo, ele não consegue mais voltar para lá. 

    Pensando nisso tudo, agora conseguimos entender porque as vacinas de RNAm não vão alterar nosso genoma: uma vez que o RNAm das vacinas entra nas nossas células, ele não consegue entrar no núcleo das células!

    E mesmo que isso acontecesse, seria necessário todo um conjunto de enzimas para que esse RNAm fosse integrado ou alterasse nosso DNA. Além disso, é preciso dizer que mesmo no citoplasma das células e na corrente sanguínea, essa RNAm das vacinas dura bem pouco, ficando um tempo bem reduzido em contato com nossas células.

    Algumas pessoas comentam ainda sobre a própria proteínas Spike produzida a partir do RNAm dessas vacinas, e a possibilidade dela alterar nossas proteínas. Entretanto, a proteína Spike não possui o que chamamos de Sítio Ativo. Isto é, uma parte específica das proteínas capaz de se ligar a outras proteínas e alterá-las de alguma forma. Fora o fato da própria Spike ser produzida por poucos dias ou semanas pelo corpo, que é tempo suficiente para estimular o sistema imunológico.

    Assim sendo, quando falamos em efeito adversos a longo prazo, não faz sentido nós questionarmos sobre possíveis efeitos nos meses após a aplicação das vacinas. Os poucos efeitos adversos que vemos aparecem e são estudados logo que as vacinas são aplicadas, ainda durante as fases de testes.

    É verdade que alguns poucos efeitos adversos muito raros só apareceram após a aprovação das vacinas, como os casos de miocardite e trombose. Contudo, é por isso que mesmo após a aprovação, os pesquisadores continuam estudando as vacinas por alguns anos. Justamente para observar e estudar esses efeitos raros, que na grande maioria das vezes se mostram mais raros do que problemas parecidos gerados pelas próprias doenças.

    Novamente, os casos de miocardite e trombose são exemplos claros disso: apesar de serem efeitos raríssimos notificados em algumas pessoas após a vacinação, o risco de se desenvolver os mesmos efeitos a partir da infecção da COVID-19 sem estar vacinado  é muito maior, do que comparado com a vacinação.

    Finalizando…

    Vacinas salvam vidas. Além disso, protegem contra efeitos muito mais raros e perigosos que as doenças e a própria COVID-19 causa, inclusive efeitos que ainda entendemos pouco. Vacinar é um ato de amor, não só consigo, não só com seus filhos, mas também com o próximo. Só assim poderemos acabar com a pandemia e voltar a viver com o tão sonhado – e ainda distante – “normal” que vive em nossas lembranças.

    Ou seja, vacinem suas crianças.

    Para saber mais:

    Patone, M, Mei, XW, Handunnetthi, L, Dixon, S, Zaccardi, F, Shankar-Hari, M, … & Hippisley-Cox, J (2021) Risks of myocarditis, pericarditis, and cardiac arrhythmias associated with COVID-19 vaccination or SARS-CoV-2 infection Nature medicine, 1-13.

    Chaudhary, N., Weissman, D., & Whitehead, K. A. (2021). mRNA vaccines for infectious diseases: Principles, delivery and clinical translation. Nature Reviews Drug Discovery, 20(11), 817-838.

    Cristaldo, H (2021) Anvisa: vacinas em uso no Brasil não são experimentais Agência Brasil.

    Anvisa (2022) Anvisa aprova vacina da Pfizer contra Covid para crianças de 5 a 11 anos Governo do Brasil, Ministério da Saúde.

    Anvisa (2022) Anvisa alerta para diferenças entre as vacinas para crianças Governo do Brasil, Ministério da Saúde. 

    Mellanie Fontes-Dutra: Perguntas e respostas sobre vacinação contra covid em crianças para pais com receio,

    NOTA TÉCNICA Nº 496/2021/SEI/GGMED/DIRE2/ANVISA.

    Outros materiais:

    Bulas das vacinas aprovadas no Brasil para adultos e crianças.

    Plano nacional de operacionalização da vacinação contra a Covid-19.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Estudos preliminares, vacinas, políticas públicas e eventos cardiovasculares

    Texto escrito por Mellanie Fontes-Dutra, Ana Arnt e Rafael Lopes Paixão

    Semana passada fez barulho uma notícia que nos preocupou bastante pela repercussão que tomou, mesmo que por algumas horas apenas, os assuntos do momento nas redes sociais. O barulho se deu pela suspensão da vacina Janssen em território Francês, por conta de um suposto aumento leve no risco de infarto em adultos abaixo de 75 anos, nas primeiras duas semanas após a vacinação.

    Nosso compromisso, aqui no Blogs Unicamp, em parceria com o Todos Pelas Vacinas, sempre foi com a responsabilidade em relação ao modo como trabalhamos as informações científicas que vemos circulando – e, também, em relação às notícias que aparecem.

    A começar pelo título da reportagem, já ligamos o nosso radar e fomos buscar os artigos que estavam embasando a tomada de decisão francesa e, também, a reportagem no UOL Notícias.

    O texto de hoje é para apontar o que aconteceu e qual a base técnica que gerou esta decisão. Também achamos interessante comentar sobre a importância de ligarmos o sinal de alerta com notícias bombásticas e alarmistas, que podem gerar insegurança, dúvidas e (por de tudo) hesitação vacinal. Reiteramos aqui, portanto, que não consideramos este um bom momento de “ganhar cliques” com manchetes que podem desinformar a população ou causem qualquer tipo de receio em relação à vacinação. Especialmente de forma injustificada! Essa técnica, tida como clickbait, além de não ajudar a entender o problema, ainda pode trazer danos exatamente por não serem todas as pessoas que abrem os links e leem as reportagens inteiras.

    Então já vamos soltar o spoiler do final da reportagem:

    E agora…

    Vamos aos estudos!

    “França limita uso da vacina Janssen, que sugere leve aumento do risco de infarto”

    Aqui no Brasil vimos primeiramente no Uol Notícias, mas também foi noticiado em veículos franceses. A primeira ressalva já é para o “leve aumento do risco”.

    Lembremos que “risco de alguma coisa” é uma medida, com base em estudos populacionais, de algo acontecer. Além disso, nos salta aos olhos o estudo ser “PRELIMINAR”. O que isto quer dizer?

    Estudo preliminar é aquele que necessita mais estudos para confirmar os dados encontrados.  Neste sentido, gostaríamos de ressaltar aqui uma das frases que consideramos importante.

    “Para o risco de infarto do miocárdio após a vacina Ad26.COV2.S [Janssen] a estimativa é mais incerta devido ao baixo número total de casos.”

    Um pouco sobre os dados técnicos: Intervalos de confiança na incidência relativa

    Mas não é só isso, há mais elementos ainda. Vejamos também os intervalos de confiança na incidência relativa. Esta é uma medida que pode oferecer vislumbres do quanto um fator ocorre em uma população durante um  período analisado. Isto é: um evento, em um grupo de pessoas, em um tempo definido pelo estudo.

    Esta parte é chatinha mesmo, pois é parte da compreensão dos dados do artigo em si, e têm alguns detalhes que são fundamentais para sabermos se podemos ou não afirmar enfaticamente (spoiler: nunca podemos) os resultados (e utilizá-los para compor uma política pública, por exemplo)·

    Pois bem, estes intervalos de confiança na incidência relativa foram muito amplos, o que adiciona um grau de incerteza sobre a verdadeira incidência desses eventos, nesse caso.

    O que isso quer dizer?

    O Intervalo de Confiança diz quanto da medida que estamos usando é observada em uma amostra. Por exemplo, o Brasil tem uma amplitude de temperaturas que vai de 0ºC até 40ºC. Mas isso não quer dizer que essas temperaturas são frequentes, ou acontecem todas na “mesma quantidade”. Não quer dizer, também, que a “média de temperatura observada no país é de 20ºC”.

    Pois existe uma faixa de temperatura que é mais frequente – e esta faixa pode estar mais próxima dos 30-40ºC do que do 10-20ºC. Sem mais dados coletados, ou maior precisão das informações, não temos segurança em afirmar muita coisa sobre a temperatura, ou variação de temperatura média, em nosso país. O mesmo é para o Índice de Confiança (IC), se vc tem um IC largo, sem mais informações coletadas, significa que vc tem pouca certeza sobre essa medida que você observou. Ou que sua amostra não é representativa do fenômeno que se quer observar.

    Mas é segura mesmo essa tal vacina de adenovírus?

    Sim! No mundo inteiro foram mais de 38 milhões de doses de Janssen aplicadas. A própria reportagem da UOL reitera que com todas estas aplicações, não houveram efeitos colaterais que justificassem uma interrupção do uso desta vacina!

    Já o relatório – que foi a base desta notícia – cita outros estudos que estariam de acordo com estes resultados benéficos da vacina Janssen. Isto é, todos os estudos citados ressaltam que:

    • Os riscos pela COVID-19 são muito maiores do que qualquer risco oferecido pela vacinação, OU
    • Os benefícios da vacina superam riscos de eventos mais raros

    Sabemos, inclusive, que comparando com a infecção pelo vírus SARS-CoV-2, há um risco maior de problemas cardíacos do que eventos relacionados à vacinação, segundo este estudo aqui. Além disso, também existem indícios de que podem existir fatores de confusão quanto a estes riscos relacionados com a vacinação. Para os autores do estudo, os resultados precisariam ser confirmados com mais estudos e qualquer análise a partir dos resultados obtidos precisaria ser vista com muita cautela. Outro estudo nessa direção fala ainda que existe uma limitação para a generalização dos resultados e, de qualquer forma que olhemos, os benefícios da vacinação é maior.

    Ainda sobre o relatório, vacina Janssen e a França

    O relatório usado como base para a notícia do UOL e para a interrupção da vacinação com a Janssen, no entanto, têm mais uma questão importante a ser observada. Os dados foram analisados a partir do risco “ultraindividual”, como eles citaram. Neste caso, os dados não poderiam ser extrapoláveis para uma população. Com isso, reitera-se a necessidade de mais estudos confirmatórios, reforçada pelos próprios autores. 

    Aliás, é importante também lembrar do contexto da França. Temos um país com uma cobertura vacinal relativamente alta (~80% para a primeira dose e 77,3% para a segunda dose). Além disso, a limitação da vacina da Janssen é temporária e, talvez, não tenha um efeito efeito significativo sobre o andamento da vacinação. 

    Sobre as publicações, extrapolações de dados e políticas públicas

    Como falamos no início deste texto, nos preocupa muito a análise alarmista e descuidada dos dados de artigos e pesquisas, especialmente com dados que indicados como “preliminares”.

    Desde o início da pandemia temos falado sobre dados preliminares (que precisam de mais pesquisa para confirmarem-se), estudos em preprint (não avaliados por pares) e pesquisas feitas com uma amostra pequena da população. E veja, de modo algum estamos dizendo que estes estudos não são importantes. O que queremos dizer é: eles são estudos que precisam de mais análise e, portanto, cautela nas interpretações.

    E a atenção deve-se redobrar para tomadas de decisões em políticas públicas e notícias em grandes veículos! Isto porque estudos assim precisam confirmar dados com mais análises, replicação de experimentos, coleta de dados em populações maiores. Tomar decisões apressadas – ou jogar manchetes sensacionalistas pode ter um efeito negativo no que temos chamado de hesitação vacinal.

    Isto é, causar um efeito de receio frente à vacinação, sem que tenhamos dados realmente relevantes sobre o que estamos falando.

    E, novamente, não estamos de modo algum dizendo que os estudos não foram bem conduzidos ou os resultados não são reais ou bem analisados. Estamos ressaltando o que os próprios autores falam: “é preciso mais dados que confirmem”; “precisamos de cautela para não termos conclusões precipitadas”; “seria importante replicar experimentos”, dentre outras falas são indícios bem importantes de dados preliminares e amostras pequenas

    Por fim

    Sobre este estudo reportado, especificamente, precisamos entender até onde esse “leve aumento de risco” seria maior do que o risco que a própria doença oferece, durante sua fase aguda E APÓS essa fase. Este dado é fundamental para tomadas de decisão no escopo de uma política pública, por exemplo. Portanto, o intuito desse texto é trazer um pouco da discussão sobre os achados em si, na perspectiva de política de saúde pública, e alertar para a forma como esses dados são compartilhados, para não fomentar uma hesitação vacinal que não faz sentido no contexto atual, e que pode prejudicar a adesão à vacinação em outros locais.

    Para saber mais

    Botton, J, Jabagi, MJ, Bertrand, M, Baricault, B, Drouin, J, Le Vu, S, Weill, A, Farrington, P, Zureik, M, Dray-Spira, R (2022) Evaluation du risque d’infarctus du myocarde, d’accident vasculaire cérébral et d’embolie pulmonaire suite aux différents vaccins anti-COVID-19 chez les adultes de moins de 75 ans en France, Epi-Share Rapport complet

    HAS (2022) Covid-19 : la HAS rend trois nouveaux avis pour actualiser la stratégie de lutte contre le virus

    Sidik, SM (2022) Heart-disease risk soars after COVID — even with a mild case, Nature 602, 560

    Tanne, JH (2022) Covid-19: Even mild infections can cause long term heart problems, large study finds, BMJ

    UOL (2022) França limita uso da vacina Janssen; estudo sugere leve aumento do risco de infarto

    Xie, Y, Xu, E, Bowe, B et al (2022) Long-term cardiovascular outcomes of COVID-19, Nat Med (2022).

    Outros textos do Especial

    Reações Adversas, vacinação e desinformação

    Políticas Públicas em Saúde e Vacinas

    Todos Pelas Vacinas

    Os Autores

    Ana Arnt é licenciada em biologia, doutora em educação, professora do Instituto de Biologia da Unicamp, coordena os projetos Blogs de Ciência da Unicamp e o Especial COVID-19.

    Mellanie Fontes-Dutra é biomédica, doutora em neurociência e pesquisadora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul e Divulgadora Científica na Rede Análise COVID-19. Autora convidada no Especial COVID-19 e parte do projeto Todos Pelas Vacinas.

    Rafael Lopes Paixão da Silva é doutorando em física. Ele estuda dados de saúde pública e sua dinâmica e relações com o clima é Físico. Pesquisador no Observatório Covid-19 Brasil e convidado pelo editorial para escrever no Especial COVID-19.

    Este texto foi escrito originalmente para o Especial COVID-19.

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    Os argumentos expressos nos posts deste especial são dos pesquisadores. Dessa forma, produziu-se textos produzidos a partir de campos de pesquisa científica e atuação profissional dos pesquisadores. Além disso, a revisão por pares aconteceu por pesquisadores da mesma área técnica-científica da Unicamp. Assim, não, necessariamente, representam a visão da Unicamp e essas opiniões não substituem conselhos médicos.

  • Em governo de milico entreguista, Marinha perde propriedade de praias brasileiras

    Texto por Paulo Andreetto de Muzio

    Assim como o genocídio promovido pelos nazistas se intensificou no final da 2ª Guerra Mundial, diante da derrota iminente, o atual governo federal e seus aliados no Congresso, que pouco representam os anseios e necessidades do povo brasileiro, estão correndo para aprovar neste ano derradeiro mais medidas para prejudicar a população.

    No dia 22 de fevereiro, os deputados aprovaram a PEC 39, de 2011. Trata-se de um Projeto de Emenda à Constituição que propõe extinguir os chamados terrenos de marinha e dispor sobre a propriedade desses imóveis. “Os terrenos de marinha são as áreas situadas na costa marítima, as que contornam as ilhas, as margens dos rios e das lagoas, em faixa de trinta e três metros medidos a partir da posição do preamar (maré cheia) médio de 1831, desde que nas águas adjacentes se faça sentir a influência de marés com oscilação mínima de cinco centímetros.” Foram 389 votos a favor e 91 contra.

    Os argumentos a favor da mudança, descritos na própria redação da proposta, criticam o fato das posses da marinha tratarem-se de uma instituição antiga e as apontam como não condizentes com a realidade brasileira atual. Também defendem a necessidade de uma eficiência econômica, que aconteceria a partir da mudança.

    Antes mesmo da votação, o jornalista ambiental André Trigueiro mostrou sua preocupação ao dizer que tratava-se da boiada litorânea, fazendo referência  a uma fala de Ricardo Salles, ex-ministro do Meio Ambiente que em determinado momento do governo Bolsonaro propôs aproveitar que os holofotes da mídia estavam voltados à pandemia de Covid-19 para aprovar na surdina medidas que promovessem o desmatamento.

    Acompanhando alguns debates e posicionamentos de membros da Frente Ampla Democrática Socioambiental (FADS), coletivo de luta pelo meio ambiente que congrega pesquisadores, professores, servidores públicos, ativistas e pessoas comprometidas com a justiça socioambiental, compreende-se que PEC 39 é uma grande ameaça.

    As áreas das quais a proposta trata pertencem à União. A PEC propõe a transferência da propriedade de parte delas para estados, municípios e os atuais ocupantes. Muitas são ocupadas por particulares que pagam pelo uso. É um prato cheio para aqueles endinheirados que querem fechar praias. Também é um incentivo para que ocorram mais casos como o do município paulista de Ilha Comprida, onde houve no ano de 2019 a aprovação de uma lei municipal feita sem consulta pública e sob encomenda para que um determinado empresário pudesse construir prédios de até 30 metros de altura (7 andares). Após mobilização popular, o empreendimento foi cancelado. Mas com a PEC 39, haverá mais áreas como essa a serem loteadas e ocupadas.

    Além da especulação dos grandes empreendimentos, pode haver distribuição de títulos de propriedade a populações em condições inadequadas de moradia e em áreas de risco, o que prejudica a realização das políticas públicas habitacionais e de urbanismo necessárias e perpetua a precariedade em que essas pessoas vivem.

    A pressão do capital em nossa costa irá explodir cada vez mais em conflitos fundiários. Essa proposta de emenda é um saldão da especulação imobiliária de políticos (no mal sentido da palavra) para liquidar com as áreas de preservação e com as pessoas que estarão cada vez mais em risco nessas áreas sensíveis a inundações e enxurradas.

    No momento, a proposta tramita para a apreciação do Senado Federal. O fim da posse desses terrenos da marinha leva à privatização turísticas de praias e caminha para a realização do sonho daquele sádico que botaram na presidência da república de termos uma (ou mais) Cancún brasileira. E isso não é uma coisa boa. Uma espécie de Apartheid vem por aí…


    Paulo Andreetto de Muzio é graduado em Relações Públicas (2005) pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP. Especializou-se em Jornalismo Científico (2016) pelo Laboratório de Estudos Avançados em Jornalismo – Labjor, da Universidade de Campinas – Unicamp, e é mestre em Divulgação Científica e Cultural (2020), também pelo Labjor.

    Este texto foi publicado originalmente no blog Natureza Crítica.

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